quinta-feira, junho 18, 2009

GESTÃO ESCOLAR: CURRÍCULOS E PROGRAMAS


Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o ensino fundamental
Carlos Roberto Jamil CuryFaculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais
Introdução
Mais uma vez a comunidade educacional se sente provocada a se pronunciar sobre uma discussão que preocupou sobremaneira os constituintes de 1988: como dar encaminhamento ao dispositivo constitucional expresso no art. 210 da Constituição Federal? E, novamente, torna-se importante não ignorar que esse assunto sempre foi polêmico, seja pelo seu caráter de componente de uma política educacional, seja pela importância do currículo no próprio exercício do ato pedagógico no interior da "estrutura e funcionamento" da educação escolar brasileira.
A iniciativa do MEC em dar continuidade à discussão desse assunto por meio dos denominados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) deve nos remeter a algumas reflexões a propósito de seu significado, sua oportunidade e processualística, sem nos esquecermos de outros momentos históricos nos quais a mesma questão se pôs. E, se tais premissas forem procedentes, tirar algumas conclusões de caráter provisório tendo em vista a possibilidade de sua efetivação.
Parâmetros Curriculares Nacionais, currículos mínimos, currículos básicos, currículos unificados, conteúdos mínimos, diretrizes comuns nacionais ou qualquer outro nome que se Ihes atribua são dimensões da política educacional que sempre estiveram às voltas com a questão federativa e com a questão da participação. Ambas as questões passam pelo sentido maior da democracia.
Evidentemente o nome atribuído pode ter ou não uma ligação mais estreita com uma concepção de fundo que subjaz a qualquer política educacional. Diretrizes podem ser linhas gerais reguladoras e currículos únicos podem,significar mais do que uma listagem mínima e geral de disciplinas obrigatórias para todo o país. Por outro lado, o termo "parâmetro" pode dar, até mesmo pela sua origem etimológica, uma idéia de uma "medida" ou de uma "linha" geométrica, constante e invariável.
De qualquer maneira, sempre fica a pergunta sobre de que tamanho deve ser esse "mínimo" afim de que a criatividade também possa transparecer nas unidades federadas e nas próprias unidades escolares. E, não menos importante, qual o sujeito privilegiado do "serão fixados conteúdos mínimos...", evitando-se tanto a burocratização verticalista quanto um democratismo pulverizado? [Anísio Teixeira, já em 1952, criticando o parecer centraliza dor de G. Capanema ante o projeto de Lei de Diretrizes e Bases enviado pelo ministro Clemente Mariani, afirmou que os educadores não podem ser transformados em "rígidos intérpretes de leis e regulamentos uniformes, [...] em executores rígidos de programas oficiais, e os livros didáticos em manuais 'oficializados' e conformes, linearmente com os pontos dos 'programas'" (Teixeira, 1952, p. 85)]
A questão federativa, conquanto não limitada só à educação escolar, sempre esteve na primeira linha das discussões quer no Brasil Império, quer no Brasil República. Ela já se impunha ao país antes mesmo da transição da cultura centralizada e centralista do Império para a descentralização federada da República.
Montante de verbas, distribuição de rendas, captação de impostos se cruzam com a divisão de responsabilidades, diversificação de competências e atribuições segundo parâmetros mais unionistas ou mais descentralizadores e, neste último caso, com propostas até mesmo confederalistas. E o justo equilíbrio entre esses extremos, no caso de uma nação, é o federalismo democrático, sempre ansiado como o melhor. [Um exemplo para se ver a magnitude dessas discussões pode ser encontrado no livro de Lêda Boechat Rodrigues (1968), intitulado História do Supremo Tribunal Federal, 1890-1910, a defesa do federalismo, no qual a autora apresenta os problemas ligados à questão federativa através de sentenças e processos do STF.]
Verbas, competências e atribuições, freqüentemente em clima de disputa no interior de regimes democráticos e federados, são dirigidas para determinados fins mais amplos, fins estes que podem ser mais consensuais. Entre eles podem-se citar as funções clássicas do Estado nacional como guardião da soberania, da moeda, da segurança e da coesão social. Pode-se então dizer que a coesão, uma função permanente dos Estados nacionais, se impõe através de vários caminhos. A educação escolar é um deles e aí ocupa lugar destacado.
Ora, se as instituições de ensino sempre foram consideradas relevantes no sentido da coesão é porque elas socializam, culturalizam e instilam comportamentos e valores. Elas ensinam isto é, deixam sinais. Mas, enquanto tais, elas só se consubstanciam quando se aproximam do ato pedagógico. Este, por sua vez, enquanto síntese do aprender-ensinar,é mediado por currículos manifestos ou ocultos, sobretudo no interior de redes de ensino. (Aliás, isto já está posto na origem do termo currículo seja como dimensão estática (cadastro, reunião de dados), seja como dimensão dinâmica (curso, movimento de reunião).
Nesse sentido, currículos nacionais, mínimos curriculares, diretrizes gerais têm muito a ver com a questão federativa, pois neles estão presentes a idéia e a prática de conteúdos gerais válidos para toda uma nação. Mas sua operacionalização enfrenta uma dupla problemática: se há necessidade de constrangimentos legais para esses mínimos e, seja pela negativa, seja pela afirmativa, qual o papel das unidades federadas. As perguntas clássicas sobre os justos limites dos entes juridicamente autônomos no jogo União x unidades federadas se expressam também no âmbito de currículos mínimos para todos os cidadãos em qualquer estado ou município. Assim, pode-se: interrogar: invade-se o território da autonomia dos estados quando a União impõe uma lista mínima de disciplinas? E o que dizer quando ela avança no sentido de um detalhamento destas? Esse detalhamento é o que reza o art. 210 da Constituição? Basta uma listagem mínima de disciplinas para que o objetivo da coesão nacional se:já alcançado? Trata-se de uma peculiaridade dos Conselhos Nacionais no sentido de sua explicitação? Qual a tarefa dos Conselhos Estaduais (ou de quem quer que lhe faça as vezes)? Qual é o papel dos pesquisadores e estudiosos nesse caso? (Sobre esse assunto deve-se consultar os Cadernos ANPEd Nova Fase, n° 2, 1989, todo dedicado a esse assunto.)
Por outro lado, quem exerce a docência é quem "sente" o peso dessa tarefa, e nesse "sentir" o professor "sabe" um caminho que nem sempre chega a quem entende que "entende" do assunto, mas nem sempre "sente". É possível uma proposta curricular, em qualquer nível administrativo, em que a legitimidade da proposta não passe pela subjetividade dos profissionais da educação?
Desafio permanente para qualquer democracia é a natureza e o grau de participação que deve pautar a relação entre "dirigentes e dirigidos". Desafio permanente para todos é o grau de flexibilidade dos dispositivos normativos para que não impeçam a crítica e a criatividade.
Nesse sentido, deve afirmar-se que, em uma democracia, o produto almejado deve estar contido no próprio de produção de uma norma ou mesmo das normas que visem regulamentar um princípio geral. Nunca é demais recordar as advertências de Bobbio: "a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil; a autocracia, ao contrário, está em condições de tornar a demanda mais difícil e dispõe de maior facilidade para dar respostas" (1986, p. 36). Por outro lado, alerta o mesmo autor: "Mas como pode o governo responder se as demandas que provêm dê uma sociedade livre e emancipada são sempre mais numerosas, sempre mais urgentes, sempre mais onerosas?" (idem, p. 36).
Um princípio de entendimento a algumas dessas questões pode ser buscado a partir dos modos pelos quais se respondeu ao tema aqui proposto delimitando-o no plano do ensino fundamental. Assim, uma breve retrospectiva histórica da polêmica currículo x federação pode ser útil.
Memória histórica
Pode-se dizer que a idéia de um currículo nacional se cruza com a evolução a educação, sobretudo a chamada educação escolar fundamental, entendida como direito do cidadão e dever do Estado. Embora vários cruzamentos possam ser estabelecidos, pode-se dizer que um currículo nacional se cruza com uma função social do Estado, que é a de atender a um direito do cidadão que busca na educação escolar uma via de cidadania compartilhada com seus concidadãos.
E o acesso a essa dupla referência (direito x dever) é tardio enquanto inscrição e escritura em Constituições brasileiras. O que não quer dizer que - a despeito da inexistência desses princípios em algumas Constituições - não houvesse discussões sobre currículos.
O Império inscreve a gratuidade das escolas primárias pelo art. 179, n° 32, mas sem reconhecê-la como direito. Até 1834, o Império tem a responsabilidade de manter tais escolas como oferta gratuita aos que viessem procurá-las. O Ato Adicional de 1834 introduz não só a divisão de competências entre "os poderes gerais" e as províncias, como também deixa na ambigüidade se tal responsabilidade deveria ser compartilhada ou privativa das províncias. (Cf. Ato Adicional, art. 10, par. 1°.)
Essa ambigüidade sempre acabou permeando as discussões sobre a dinâmica centralização x descentralização, mesmo antes de nossa República proclamada se dizer Federativa.
É verdade que, grosso modo, pode-se dizer que coube sempre às províncias, e depois aos estados, a tarefa do ensino fundamental e sempre coube aos "poderes gerais" (depois União) o controle do ensino superior e em boa parte do ensino secundário (em especial na capital do Império/República).
Mas até onde podem ir as "diretrizes"? E como se pode defini-las? Como discriminar especificamente as várias competências e responsabilidades? Pode-se dizer que se criou um entendimento geral que a União tem, em relação ao ensino primário, apenas uma função supletiva. Já em relação ao ensino médio e sobretudo em relação ao ensino superior seu papel seria bem mais diretivo e até mesmo interferidor. (Cf. Constituição Federal de 1891, art. 35, par. 2°, 3°,4°.)
E será no interior destas duas dinâmicas, a educação como direito e dever e a educação enquanto constante de uma federação republicana (após o Império), que o tema dos currículos será sempre reposto enquanto instrumento de coesão nacional. Certamente, como se verá, essa questão tem história junto à história das políticas educacionais no Brasil.
A Constituinte de 1823, antes de sua dissolução pelo imperador, já se debatia com essa questão e não conseguiu efetivar a proposta de um tractatus de educação válido para toda a juventude brasileira, sob a forma de um compêndio a ser levado a todos os rincões do país (Chizzotti, 1996).
E, ao que parece, na medida de suas possibilidades e vontade política, as províncias não deixaram de considerar as disciplinas listadas pela primeira lei de ensino do Brasil, aquela que traduzia a regulamentação do artigo da gratuidade do ensino primário e que foi publicada a 15 de outubro de 1826. Nela se prescrevia a oferta obrigatória de língua portuguesa, aritmética, história do Brasil e religião católica.
Entretanto, nada havia de imperativo em relação ao detalhamento dessa lista como ementas, guias ou programas previamente definidos. Nesse sentido, parece ter ido se firmando a tradição de descentralização (na República transformada em princípio da autonomia) das províncias e, posteriormente, dos estados em relação a esse nível de ensino.
A partir de 1837, com a criação do Colégio Pedro II, as disciplinas do ensino secundário passaram a contar com um centro de referência. As instituições de ensino das províncias, oficiais ou não, conquanto não imperativamente, miravam-se no espelho dos currículos e até mesmo dos livros didáticos adotados pelo Colégio Pedro II. E a existência de exames de admissão para o ingresso no primeiro ciclo do ensino secundário (ginásio) criava uma situação em que aqueles exames condicionavam os conteúdos dos estudos anteriores.
Quanto à organicidade institucional do ensino primário, não se pode negar que ela foi bem mais lenta que a relativa ao ensino médio e superior. Boa parte dele possuía uma dimensão doméstica, nem sempre se realizando em instituições escolares. (A própria Lei de Diretrizes e Bases de 1961 diz textualmente no seu art. 2°: "a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola" (grifos nossos). Também a proposta de LDB em tramitação fala em "alternativa satisfatória" ao dever de "matricular no ensino obrigatório".)
Aliás, não se ignora que católicos e positivistas, embora com fundamentações diferenciadas, tinham preferência pela educação primária dada na família, com ênfase no papel feminino de educadora a ser cumprido pela mulher.
A proclamação da República não altera significativamente esse quadro. Aliás, no que se refere à dinâmica direito x dever, a República não inscreveu em sua Constituição de 1891 sequer a afirmação da gratuidade do ensino primário. Tal possibilidade poderia vir a ser inscrita nas Constituições Estaduais. Mas, por outro lado, a Lei Maior determinou a laicidade nos estabelecimentos oficiais de qualquer nível, inclusive os sob responsabilidade dos estados e municípios. (Cf. CF/1891, art. 72, par. 6°.) Uma disciplina até então vigente no currículo geral das escolas do Império - a de doutrina religiosa católica -foi cortada dos currículos dos estabelecimentos oficiais da República.
Excetuada, porém, a presença paradigmática do Colégio Pedro II, as competências relativas ao ensino primário (e em certa medida relativas ao secundário) ficaram com os estados ou municípios, os quais poderiam exercitar sua autonomia no âmbito dos currículos.
E não deixa de ser notável uma certa oscilação entre centralização e descentralização no âmbito das reformas educacionais na assim denominada República Velha. (Cf.Marquesjr., 1967, e Tannuri, 1981.)
E a já conhecida dispersividade regional em relação a um currículo básico não passou desapercebida dos movimentos sustentadores de uma democratização da rede pública escolar brasileira. (Cf. Nagle, 1974.)
E tal foi o vigor desses movimentos que a Revisão Constitucional de 1925-1926 tratou do tema com bastante abundância, em especial através do ângulo da formação de um "caráter nacional". (Cf. Cury, 1992.) A educação escolar mediaria vínculos nacionais através dos quais garantir-se-ia uma dimensão da coesão nacional. Tal mediação ganharia ímpeto pelo abalo trazido pelos movimentos sociais proletários e pelos movimentos políticos internos, com destaque para a Coluna Prestes.
O que não quer dizer que só essa Revisão houvesse buscado o princípio de uma diretriz geral e nacional para a educação. Sucessivos projetos de reforma do ensino público encaminhados por parlamentares, durante a chamada República Velha, não lograram êxito em seus propósitos. (Cf. Moacyr, 1944.) Além disso, não se pode deixar de lembrar os esforços pelos quais instituições de ensino estaduais, oficiais ou livres, ansiavam pelo mérito de serem equiparadas ao Colégio Pedro II.
A Revolução de 30 haveria de trazer algumas alterações significativas no quadro até então existente.
O ano de 1931 traz, pelo menos, três importantes mudanças: a introdução do ensino religioso nas escolas oficiais, a oficialização dos estabelecimentos do ensino secundário, via aceitação do regimento e currículos do Pedro II, e a criação do Conselho Nacional de Educação, órgão consultivo e opinativo do Ministério da Educação e Saúde Pública, de cujas atribuições fazia parte "firmar diretrizes gerais do ensino primário, secundário e superior", de tal modo que nelas os "interesses do país" se sobrepujassem a qualquer outro.
O Manifesto dos pioneiros da educação nova, além da defesa da gratuidade, obrigatoriedade e laicidade da escola pública como dever do Estado, afirmará a importância de um processo de homogeneização básica, a partir da escola primária, visando " a identidade da consciência nacional". Homogeneização básica defendida como alternativa criadora à uniformidade rejeitada, aliás bastante distante dos métodos ativos defendidos pelo escolanovismo.
A Constituição de 1934, ao inscrever a educação como direito do cidadão e obrigação dos poderes públicos, tornou-a gratuita e obrigatória no primário, responsabilizou os estados em termos de sua efetivação, impôs percentuais vinculados para o bom êxito dessa efetivação (Cf. CF/1934, capítulo sobre educação.) e firmou a existência de Conselhos Estaduais ao lado do Conselho Nacional de educação a quem competiria elaborar o Plano Nacional de Educação. (Cf. idem, art. 152.) Ela introduziu também a "competência privativa " da União no estabelecimento de diretrizes da educação nacional e na fixação do Plano Nacional de Educação, (Cf. idem, art. 5, XIV.) sem deixar de reconhecer a competência concorrente da União e estados quanto ao objetivo de difundir em todos os graus a instrução pública. (Cf. idem, art. 10, VI.)
De acordo com esse espírito que congregava a tarefa de elaborar o Plano Nacional e de fazer cumprir a Constituição, o então governo eleito de Vargas reorganiza o Conselho Nacional de Educação pela lei n° 174 de 6 de janeiro de 1936 e lhe impõe o regimento interno. Por ambos os instrumentos fica claro que a dimensão interferidora da União ante o ensino primário se esgota substancialmente na guarda da Constituição e na elaboração do Plano Nacional de Educação (para cuja elaboração criar-se-ia uma comissão específica voltada para o ensino primário). Coube também à União a função supletiva de estimulação, promoção de conferências e apoio técnico ao ensino primário. Embora houvesse um representante do ensino primário e normal e uma comissão de ensino primário e secundário na composição do Conselho Nacional, de fato esse parece ter se voltado mais para as questões do ensino superior. (Esse Plano não chegou a se efetivar pois sua elaboração final, pelo projeto de lei enviado ao Congresso, não teve seqüência por causa do golpe de Estado de 1937.)
Mais especificamente em relação à questão curricular, a Constituição impõe como constante dos currículos oficiais o ensino religioso como disciplina de oferta obrigatória e matrícula facultativa. Tal dispositivo atravessará todas as Constituições Federais após 1934. (Cf. Cury, 1995, e Horta, 1995.)
Se para o ensino secundário vai se firmando, cada vez mais, a presença paradigmática do currículo do Colégio Pedro ll, a instrução primária, vista desse ângulo, confirma-se como competência dos estados. (Nunca é demais insistir na necessidade de maiores investigações quanto aos currículos e programas nas unidades federadas.)
Essa orientação federalista, tanto descentralizadora quanto garantidora de aspectos nacionais, firmada no princípio da educação como direito do indivíduo, impressa pela Constituição de 1934, foi rompida pela outorga da Constituição de 1937. Esta voltava a centralizar quase tudo no âmbito do Executivo federal. Não reconhecendo a educação como direito de todos, mas como dever das famílias, cortando a vinculação obrigatória, previa como competência privativa da União a fixação das "diretrizes da educação nacional". Mesmo quando o Estado Novo procurou discriminar atribuições de estados e municípios pelo decreto-lei de 8 de abril de 1939, impunha claros limites à atuação destes. No âmbito da educação, os decretos-lei estaduais só teriam vigência após aprovação do chefe de Estado, aí compreendida a regulamentação do ensino primário.
A criação efetiva do Instituto Nacional do Livro, sob a direção de Gustavo Capanema, imprimiria nos currículos uma espécie de ideologia oficial nos textos, já que os livros, para efeito de publicação e de divulgação, deveriam ter autorização do Departamento de Imprensa e propaganda (DIP).
O decreto-lei n° 93 cria o Instituto Nacional do Livro em 21 de dezembro de 1937. 0 DIP censurava os livros em geral, embora o livro didático ficasse a cargo do ministro da Educação. Já o decreto-lei na 1006/38 estabelece que, sem a autorização do Ministério, "os livros didáticos não poderão ser adota dos no ensino das escolas pré-primárias, primárias, normais, profissionais e secundárias em toda a República" (Pereira, 1995, p.148). Este último decreto-lei cria também a Comissão Nacional do Livro Didático, à qual competiria autorizar ou não uma determinada obra.
A Lei Orgânica do Ensino Primário (decreto-lei no 8529/46), já assinada por José Linhares, impunha sete disciplinas válidas e obrigatórias para todo o território nacional no ensino primário elementar: leitura e escrita, iniciação matemática, geografia e história do Brasil, conhecimentos gerais, desenho e trabalhos manuais, canto orfeônico e educação física. ( Cf. art. 7 dessa lei orgânica.) Isso sem, contar o ensino religioso.
Já o curso primário complementar, além das supracitadas, deveria incorporar geometria, elementos de história da América, ciências naturais e higiene, elementos de economia regional. As meninas ainda cabiam economia doméstica e puericultura. (Cf. idem, art. 8. Se questões de culto povoavam as discussões sobre currículos, agora, ainda que de modo discriminatório, aparecem questões ligadas à diferenciação sexual.)
O curso primário supletivo, voltado para jovens e adultos, deveria conter -além de leitura, linguagem oral/escrita, aritmética e geometria, geografia e história do Brasil- ciências naturais, higiene, noções de direito (do trabalho, civil e militar). As alunas deveriam cursar economia doméstica e puericultura (art. 9).
Mais do que isso, a Lei, através do art. 10, dá orientações gerais para o ensino primário fundamental (elementar + complementar) no sentido de uma didática próxima da escolanovista e no art. 12 impõe o seguinte: "O ensino primário obedecerá a programas mínimos e a diretrizes essenciais, fundamentados em estudos de caráter objetivo, que realizem os técnicos do Ministério da Educação e Saúde, com a cooperação dos estados".
Programas regionais teriam o caráter de complementar a programação geral fixada pelo Ministério para todo o país.
O decreto-lei ainda regula minuciosamente os "sistemas de ensino primário" e os enquadra em uma espécie de estrutura e funcionamento.
Embora não viessem à luz durante a ditadura, as Leis Orgânicas relativas ao ensino primário, normal e agrícola, preparadas durante o regime varguista através de comissões nacionais, tiveram continuidade sob o Estado de Direito da Constituição de 1946. Tal fenômeno se deu devido ao longo processo de tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1961. Com isso houve um relativo choque entre a orientação estadonovista, centralizadora e autoritária, e aquela promanada da Constituição liberal e descentralizadora de 1946.
Com efeito, a Constituição de 1946, ao repor o Estado de Direito, traz consigo também a dimensão liberal-descentralizadora e reinsere a educação como direito do indivíduo e obrigação do poder público. Também são repostos os preceitos de 1934 que a ditadura havia cortado. A definição da Lei de Diretrizes e Bases permanece como competência privativa da união. E o choque entre ambas orientações supramencionadas será eliminado pelos termos de compromisso trazidos com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961.
Esta, excetuadas as disciplinas obrigatórias impostas a todos os sistemas de ensino, como educação física e ensino religioso, deixava aos estados ampla liberdade na construção de conteúdos curriculares. Isso quer dizer que determinadas disciplinas constavam nacionalmente dos currículos, mas seus conteúdos não tinham definições específicas por parte da União. (No projeto de LDB proposto por Clemente Mariani em 1946, pode-se ler no art. 66 que seria competência do Estado aperfeiçoar e baratear o livro didático. Além do que os livros didáticos, para serem divulgados nas escolas, deveriam ser registrados no Ministério e quando "impróprios aos fins educativos" seriam proibidos, ouvido o Conselho Nacional de Educação.)
A lei 4024/61 não fixa um currículo mínimo obrigatório para o ensino primário, mas o art. 25 assinala que o fim desse nível de ensino é o "desenvolvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança e a sua integração no meio físico e social". [O mesmo Mariani defendia "a unicidade do sistema educacional cujas variedades estaduais obedecerão ao princípio de equivalência pedagógica em substituição ao falso princípio da uniformidade pedagógica" (Mariani, s/d, p.328).]
Ora, o Conselho Federal de Educação, no parecer na 121/63, ao discutir os exames de admissão, reconhece quatro grandes departamentos do ensino primário: língua pátria, aritmética, ciências naturais e ciências sociais. E o mesmo parecer se socorre do PABAEE/MG para um detalhamento da consistência conteudística dessas quatro áreas. E reconhece não só a autonomia dos estados a esse respeito, como também a existência de escolas com atividades "assistemáticas" de ação educativa e de instrução no lar.
O que é novo na lei 4.024/61 é a permissão dada pelo art. 104 de se constituírem escolas experimentais com currículos próprios, o que faz juz ao art. 12 da mesma, onde se reconhece a correlação "sistemas de ensino" e "flexibilidade dos currículos".
O CFE, instalado em 12 de fevereiro de 1962, prevê uma comissão de ensino primário e médio; quanto ao primário, a Portaria na 60 de 21 de fevereiro de 1962 prevê a competência do Conselho na "análise dos efeitos da ação supletiva" da União em face dessa modalidade de ensino.
O regime autoritário-militar de 1964 manteve pró-forma o funcionamento precário das Constituições e do Congresso. Ele procurou também deixar sua marca na educação escolar. Contudo, no que se refere ao regimento do CFE, trazido pelo decreto no 64.902 de 29 de julho de 1969, o art. 3,2, ao expressar a "competência do Plenário em interpretar a LDB", ressalvava a "competência dos sistemas estaduais de ensino, definida na Lei na 4.024 de 20 de dezembro de 1961".
Grande mudança, entretanto, será trazida pela lei 5.692/71 no que se refere ao ensino primário. Sob a nova denominação de "ensino de 1 o grau" ela compreenderá tanto o que antes era o ensino primário quanto o que era o 1° ciclo do ensino médio (ginásio).
O ensino de 1° grau passa, então, a ter oito anos obrigatórios. Já a organização didática de cada estabelecimento ficaria sob os cuidados do respectivo Conselho de Educação, desde que se respeitassem as "matérias" (Cf. Lei 5.692/71, art. 6, par. único, letra a.) do "núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional" (art. 4), competência do Conselho Federal de Educação. E nelas dever-se-iam constar educação moral e cívica, educação física, educação artística, programas de saúde, língua nacional e ensino religioso.
Extenso e detalhado comentário sobre núcleo comum dos currículos nacionais será trazido pelo Parecer 853/71, logo após a publicação da Lei 5692/71. E em certo trecho do parecer lê-se claramente:
Por já virem tais atividades prescritas no art. 7º da lei, só consideraremos aqui na medida em que tenhamos de relacioná-las com os demais componentes do currículo. Associado a elas, o núcleo comum configura o conteúdo mínimo abaixo do qual se terá por incompleta qualquer formação de 1° e 2° graus, assim quanto aos conhecimentos em si mesmos como, sobretudo, do ponto de vista da unidade nacional de que a escola há de ser causa e efeito a um tempo. Daí a sua obrigatoriedade.
Já se vê que o Conselho Federal foi, como dantes o fora o Conselho Nacional, o órgão responsável pela tradução desses conteúdos mínimos para todo o conjunto do sistema escolar brasileiro. Nesse sentido, mesmo as alterações de nome ou de atribuições desse Conselho não determinaram a perda dessa responsabilidade. Assim, o regimento do CFE, de acordo com a portaria ministerial no. 691/81, define, no seu art. 2, XVIII, como sua competência "fixar as matérias do núcleo comum dos cursos de 1° e 2° graus, definindo-lhes os objetivos e amplitude, bem como o mínimo a ser exigido em cada habilitação profissional ou conjunto de habilitações afins" .
E na organização do CFE como colegiado se prevê uma Câmara de Ensino de 1° e 2° graus e uma Comissão Central de Currículos. (Eis aqui um campo pouco explorado nas pesquisas de pós-graduação em educação.)
Com isso foram se consubstanciando duas orientações relativamente recorrentes: a primeira, de certo modo já posta pelo Ato Adicional de 1834, a de que o ensino fundamental é competência dos estados e municípios e a de que o ensino superior tenha um maior controle por parte da União, ficando relativamente cinzentos os espaços de competências concorrentes e/ou comuns. A segunda é a de que o estabelecimento de diretrizes e bases para a educação nacional continua sendo competência privativa da União e sua tradução específica, no que se refere aos mínimos programáticos, seja elaborada através de um Conselho Nacional ou Federal de Educação.
Tais orientações, ainda que recheadas por novos dispositivos colocados pela Constituição Federal de 1988 quanto à gratuidade, gestão democrática, direito público subjetivo, municipalização e outros, foram nela reafirmadas, sem contudo se fazer referência à existência de um Conselho Nacional ou Federal (que só aparecerá nas propostas de LDB).
Entretanto, a Constituição determinara uma pequena reforma tributária que repassou fontes de recursos da União para os estados e municípios. Ficava suposto que, concomitantemente, se faria o transfert de competências, sobretudo no campo da saúde e educação. Além disso, o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do deputado Octávio Elísio Alves de Brito, pelo seu caráter participativo, franqueara a discussão sobre a polêmica noção de "sistema nacional de educação". Ora, tal noção reporia a questão federativa, voltando-se ao confronto entre unionistas e descentralizadores.
A longevidade da tramitação do projeto de LDB, a mudança das condições internacionais no que se refere à correlação trabalho/emprego, a vontade da União em diminuir seus gastos, a necessidade de especificar a vinculação orçamentária e sobretudo a consciência da importância do ensino fundamental, de cuja situação lamentável o país mais uma vez se envergonha, obrigaram a que tanto parlamentares quanto Executivo tomassem iniciativas mais rápidas no enfrentamento da questão.
Por outro lado, a educação escolar foi definida (ainda que de. modo especificado em alguns aspectos e nem tanto em outros) competência privativa da União, competência concorrente entre União e estados e competência comum entre União, estados e municípios, segundo os art. 22, 23 e 24 respectivamente. Finalmente, o art. 30 supõe a ação supletiva da União e dos estados em relação à obrigação dos municípios em manter uma rede de ensino voltada para o pré-escolar e o fundamental.
Urgia, pois, o enfrentamento da questão, até porque o texto constitucional em seu art. 210 reza que "serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais" .
O tom imperativo não deixa dúvida. Não menos claro é o adjativo "mínimo". E, se "serão fixados", alguém deve ser o responsável. A tradição dessa matéria constata iniciativa da União através do Conselho Nacional (Federal) de Educação.
Nesse sentido torna-se ilustrativo citar o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ora em tramitação no Congresso. Diz ela em seu art. 10, inciso IV, que a União deve "estabelecer, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e os seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum".
Outros artigos desse mesmo projeto de Lei, ainda que citá-Ios alongue o texto, são úteis para o entendimento da problemática.
Art. 24. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum a ser complementada pelos demais conteúdos curriculares especificados nesta Lei e, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 1° Os currículos valorizarão as artes e a educação física, de forma a promover o desenvolvimento físico e cultural dos alunos.
§ 2° O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
§ 3° De acordo com as possibilidades da instituição de ensino deverá ser oferecida pelo menos uma língua estrangeira.
Art. 25. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes:
I. a difusão de valores fundamentais ao interes-
se social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;
II. consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;
III. orientação para o trabalho.
Esses artigos da LDB em tramitação, em certa medida, alteram formulações dos projetos anteriores de LDB a respeito do mesmo assunto e que taxativamente continham maior presença da sociedade civil organizada em torno da educação.
Assim, o Plano Decenal de Educação para Todos (1993) deu uma redação mais participativa no âmbito desse convênio internacional assinado pelo Brasil. Esse texto reintroduz o MEC como proponente das diretrizes curriculares ao colocar a necessidade de "fixação dos conteúdos mínimos determinados pela Constituição" como uma de suas linhas de ação estratégica:
O MEC, com o concurso das representações educacionais e da sociedade, deverá propor e especificar os conteúdos nacionais capazes de pautar a quantidade de educação socialmente útil e de caráter universal a ser oferecida a todas as crianças, consideradas suas diferenças. Complementações curriculares serão propostas em cada sistema de ensino e escolas, respeitando a pluralidade cultural e as diversidades locais. Igualmente pesquisas serão desenvolvidas para fundamentar avanços no âmbito das competências sociais, visando enriquecer o processo curricular da escola (p. 45).
Em certa medida, esse texto do Plano Decenal faz eco à proposta de LDB, Projeto de Lei Complementar n° 101/93 do senador Cid Sabóia de carvalho, que diz em seu art. 23, VI, que cabe ao Conselho Nacional de Educação "fixar, após ouvir educadores e comunidades científicas das áreas envolvidas, diretrizes curriculares gerais, definindo uma base nacional de estudos para o ensino fundamental, médio e superior de educação".
Essa formulação resume o conteúdo mais explícito e detalhado sobre o assunto tal como expresso no artigo 23, VI. Caberia ao Conselho Nacional " fixar as diretrizes curriculares gerais, definindo uma base nacional de estudos para cada nível de ensino". Já o art. 34, além de reconhecer a competência do Estado e/ou municípios na plenificação do currículo, além de estimular a vida concreta dos estudantes como ponto de partida, diz no seu caput que "os currículos do ensino fundamental e médio abrangerão, obrigatoriamente, o estudo de língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil" .
Percebe-se, pois, que a iniciativa do Executivo federal em relação aos currículos, mais forte em tempos autoritários, mais aberta em tempos de Estado de Direito, é, via de regra, repassada ou delegada ao Conselho Nacional, aos respectivos Conselhos Estaduais e às próprias instituições escolares a fim de não ignorar as disparidades regionais, peculiaridades culturais e de respeitar. o pacto federativo. Essa abertura em tempos de Estado de Direito vai desde uma democracia diretamente participacionista no projeto de LDB de 28 de junho de 1990 até a proposta da LDB em tramitação atual, que, como foi visto, deixa essa responsabilidade sob competência do(s) Executivo(s).
O Executivo, que já perdera a iniciativa da LDB em 1988, não queria deixar passar essa parte Ia legislação sem interferir decisivamente na questão. Daí sua postura de maior apoio ao projeto nascido no Senado, especialmente no governo Collor e na gestão Fernando Henrique Cardoso.
Mas não se pode omitir que é imprescindível o reconhecimento da complexificação da sociedade brasileira dada pela forte presença de associações científicas e profissionais que se preocupam com a educação brasileira, aí compreendidos os conteúdos curriculares.
Finalmente, deve-se registrar a (re)criação do Conselho Nacional de Educação através da Lei 9.131/95. A lei de criação do Conselho busca conciliar a ponderabilidade entre sociedade política e sociedade civil, com inclinação para o Executivo. Veja-se a esse respeito o art. 6 da lei n° 9.131/95 e seu parágrafo único:
O Ministério da Educação e do Desporto exerce as atribuições do poder público federal em matéria de educação, cabendo-lhe formular e avaliar a política nacional de educação, zelar pela qualidade do ensino e velar pelo cumprimento das leis que o regem.
§ 1° No desempenho de suas funções, o Ministério da Educação e do Desporto contará com a colaboração do Conselho Nacional de Educação e das Câmaras que o compõem.
Por outro lado, cabe a esse Conselho, segundo o art. 7 da lei, o dever de "assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional" .
Órgão de articulação entre a sociedade política e a sociedade civil, responde esse órgão colegiado, através de sua Câmara de Educação Básica, à atribuição, posta no art. 9, letra c: "deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto".
Os princípios constitucionais de "diretrizes e bases da educação nacional" e de "coesão nacional" associados à idéia de "mínimos nacionais" existentes em leis ordinárias ou em outras disposições normativas fizeram com que, paulatinamente, esse campo fosse sendo assumido pelo Executivo federal, que estendeu a matéria do ensino secundário (nele já presente) para o ensino fundamental (sempre visto como terreno das unidades federadas).
Com a constitucionalização do "currículo mÍnimo nacional" através da Constituição Federal de 1988, e, dada a maior tradição dessa matéria ao Executivo em termos históricos, pode-se explicar, no interior desse contexto maior, o surgimento dos "parâmetros curriculares nacionais" como iniciativa desse poder.
Assim, desde o governo Itamar Franco e agora através da gestão Fernando Henrique Cardoso, embora com orientações diferenciadas, vêm sendo tomadas iniciativas tendentes a regulamentar e efetivar o dispositivo constitucional do art. 210.
Entretanto, a questão federativa continua presente, mesmo após tentativas de clareamento na Constituição de 1988. Aliás, tendo a educação se tornado ao mesmo tempo (mas não do mesmo ponto de vista) competência privativa da União, concorrente entre a União e os estados e comum entre, os três entes federativos, é que a questão retoma com mais urgência. Prova disso é a exposição de motivos no.273 de 13 de outubro de 1995 (e que viria a ser a PEC/233/95), pela qual o atual governo da União apresenta ao Congresso Nacional uma série de emendas constitucionais. A exposição de motivos encaminhada diz:
Tradicionalmente, ao Governo Federal tem sido atribuída a responsabilidade maior pelo ensino superior, cabendo-lhe, em relação ao ensino básico, apenas função normativa e ação supletiva, esta nunca claramente definida. Aos estados e municípios, coma autonomia que o regime federativo Ihes assegura, cabe o atendimento das necessidades educacionais básicas da população, muito especialmente na faixa da educação fundamental obrigatória.
Em conseqüência dessa indefinição de papéis, resulta um sistema - na realidade uma diversidade de sistemas - de atendimento educacional que deixa muito a desejar, sobretudo no que diz respeito à qualidade da educação oferecida. De fato, se é verdade que em termos quantitativos, notadamente no que se refere à escolaridade obrigatória, o país avançou significativamente, a dispersão de esforços dos três níveis de governo gerou heterogeneidade da qualidade do atendimento escolar.
Vê-se que o problema não é novo e sempre esteve, de algum modo, nas preocupações do governo federal e nas preocupações dos governos estaduais.
Certamente que à oscilação autoritarismo x Estado de Direito não correspondeu linearmente dirigismo curricular x liberdade de criação. Mas é notório que o "vigiar" de modo mais direto a estruturação de currículos e programas e a criação de livros didáticos se aproximam mais dos regimes fechados. Sabe-se que nestes o detalhamento é mais uma forma de verticalismo homegeneizador do que um respeito às diferenças. E, nos regimes politicamente mais.abertos, o programa dos currículos nacionais unificados é mais flexível e propositivo. Espera-se, pois, destes últimos maior sensibilidade e respeito à diferença.
Essa característica de regimes abertos, contudo se defronta com dois eixos fundamentais: a questão federativa e a questão da participação dos sujeitos interessados na formulação dos conteúdos ante as diferentes concepções que os inspiram e mesmo ante as metodologias existentes em relação às ciências naturais e sociais.
A questão federativa sempre deve merecer um enfrentamento cuidadoso. Como vimos, a tradição descentralizada criou culturas institucionais na escola pública que variam de unidade federada para unidade federada. Dentro delas as regiões e as disparidades oferecem outras heterogeneidades, isto sem falar nos "capitais culturais" distintivos de classe sociais.
Logo, uma discussão sobre "parâmetros curriculares nacionais" deve desaguar na obediência à constituição através de um conhecimento profundo dessas diferenças no :interior da escola pública através do caminho próprio defendido pelos grandes nomes da educação: o diálogo.
E, nesse diálogo, e talvez tão importante quanto ele, é preciso saber da "radiografia" das escolas realmente existentes, suas peculiaridades, seus ethos. As escolas brasileiras não são iguais. Suas condições de funcionamento são extremamente diversificadas por regiões, por classes, não sendo desprezível a presença de uma pluralidade étnica e cultural.
É preciso partir dessa "radiografia " para imaginar um método criativo, de tal modo que a unidade nacional pretendida seja unidade, não uniformidade, na medida em que essa unidade passa pelo enfrentamento da diversidade.
Por outro lado, algo semelhante se passa com os métodos. Estes variam muito no âmbito das ciências naturais e sociais, fazendo com que emerja essa outra diferença. De novo o diálogo é o caminho para se evitar tanto uma homogeneidade metodológica como uma síncrese distante da análise científica.
O problema que hoje se coloca em face dos parâmetros é que a sociedade brasileira se "ocidentalizou " muito nas últimas décadas. E o mesmo se pode dizer da educação escolar. O ensino fundamental está bem próximo da universalização quantitativa, o ensino público cresceu no âmbito do ensino médio e a expansão do ensino superior, sobretudo no interior da rede particular, foi muito expressiva.
A pós-graduação está conseguindo formar pesquisadores e estudiosos que, institucionalmente, vêm investigando áreas de conhecimentos e fazendo intercâmbio internacional. E uma das áreas de atuação é justamente o estudo de currículos e de história de disciplinas escolares. As associações científicas, por seu lado, criam, dentro de seus grupos de trabalho, a alimentação contínua deste e de outros temas. Além do que não só pode ignorar que o currículo das quatro primeiras séries envolve o ato pedagógico da alfabetização, pelo qual o acesso à leitura e à escrita dá ao educando mais um modo de ler o mundo:
E para além das faculdades de educação, o tema de ensino de... vem chamando a atenção de mais e mais pesquisadores através de estudos e propostas.
A bibliografia não é pequena. Surgem livros, publicam-se pesquisas, dissertações e teses. As revistas se multiplicam. O mercado editorial apresenta, não sem uma variedade qualitativa, um espectro enorme de publicações.
Também os docentes se organizaram em associações profissionais, seja em frentes salariais, seja em frentes voltadas para a questão pedagógica.
Conclusão
Uma discussão sobre "parâmetros curriculares nacionais" não pode ignorar o quanto esta complexidade exige uma radiografia e uma auscultação da realidade multifacetada da escola pública brasileira e nem o tanto de dever cabível ao Executivo federal em efetivar o mandamento constitucional do art. 210.
E, ao passar do mandamento para a proposta de "parâmetros curriculares nacionais" para o ensino fundamental, é preciso reconhecer uma tradição que joga não só com a tormentosa questão federativa, mas com toda essa gama de realidades novas surgidas nas últimas três décadas.
Que síntese se pode retirar dessa memória histórica?
A questão federativa se impõe pela modalidade de República Constitucional que o Brasil adota desde 1889. O Brasil é uma só entidade soberana pela união de suas entidades federadas. Logo, a federação deve tanto conter laços de união e de unidade entre as unidades federadas, quanto a autonomia destas últimas', no quadro da Constituição Federal. Essa autonomia dos membros federados inclui processos descentralizados de iniciativas concernentes à administração e gestão da coisa pública.
No caso da educação escolar de ensino fundamental, firmou-se toda uma tradição jurídica que, desde o Ato Adicional, a atribuía aos membros federados. A administração e gestão desse serviço público nessa modalidade de ensino coube, e continua cabendo, aos estados e municípios.
Entretanto, dada a situação lamentável e dispersa do ensino primário nos estados, lutou-se muito para que a União, por ter maiores fundos financeiros e por ser o ponto da soberania e da unidade na diversidade, se obrigasse a interferir também na educação escolar primária visando a superação de lacunas e a assinalação de uma identidade nacional em todo o cidadão. Um nível de explicitação foi aquele relativo aos princípios educacionais, sobretudo àquele do direito à educação primária, gratuita e obrigatória.
Outro nível, porém, de exercício da união nacional foi o do estabelecimento de disciplinas escolares. Aí a evidência maior fica por conta das oscilações em torno da laicidade. O Estado "negativo" afirma laicidade, enquanto o Estado interventor a nega. E, lentamente, vai ocorrendo um crescimento de intervenção nessa matéria.
A Revolução de 30 impôs, por decreto, que o Conselho Nacional firmaria "diretrizes gerais" para o ensino primário. Essas "diretrizes", com o avançar dos anos, nem sempre ficaram por aí. É que a elas se adicionou um conjunto de disciplinas obrigatórias para toda a nação, como ficou explícito em 1946, através da Lei Orgânica do Ensino Primário, que fala claramente em "programas mínimos". Isto também parece ter firmado tradição, apesar do caráter mais liberal-descentralizador da lei 4.024/61. Essa tradição se vê legalizada pela lei 5.696/71 e confirmada pelo Parecer 853/71 do Conselho Federal. Diretrizes Gerais e Programas Mínimos se sintetizam na concepção de "Núcleo Comum" dos currículos nacionais.
Duas observações agora se impõem: a União sempre se acautela adjetivando os currículos ou programas ou diretrizes de "mínimos" ou "gerais". Pode-se aplicar aqui o princípio da lógica formal de que "quanto menor a compreensão, maior a extensão". Uma diretriz mínima torna-se mais geral porque, exatamente por ser mínima, pode ser estendida a um maior número de entes federados. E os elos mediadores dessa dimensão nacional - respeitada a autonomia dos estados e municípios em legislar sobre o assunto - serão formalmente o Conselho x Nacional (ou Federal) de Educação e, em certo sentido, o livro didático.
Finalmente, na Constituição Federal de 1988, a idéia de "diretrizes gerais" adequáveis aos conteúdo dos currículos nacionais foi constitucionalizada e sua tradução, sábia e prudente, no corpo da Lei Maior, foi a de uma "fixação". Essa "fixação", no âmbito jurídico significando determinação, limitação, estabelecimento, se limita aos "conteúdos mínimos". O mínimo é que deve ser fixado, limitando-se a União a essa tarefa imperativa ao menor grau de uma grandeza maior. E seu conteúdo indica o que está contido em outra coisa que lhe serve de continente. Esse continente é, de um lado, o processo ensino/aprendizagem, onde se realiza a relação pedagógica, e, de outro, aquela grandeza (certamente maior que o mínimo) que compete aos entes federados (e que se ampliaram com a Constituição Federal de 1988 pela inclusão dos municípios).
Restam os problemas a respeito de que tamanho devem ser essas grandezas. Qual sua conexão com o processo de ensino/aprendizagem?
A relação implícita no pacto federativo supõe a resolução de questões e pendências pelo "contrato" democrático entre União Federada e unidades federadas. Já a conexão com o processo ensino/aprendizagem se faz pelo "contrato social" e democrático entre dirigentes e dirigidos, cujo âmago é a capacidade de participação.
Ora, a participação se inclui no processo de "ocidentalização" da sociedade brasileira e, em especial, da organização dos educadores. A vida sócio-cultural brasileira, desenvolvida no âmbito da sociedade civil, vem se tornando cada vez mais complexa e plural. Ao lado de partidos, sindicatos e outras modalidades de "aparatos privados" de hegemonia, deve-se registrar a organização de educadores e intelectuais em torno de associações profissionais e científicas.
É delas que provém um saber com sabor de prática e com suor da pesquisa. É de ambas que se pode esperar uma participação efetiva e fundamentada para que a relação dirigentes/dirigidos se aproxime cada vez mais do ideal de uma "vontade geral" consensual.
É no interior dessa complexidade que se pode compreender as proposições mais ou menos pendulares ora em torno dos dirigentes, ora em torno dos dirigidos, ante a questão de como efetivar tais "-conteúdos mínimos" .Daí a necessidade de que uma proposta concreta de Parâmetros Curriculares Nacionais seja encaminhada sem pressa e com diálogo. Sem pressa, a fim de que a necessária administração eficiente do mandato constitucional não se converta em posturas verticais, sobretudo no que se refere à formação de professores. Com diálogo, a fim de que a pluralidade de setores competentes no assunto, individuais e sobretudo coletivos, possa suscitar pelo debate um razoável consenso em torno de questão tão fundamental para o ato pedagógico e para um federalismo democrático.
A educação nacional só tem a ganhar na medida em que possa assinalar um caminho diferenciado para sua democratização e para a democratização da sociedade brasileira.
CARLOS ROBERTO JAMIL CURY é professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Filosofia da Educação pela pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).É membro do Conselho Nacional de Educação. Escreveu entre outras obras: CURY, Carlos R.J., (1978). Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais. São Paulo: Cortez & Moraes.

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