sexta-feira, dezembro 15, 2006

Motricidade Humana – qual o futuro?

Prof. Dr. Manuel Sérgio Vieira e Cunha

Universidade Técnica de Lisboa – Portugal
Faculdade de Motricidade Humana – FHM
Instituto Piaget – Almada – Portugal
m.sergio@netcabo.pt
1. Se bem interpreto o mundo que me rodeia, no qual me movimento e sou, poderei fixar (com muito atrevimento) em dez as principais características do nosso tempo: a globalização, ou seja, através da tecnociência, designadamente através das tecnologias da informação (não é a informação a diferença que faz a diferença?), o mundo resume-se a uma aldeia (McLuhan) vulnerável e em constante mutação; progressiva des-socialização e precariedade do carácter social do trabalho fomentada pelo neoliberalismo vencedor e mundializado; alta competição como “modus vivendi” habitual do “homo oeconomicus” que observa toda a sua vida à luz única dos seus interesses e ainda, devido ao economicismo ambiente, avaliação das pessoas pelo que têm e não pelo que são; criação empenhada, através do contrapoder antagónico e correspondente ao poder do ideal metafísico platónico, presente no discurso político, de valores decorrentes do reconhecimento da humanidade como um todo e com iguais direitos, na diversidade dos povos, das raças, das culturas e de uma revolução científica, que habita o universo dos sistemas abertos e das estruturas dissipativas; inversão do platonismo, como queria Nietzsche, e portanto rejeição de uma ideia de Outro como a repetição, em linguagem diferente, do Mesmo, o que significa que o princípio de tudo é um paradigma complexo e que o simples não passa de mera aparência; na ciência hodierna, o desequilíbrio, o caos, o indeterminado resultam da complexidade e apelam ao surgimento de um novo Logos, de um novo Método; os progressos biomédicos e as reflexões no campo da “ética para a saúde”; a certeza que o estado adulto de uma área do conhecimento se mede também pela consciência da sua responsabilidade social; é no modo de agir e movimentar-se que o ser humano corporiza uma segunda criação e, portanto, é na transcendência típica da motricidade humana, onde não se encontra qualquer metalinguagem despótica, que o homem se aproxima de Deus; a secularização da moral e da política, de acordo com a precedência da existência sobre a essência, anunciada em Rousseau e em Sartre; crise evidente das religiões, bem expressa, tanto no terrorismo em nome de Alá, como no espírito de cruzada de G. Bush e na eleição, para Papa, do Cardeal Ratzinger, braço direito de João Paulo II, em tudo o que neste papado significou reacção e conservantismo.

Movimento & Percepção, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.5, n.6, jan./jun. 2005 – ISSN 1679-8678


A ciência da motricidade humana (CMH), que apresenta como subsistemas mais visíveis o desporto (onde também cabe o jogo desportivo), a dança, a ergonomia e a reabilitação psicomotora, nasce, no mundo cultural e social que acima sintetizei, como problema ontológico, como problema epistemológico, como problema político. Como problema ontológico, pela ausência de um paradigma organizador que norteasse a prática e a investigação ou pesquisa. Se se trata de pessoas em movimento intencional, a expressão Educação Física e o seu conteúdo são declaradamente insuficientes. Ela deverá apresentar-se, unicamente, como o ramo pedagógico de uma qualquer ciência. Mas...que ciência? E uma ciência formal, empírico-formal, ou hermenêutica? Neste assunto se tocou, em breves e lúcidas palavras de Cagigal, Le Boulch, Parlebas, Manoel Tubino, Eugenia Trigo, João Tojal e poucos mais. Permitam-me que intercale esta nótula, no meu discurso: se a morte o não levasse, Cagigal, por certo, estaria, hoje, ao nosso lado. A sua atitude eminentemente crítica e a sua inteligência aguda não o deixariam com uma linguagem que não é reflexo da realidade. De facto, o que conhecemos conhecemo-lo pela mediação da linguagem. Como Heidegger o assinala, na Carta sobre o Humanismo (Guimarães Editores, Lisboa, p.50), “há um pertencer originário da palavra ao ser”. O ser pensa-se, dizendo-se. Por isso, me parece lícito perguntar, se é possível, na área do conhecimento que estudamos, um vocabulário científico com a palavra físico, no lugar de pessoa. As expressões cultura física, actividade física e educação física resultam de uma linguagem que o racionalismo popularizou e universalizou e o senso comum dos políticos decretou e oficializou. Nunca será demais repetir que a Educação Física nasce na Europa, nos séculos XVII e XVIII e precisou do capitalismo colonizador para globalizar-se. Em 1569, em Veneza, ainda Hieronymus Mercurialis publicava o De Arte Gymnastica, obra em seis volumes, onde se distingue três tipos de ginástica: médica, militar e atlética. De referir, no entanto, que a repercussão deste livro foi tal que, além das numerosas reedições, era frequentemente citada, no século XIX, nos textos de Gutsmuths, Anton Vieth e Friedrich Jahn. No Brasil, segundo Inezil Pena Marinho, na sua História da Educação Física no Brasil, “em 1828, aparece em Pernambuco o primeiro livro editado no Brasil, sobre Educação Física e essa glória cabe a Joaquim Jerônimo Serpa. É um Tratado de Educação Física - Moral dos Meninos”(p. 33). A ciência da motricidade humana é inseparável da linguagem e do tempo: da linguagem típica da produção de novas formas do conhecimento e da revolução hermenêutica de Heidegger e Gadamer e proveniente de um tempo em que todo o real é complexo e, por isso, em que se procura um pensamento “que compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e em que o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes”(Edgar Morin, 2. A CMH, como resistência aos métodos consagrados, às formas estabelecidas e rotineiras, a uma competição que o imperialismo promove, encontra-se próxima do conceito de complexidade e assume uma inequívoca ruptura com a modernidade, com o seu dualismo, logocentrismo, eurocentrismo, antropocentrismo, patriarcalismo (será caso para perguntar, se Gaston Bachelard, com o seu corte epistemológico, não é um predecessor da pós-modernidade). Todos os “ismos” modernos levaram, demasiadas vezes, à violência e à guerra. Daqui nasceu uma ciência concebida como teoria para o domínio da razão sobre o mundo material, limitado a extensão e movimento, natureza passiva, à disposição do ser humano e que acentuou a ruptura entre a natureza e a cultura, entre o corpo e o espírito, entre o natural e o artificial, entre o observador e o observado, entre o subjectivo e o objectivo, entre o desporto e a vida política. Se bem que a voz de S. Paulo saia de rompante dos arcanos da cultura ocidental, relembrando que todos os que foram baptizados são membros do corpo do Filho de Deus, a metáfora do corpo místico de Cristo não fez ancorar, no mundo material, qualquer assomo de igualdade, no Reformar o Pensamento, Instituto Piaget, Lisboa, p.94). A CMH torna-se ontologia porque é através dela que o ser humano, no acto da transcendência (que há-de resultar em consciência da unidade relacional entre as pessoas), é verdadeiramente. Por isso, esta transcendência não promove a desigualdade, pois que se faz em relação e comunhão com um “tu” fraterno. Muitas das controvérsias científicas podem exemplificar o que vem de escrever-se. Por seu turno, o racionalismo assumiu-se como razão forte. Ao invés, a razão hermenêutica e pós-moderna afirma-se como pensamento débil, porque tudo é temporal, conjectural e histórico. A CMH, destituída de qualquer presunção metafísica, encontra na transcendência (ou superação), mormente nos aspectos políticos, o sentido da vida humana. De facto, a transcendência funciona como potenciadora de uma dimensão sapiencial, tanto no desporto, como no lazer, na saúde, na educação, no trabalho. Porque só quem quer sermais, lutando por um mundo de maior justiça social e de convivência com todas as diversidades, vive verdadeiramente... velho dualismo alma-corpo. Ao contrário, a CMH é contemporânea do legado hegelo-marxista de sociedade, onde a evolução histórica se processa em direcção a maior justiça e liberdade; da perspectiva foucaultiana do corpo historicamente dependente; da perspectiva construtivista de Elias, a qual realça a ligação entre os factores biológicos e os sociais; da dicotomia entre corpo-objecto e corpo-vivido, que Merleau-Ponty esclarece e distingue; do corpo na abordagem psicanalítica (de Freud a Lacan); da imagem consumista do corpo, o qual, segundo Baudrillard, é “o mais belo, precioso e resplandecente de todos os objectos” (A Sociedade de Consumo, Edições 70, Lisboa, p. 212); e enfim de todos aqueles que entraram de questionar “a perspectiva tradicional sobre a natureza da racionalidade”(António Damásio, O Erro de Descartes, Europa-América, Lisboa, p.13). É precisamente contra a perspectiva tradicional que Damásio defende a tese seguinte: “a emoção é uma componente integral da maquinaria da razão”(p.14). E mais adiante: “Não me parece sensato excluir as emoções e os sentimentos de qualquer concepção geral da mente”(p.172). E ainda: ”enquanto os acontecimentos mentais são o resultado da actividade dos neurónios, no cérebro, a história prévia e imprescindível que os neurónios do cérebro têm de contar é a do esquema e do funcionamento do corpo”(p.236). Por sua vez, B. S. Turner refere que é, hoje, lícito substituir o “penso logo existo” pelo “consumo logo existo” (cfr. Regulating Bodies – Essays in Medical Sociology, Routledge, London, 1992). Daí, que a origem não seja o logos, mas a publicidade, o exterior, o epidérmico, o superficial. “É de facto a superfície do corpo o que se vê, que está patente, em todas as campanhas de publicidade, tornando-se o corpo, por um lado objecto de idealização, mas por outro potencial alvo de estigmatização, caso não corresponda aos padrões expressos na própria publicidade” (Maria João Cunha, A Imagem Corporal, Autonomia 27, Azeitão,
2004, p. 83). O normal é sempre o normalizado, por efeito da publicidade. E o que mais se publicita? A saúde, evidentemente! E através de que meios? Os mais espectaculares e centrados na ciência/ideologia bio-médica: a dieta e o exercício chamado físico, como se a saúde fosse possível com o físico como significante exclusivo, esquecendo-se que a saúde é um fenómeno social. Em todas as definições de saúde está presente a multidisciplinaridade, pois que ser saudável pressupõe também uma “saúde social”, decorrente de uma educação em direitos humanos, da luta contra a iniquidade e a injustiça. “É verdade que o poder médico está no centro da normalização social. Os seus efeitos estão por todo o lado: na família, na escola, nas fábricas, nos tribunais, etc.” (Foucault Live; Collected Interviews, 1961-1984, org. por Sylvere Lotringer, Nova Iorque, 1996, Semiotexte). No entanto, as doenças não têm sempre o seu radical primeiro, na biologia. A CMH irroga-se o direito de pretender construir um diálogo entre todos os “homens de boa vontade” – diálogo que seja mais do que um método, porque, nele, quem ensina aprende e quem aprende ensina, de modo que todos sejamos aprendizes (através da motricidade, da vida, dos afectos) da responsabilização social diante da exclusão e do desemprego. O corpo não é natureza tão-só, trata-se de uma instituição política. O corpo em acto, ou a motricidade humana, pensa-se e pratica-se como construção de sujeitos históricos, onde o possível é bem mais do que o real. A CMH é um problema epistemológico porque, através de uma inequívoca mudança de paradigma, cria um discurso novo; é um problema
ontológico, pois concede prioridade à pessoa no acto da transcendência e não ao físico ou ao corpo-objecto; e é um problema político porque, nesta ciência, se tem em conta a incorporação do poder, como algo determinante na constituição de práticas estruturalmente situadas (sigo aqui o Anthony Giddens de Dualidade da Estrutura – agência e estrutura, Celta Editora, ao referir que “o corpo é o primeiro instrumento e o mais natural instrumento do homem. Ou mais exactamente, sem falar de instrumento, o primeiro e o
mais natural objecto técnico e, ao mesmo tempo, o meio técnico do homem é o seu corpo” (PUF, Paris, 1997, p. 372). Daí o não dever estranhar-se que a construção científica do corpo se realize “em primeiro lugar, pelo sistema de relações entre o conjunto de comportamentos corporais dos membros de um mesmo grupo e, em segundo lugar, pelo sistema de relações que unem aqueles comportamentos corporais e as condições objectivas de existência próprias desse mesmo grupo” (Luc Boltanski, “Les usages sociaux du corps”, Annales – Économies, Sociétés, Civilisations, volume 26, nº 1, pp. 205- 233, 1971). E porque, embora o tropear de velhos positivistas, o corpo não é um exterior sem interior, a construção científica do corpo não se faz sem a motricidade humana, sem o estudo do movimento intencional que visa, verdadeiramente, o desenvolvimento humano
3. “Na introdução do livro Epistemologia, Mario Bunge escrevia, no começo da década de oitenta do século XX, que a epistemologia, ou filosofia da ciência, se tinha tornado no domínio mais importante da filosofia, nos últimos cinquenta anos(...). A ligação às ciências, no entanto, tem constituído sempre um veículo de revigoramento da própria filosofia, desde que Platão se empenhou em estabelecer a via em que o conhecimento científico se libertava das incertezas transportadas pelas informações sensíveis, para dar lugar ao conhecimento verdadeiro” (José Luís Brandão da Luz, Introdução à Epistemologia, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002, pp. 25/26).
A “matematização galilaica da natureza” (título do parágrafo nono do livro A Crise das Ciências Europeias e a Filosofia Transcendental, em que Husserl refere os ganhos e perdas da idealização matemática da natureza), ou a mathesis universalis, que Leibniz forcejou por desenvolver, como sustentáculo da construção do sistema das ciências – ganharam em coerência operativa o que perderam em realidade, pois que as coisas e os homens não são matemática tão-só. A ordem da lógica não integra sempre a ordem real da existência. No caso específico da CMH, que estuda o corpo em acto, é no campo das ciências hermenêuticas, ou humanas, que é possível (e lógico) enquadrá-la. Assinalo, neste passo, que distingo três grandes categorias de ciências, na esteira de Jean Ladrière: as formais, as empírico-formais, ou da natureza, e as hermenêuticas, ou humanas. Uma epistemologia da Educação Física, ou seja, a organização do conhecimento da impropriamente denominada Educação Física, não pode esquecer que esta não é uma área de físicos, mas de pessoas no movimento intencional da transcendência (ou superação). Aqui, o físico está integral, mas superado. Portanto, as expressões “Ciência da Actividade Física” e “Ciência da Educação Física” pecam por defeito. O mesmo acontece com as “Ciências do Desporto”, já que o “corpo em acto” não se circunscreve à prática desportiva. Constitui um desafio permanente para a epistemologia a clarificação progressiva do sentido da acção humana e, para tanto, a linguagem não pode ser arbitrária, mas portadora de rigor e de fundamentação. A “Cinesiologia” quase sempre foi percepcionada como uma disciplina de uma graduação (ou licenciatura) e poucas vezes se constituiu como ramo autónomo do saber. Demais, não nos limitamos à área do “movimento”, mas do “movimento intencional”, ou seja, da “motricidade”, de acordo com a definição da escola fenomenológica e da tradição hegelo-marxista. Parece-nos, indubitavelmente, ser a Motricidade Humana o nosso objecto de estudo e o espaço em que se concretiza uma prática profissional. O Desporto, a Dança, a Ergonomia, a Reabilitação Psicomotora e enfim os vários aspectos da motricidade, do jogo ao trabalho, passando pela saúde, o lazer e a educação, são as especialidades que despontam da CMH. Será preciso acrescentar que nos situamos, aqui, em pleno campo das ciências humanas e da consciência crítica por um neosocialismo?
O Desporto (um exemplo, entre outros) só à luz das ciências humanas é possível estudá-lo. Ele beneficia também da aplicação de formulações matemáticas (como a economia, a psicologia, a sociologia, etc.), mas seria redutor fazer da matemática o seu radical fundante. Os cursos universitários de Desporto, após larga e porfiada reflexão, deverão questionar os seus habituais “curricula” e aproximarem-se, sem equívocos, do corpo, dentro de três grandes níveis: o físico-biológico, o sócio-político e o cultural e noético. Deverão questionar os “curricula” e os conteúdos da investigação (expressos, por exemplo, nas revistas que editam) que repetem, normalmente, o que os médicos já esqueceram. Cito a propósito David Le Breton: “La sociologia aplicada al cuerpo toma distancia de las aserciones médicas que desconocen la dimensión personal, social, cultural en sus percepciones del cuerpo. Porque parecería que la representación anatomofisiológica quisiera escapar de la historia para volverse absoluta” (La sociologia del cuerpo, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 2002, p. 36).
Embora se saiba que, no mundo gnóstico de afivelado rictus de desprezo pelo corpo, que alguma pós-modernidade prefigura, um mundo sem corpo, preenchido de circuitos electrónicos e de modificações genéticas ou morfológicas, parece ser o ideal que se procura. No entanto, os avanços hodiernos das neurociências já insculpiram, na ciência e na filosofia, a especificidade da consciência humana. António Damásio, na sua obra, apresenta fartas razões científicas, em prol da tríade “cérebro-mente-corpo”. Océrebro e o corpo são inseparáveis, pois que se encontram relacionados, dialecticamente, por circuitos de ordem bioquímica e neural. De facto, o corpo remete ao cérebro sinais, por intermédio da corrente sanguínea ou dos nervos periféricos. Por sua vez, o cérebro também condiciona o corpo, por meio do sistema nervoso autónomo e músculo-esquelético ou da libertação desubstâncias químicas no sangue. Aliás, é da relação cérebro-corpo que desponta a mente. E esta fundamenta-se na incorporação. António Damásio sugere que relembremos o caso dos “cérebros numa cuba”, composto por Hilary Putnam, em Razão, Verdade e História (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992, pp. 28-30). Imagine-se que um cérebro foi excisado do corpo e arrumado numa cuba que o mantém vivo, por terminais nervosos ligados a um supercomputador. E põe-se a questão: um cérebro separado do corpo, se bem que estimulado artificialmente numa cuba, possui uma mente? De facto, diz António Damásio, não possui uma mente normal, pois que o funcionamento perfeito da mente decorre da interacção cérebro-corpo, isto é, dos estímulos cerebrais enviados para o corpo e dos sinais de resposta que este, uma vez
alterado, remete para o cérebro. “A relação triádica e indissociável entre cérebro, mente e corpo, proposta por António Damásio, permite, a nosso ver, o afastamento e a superação da forma clássica de pensar a natureza humana em termos duais, de cisão entre espírito e corpo. O autor propõe-nos um modelo de compreensão do Homem que implica a referência à corporeidade,não como uma contingência, mas como algo essencial à sua constituição. A subjectividade damasiana é, na verdadeira acepção da palavra, uma subjectividade unificada, uma totalidade concreta” (Sara Fernandes, “A Identidade Pessoal – reflexões em torno da neurociência e da religião”, in A Mente, a Religião e a Ciência, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, pp. 219-220). Não ficaria mal acrescentar, aqui, o que Paul Ricoeur nos ensina em Soi-même comme un autre (Éditions du Seuil, Paris, 1990, p.14), adiantando que o Si supõe a alteridade, “em grau tão íntimo” que um não pode pensar-se sem o outro.
4. Mesmo que se conserve a expressão “Educação Física”, por interesses vários (um deles, o desinteresse pela constituição de um vocabulário científico) que não discuto, neste passo, julgo que será de manter a “Motricidade Humana”, como o objecto de estudo desta área. Conhecimento, acção, vontade, afectividade interpenetram-se e realizam-se de tal modo, na motricidade humana, que é ilusório, para os “professores de Educação Física”, admitir problemas puramente físicos, na sua profissão. O que se proclamou, no passado, como verdade, merece questionamento, actualmente. Kant definiu, de modo exemplar, no seu pequeno tratado sobre educação, o que o senso comum entendia por Ginástica: “é a educação daquilo que é natureza, no homem”. Ele não conhecia a existência de sistemas autopoiéticos. Se do século XVIII até hoje, nada tivesse florescido de original, de inovador, então deixaria de ser uma realidade indesmentível o processo histórico. Uma teoria sobre o ser humano não pode senão assentar basicamente no ser humano de que é a teoria. Como se poderia contribuir, doutro modo, à sua transformação? Ora, ao dizer-se que a transcendência é o sentido da Motricidade Humana, confere-se ao “corpo em acto” uma expressão profética, pois o que é não pode ser. Mas a extensão da transcendência não se limita aos aspectos físicos do ser humano. A sua constituição e diferença qualitativa, em relação à Educação Física, alarga a Motricidade Humana às dimensões intelectuais, morais, sociais e políticas da existência. Todavia, o conceito de
“transcendência”, ou superação, pode aplicar-se também à própria matéria.
Ilya Prigogine enunciou o conceito de estrutura dissipativa, que associa as ideias de ordem e desperdício de energia e matéria, ou seja, de ordem e desordem, significando, com este conceito, a aptidão que um sistema aberto possui, para adquirir novas propriedades, em consequência de flutuações provenientes das suas interacções com o meio ambiente. A matéria revela-se, deste modo, capaz de auto-organizar-se. A entropia mostra-se não só produtora de desordem, mas de uma ordem com a coerência suficiente para dela emergirem novas propriedades dotadas de crescente autonomia, em relação ao meio ambiente. Segundo Prigogine, na irreversibilidade pode estar o segredo da organização biológica. Cito, a propósito, este autor, no seu livro O Nascimento do Tempo: “O livro de Schrodinger fez-me intuir, em 1945, que os fenómenos irreversíveis podiam ser a fonte da organização biológica e, a partir de então, esta ideia nunca mais me abandonou” (p. 27 da tradução portuguesa das Edições 70). Prigogine propõe-nos uma visão optimista da realidade, onde ao tempo-degradação da entropia sucede um tempo-criador que, à semelhança da durée bergsoniana, informa a evolução do universo.
“Nos mais diversos ramos das ciências da natureza desenha-se, além disso,
neste último quartel de século, o estertor definitivo do paradigma mecanicista, que vigorou na modernidade e tão grandes malefícios trouxe à ontologia, obrigando-a a um mais ou menos confesso dualismo substancial. Na verdade, como poderia comportar uma matéria, determinada por leis necessárias, a possibilidade e o acontecimento, em que se inscreve a aventura escalonante da vida?” (Mafalda de Faria Blanc, Introdução à Ontologia, Instituto Piaget, Lisboa, 1997, p. 125). Poderíamos ainda referir a geometria fractal, bem como a teoria do caos e a das catástrofes. Enfim, de uma forma ou de outra, a natureza surge como uma potência de organização e desenvolvimento, mais estruturada por processos e dinâmicas imparáveis do que por estados de ordem e de equilíbrio. Todas as criaturas, desde as estrelas aos macro e micro-organismos, encontram-se em permanente processo de reorganização. De facto, a própria matéria inerte é energia e não um conjunto de átomos rígidos, sujeitos a leis mecânicas de atracção e repulsão. Tudo se movimenta para onde? Um dia, Antero de Quental exclamou: “Abrem-se as portas de oiro com fragor/ Mas dentro encontro só, cheio de dor,/ Silêncio e escuridão – e nada mais!”. Um ponto nos parece indiscutível: o movimento mais autenticamente humano é o que pretende acercar-se do desenvolvimento... ou do Absoluto, se assim se quiser! Poderíamos recordar o Santo Agostinho das Confissões: “Fizestes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração não descansa, enquanto não repousa em Vós”. Este apelo ao mais-ser é um facto universal. Seria um decadente, um mutilado aquele homem (ou aquela mulher) que não sentisse a necessidade imperiosa de movimentar-se para transformar e transformar-se. A motricidade humana é assim uma tomada de posição, diminui o campo do indeterminado, afirma-se como orientação e sentido. Pois não é verdade que todo o movimento intencional encerra necessariamente uma determinada concepção de vida?
5. “Desde Descartes que pensamos contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, conquistá-la” (Edgar Morin, O Paradigma Perdido, Publicações Europa-América, Lisboa, 1975, p. 15). Ora, em qualquer acção, há que reconhecer “que as intersecções tempo-espaço se encontram envolvidas, em toda a existência social, de maneira essencial. A análise social terá de reconhecer (...) a existência de um sentido de différance que, mais do que duplo, tem um carácter triplo (...). A actividade social surge-nos sempre constituída, através de três momentos de diferença, entrecruzados temporalmente, paradigmaticamente (...) e espacialmente. Em todos estes sentidos, as práticas sociais são sempre actividades situadas, ou modos de actividade historicamente localizados” (Anthony Giddens, op. cit., pp. 12 e 15). Em Heidegger, tudo o que existe é um ente, é devir, é tempo. Ora, o tempo donde nasceu a Educação Física não é o mesmo de hoje. Por isso, quando se fala em Educação Física, é preciso reflectir e provocar a reflexão, precisamente num tempo em que a reflexão é difícil e bem fácil a informação. E de uma informação, sem reflexão, a banalização pode ser o seu risco e o seu resultado. Discernir, procurar a significação e o sentido, agir intencionalmente na construção de uma nova ética cívica parece mais árduo e menos cómodo do que estudar e promover as qualidades físicas, estender o império da técnica a toda a complexidade humana, esquecer a dimensão política de qualquer conduta intencional. A operacionalização da CMH depende da cultura, da competência e da liderança do professor, do técnico, do instrutor; da compreensão e receptividade do aluno, do atleta, do paciente; e das condições sociais, que os condicionam, ou melhor, da estrutura, do sistema e da estruturação. Não se aprende tão-só, através de regras e preceitos. A práxis é insubstituível: quem não pratica não sabe! Só que a práxis supõe uma formação, uma pedagogia. Assim, a CMH não põe em causa o progresso científico, em todas as suas formas, mas rejeita o Homem Máquina de Galileu e Descartes e Newton e Kant e da “mathesis universalis” e do positivismo e ainda dos liberais “laissez-faire” e laissez-passer”, ou do
monolitismo de qualquer ditadura. A CMH só existe na medida em que assume o ser humano, na integralidade das suas funções e das suas potencialidades.
E, porque assume, zela pela salvaguarda da dignidade humana. O profissional, em qualquer uma das especialidades da CMH, deverá ser, simultaneamente, um, digamos assim, eticista (sirvo-me de expressão de raiz anglo-saxónica que traduz o profissional com formação superior, na área da ética e da biologia). No campo da educação, o profissional do desporto, ou o da dança, ou o da ergonomia, ou o da reabilitação psicomotora, poderão ter em conta a educação bancária e a educação problematizadora, tematizadas, como se sabe, por Paulo Freire. Segundo este notável escritor e pedagogo brasileiro, aquela pretende aprisionar os alunos numa situação de “imersão”; esta possibilita a “emersão das consciências” e, assim, uma inserção autónoma e crítica na sociedade. Ora, há demasiada educação bancária, no desporto, incluindo os seus aspectos pedagógicos. Em Paulo Freire, a práxis articula a acção e a reflexão. Para ser práxis, a educação desportiva não pode ser nem verbalismo, nem activismo. Manuel Ferreira Patrício escreve, a propósito: “Uma prática cega é talvez agitação, ou redunda inevitavelmente em agitação.
Só se foge a isso com a prática pensada. Ao nível das sociedades, a prática pensada é prática metódica, planificada – define finalidades e objectivos, mobiliza meios” (Lições de Axiologia Educacional, Universidade Aberta, Lisboa, p. 103). Que o mesmo é dizer: implica valores, comportamentos e relação dialógica, já que, na educação problematizadora, professor e aluno são ambos educandos. E supõe igualmente a problemática do perguntar. É em função do perguntar que o educando não se limita ao que o professor lhe ensina e que a cultura é o horizonte da educação e esta se converte no desenvolvimento da autonomia. A que se resume a filosofia de Derrida, com a sua proposta de desconstrução do continuismo fundamentador e Habermas, com a defesa da razão comunicacional e Edgar Morin, com o paradigma da complexidade e Maturana e Varela, com a teoria da autopoiesis senão a uma questão: como é possível uma “filosofia da diferença”, já que se torna impossível interpretar o mundo, a partir de um lugar arquimédico, de um ponto de vista absoluto? A Educação Física, conforme Kant a entendia nas suas Réflexions sur l’Éducation, “comum aos homens e aos animais, consiste no adestramento” (J. Vrin, Paris, 1989, p. 89). Não se esquece, neste passo, que a educação física, em Kant, também inclui a cultura da alma, pois que, neste filósofo, alma e corpo não são duas substâncias diferentes.
No entanto, “esta cultura física do espírito distingue-se da cultura moral, já
que esta última se relaciona apenas com a liberdade, enquanto aquela se relaciona unicamente com a natureza. Fisicamente, um homem pode ser muito cultivado, o seu espírito pode encontrar-se muito adornado e entretanto ele pode encontrar-se moralmente mal cultivado e mais não ser do que um homem mau” (Idem, ibidem, p.109).
6. Uma aula, ou um treino, à luz da CMH, deve principiar, com esta pergunta, feita pelos que a compõem: “Que tipo de pessoa quero eu que nasça desta aula (ou deste treino)?”. E, depois, procurar-se-á unir e não separar os vários métodos pedagógicos (ou de treino) e a filosofia que os deve acompanhar, para que se passe do conhecimento daquilo que é ao conhecimento daquilo que deve ser. O ser humano não tem, unicamente, uma existência biológica (onde são visíveis também as complementaridades indivíduo/grupo, indivíduo/espécie, indivíduo/sociedade, indivíduo/cultura), mas também uma existência, usando as palavras de Edgar Morin, antropossociológica, condicionada e construída pela sociedade, pela economia, pela cultura. Ora tudo isto deve estar presente, na educação, no desporto, na dança, na ergonomia e na reabilitação psicomotora. “Hoje, a teoria dos sistemas substituiu a visão epistémica dos objectos pela dos sistemas, ou dos sistemas-objecto, entre os quais se encontra o sistema-objecto-sujeitoobservador” (José Rozo Gauta, Sistémica y Pensamiento Complejo II. Sujeto, Educación, Trans-disciplinaridad, Biogénesis, Colombia, 2004, p. 133). De referir ainda que a noção de sistema evoluiu de uma simplicidade estática, encerrada e fechada em si mesma, para uma complexidade aberta, dinâmica, autopoiética, autorreferente e autorreflexiva, composta por elementos heterogéneos, que conformam e mantêm uma unidade sistémica, na qual as qualidades emergentes são maiores do que a soma das qualidades de cada um dos elementos. Estas ideias surgiram à margem da hiperespecialização que invadiu as várias disciplinas científicas, ao mesmo tempo que entraram de acentuar a necessidade para o conhecimento de sistemas-objectos, abertos, dinâmicos, autopoiéticos, auto-eco-organizadores e reflexivos – ao mesmo tempo que entraram de acentuar a necessidade, dizia, da inter, da trans, da multidisciplinaridade, enraizando (e não reduzindo) o físico-biológico no cultural e o cultural no físico-biológico. Com isto, não se violentam despoticamente as disciplinas, pois que elas mesmas se fortalecem no diálogo e convívio, com os outros ramos do saber. A operacionalização da CMH é praticar a unidade bio-antropo-sócio-cultural e política., dado que, em cada sistema, há elementos doutros níveis e sistemas. Cabe aos professores e aos técnicos trabalharem a complexidade, nos exercícos e nas acções, que os seus alunos e atletas assumem, visando vários objectivos, tais como: a saúde, a educação, o lazer, o trabalho, a competição desportiva (que há-de ser uma competição-diálogo, sem qualquer assomo de hostilidade). Não é ser sensato endurecer na atitude de conservação de métodos que a ciência e a filosofia consideram defuntos, irreversivel e definitivamente. O futuro da CMH só pode ser o futuro (quatro exemplos, entre outros) de um desporto e de uma dança e de uma ergonomia e de uma reabilitação que se convertam na expressão corporal do desenvolvimento sócio-económico e mesmo axiológico de um povo. O treino físico, o treino técnico, o treino táctico, o treino psicológico e o treino teórico, dentro de uma visão dinâmica e integrada (dado que o treino analítico morreu), deve inscrever-se numa linha de promoção de valores, os quais me parecem intrínsecos à CMH. O estudo e a vivência do desporto resulta no estudo e na vivência de valores, incluindo os cognoscitivos. “Colocar um problema , onde tudo parece evidente é essa a essência do pensamento criador, tanto na ciência como nos outros domínios. Levantar uma questão consiste em perspectivarmos uma realidade sob um novo ângulo. O questionamento é constitutivo da experiência, tanto da percepção como do saber que dela resulta. Pouco importa aqui a modelização do processo interrogativo” (Michel Meyer, A Problematologia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, p. 61). E escreve, mais adiante, o mesmo autor: “Que tenha cuidado aquele que pretende já ter as respostas, sem se ter interrogado, sem as ter interrogado” (p.274).
7. “De um ponto de vista conceptual, o poder encontra-se entre duas noções mais amplas: a de capacidade transformadora, por um lado, e a de dominação, por outro. O poder é relacional, mas só opera através da utilização da capacidade transformadora, tal como esta é gerada pelas estruturas de dominação” (Anthony Giddens, op. cit., p. 89). Oxalá o poder, seja ele qual for, com a vibratilidade típica do hermeneuta, se deite a pesquisar: se o que tradicionalmente se conhece como Educação Física tem, ou não, como objecto de teoria e de prática, a motricidade humana; se esta pode, ou não, organizarse, logicamente, como uma ciência humana; e, se a motricidade humana é o “corpo em acto”, os correspondentes “curricula” universitários não deverão rever-se, de modo a que se torne visível, no estudo e na pesquisa, um novo paradigma. De facto, é na busca de um novo paradigma que eu me situo – paradigma que não é objecto, mas sistema. A propósito, podemos chamar à colação o Edgar Morin de O Método – 1: “Os objectos dão o seu lugar aos sistemas; no lugar de essências e substâncias, organização; em vez de unidades simples e elementares, unidades complexas; em vez de agregados que formam corpo, sistemas de sistemas de sistemas” (p. 148). Daqui resulta que um sistema se constitui como uma rede de relações e de conexões, que podem realizar-se, quer em baixa, quer em alta complexidade (e quanto maior é a complexidade, maior é a incerteza). “Para realizar la descripción de las relaciones intrasistémicas, debemos tener en cuenta que cada elemento a su vez es un sistema con todas las características de sistema y cuyos elementos constituyentes no son elementos que pudiéramos llamar simples.
Según Luhman, la diferencia entre sistema y entorno obliga a sustituir la diferencia entre el todo y las partes por una teoria de la diferenciación de sistemas. La diferenciación de sistemas es, simplemente, la repetición de la
formación de sistemas dentro de los sistemas” (José Rozo Gauta, Sistémica y Pensamiento Complejo – paradigmas, sistemas, complejidad, Biogénesis, Colombia, 2003, p. 56). Assim, o que venho pretendendo organizar, de há quase trinta anos a esta parte, não é um novo objecto, mas uma nova unidade complexa ou sistema, a CMH. Também no desporto, na dança, na ergonomia, na reabilitação psicomotora, etc., é preciso assumir em pleno a condição humana! As aulas, nos cursos de Motricidade Humana, devem repensar-se de forma a permitirem o desenvolvimento doutras qualidades, para além das físicas, tais como: a razão, a sensibilidade, a percepção, a imaginação. É evidente que necessárias se tornam: “a aproximação personalizada do professor ao aluno; a estimulação da actividade do aluno, como modo de estar e de fazer, em que ele se sente significativamente envolvido; a produção do conhecimento, não como prerrogativa do professor, mas comparticipada pelos alunos, numa dinâmica de pesquisa sempre em aberto que permitirá, não só aprofundar a informação como ampliá-la e diversificá-la” (Emanuel Medeiros, A Filosofia como centro do currículo, na educação ao longo da vida, Instituto Piaget, Lisboa, 2005, p. 58) – mas que se tenha em conta que, numa filosofia da educação, as referências e os instrumentos não são unicamente pedagógicos. E a ideologia?
E a classe social? E a subjectividade? E a cultura? E o currículo oculto?... A superação do idealismo, ou até do oportunismo, começa na “definição de um caminho no qual está o sujeito real, que age, vive e pensa” (idem, ibidem, p. 338). Não há humanismo integral, nos hiperespecialismos, que aumentam exageradamente certas dimensões do humano e subdesenvolvem outras. O treinador desportivo, ou o ergonomista, ou o técnico de dança, etc., etc. devem radicar a sua actuação em grandes eixos axiológicos e políticos, onde se afirme o primado da ciência sobre a tradição e o primado da sensatez sobre o capricho e o primado da esperança sobre messianismos exógenos ou endógenos. A CMH é, antes de tudo, movimento imtencional e quem se movimenta, mais do que pensar, vive! Qualquer um dos aspectos da Motricidade Humana é uma forma de vida. E se “todo vivir es convivir con una circunstancia”, como dizia Ortega, no desporto (por exemplo), as funções cognitivas e afectivas do praticante são mais do que desporto, mesmo em plena prática desportiva. De salientar, aqui, que o jogo é uma oportunidade única de desenvolvimento da criança que nele aprende a aprender. A criança (e o adulto) deve jogar como se a vida e a sanidade mental dependessem da actividade lúdica.
8. Inteirados do que vem de escrever-se até aqui, é-nos lícito fazer a síntese e concluir. A CMH (ou a Educação Física, se prevalecerem os condicionalismos histórico-culturais e políticos) é uma nova ciência humana. Não há aqui qualquer assomo de positivismo ou de eurocentrismo, ou da criação de fronteiras artificiais (geradoras de claustrofobia) pois que a especificidade histórico-cultural e política da CMH é de rebeldia contra o que é aceite pelo imperialismo e pela sua colonização da realidade, através do desenvolvimento à moda ocidental (são chamados bárbaros os que se opõem a este processo civilizador). De facto, os USA e a Europa não são os únicos “sujeitos históricos”. Cada uma das comunidades humanas tem o direito de ser distinta das demais. E se o determinismo da ciência ocidental foi superado, por que não há-de suceder o mesmo com o desporto excludente - produto do capitalismo mundializado? Um outro ponto a considerar: se a profissão do graduado (ou licenciado) em Motricidade Humana radica num curso universitário, é certo que se fundamenta numa área científica (ou numa ciência mesmo), dado que a universidade é o lugar, por excelência, onde se cria e recria o conhecimento científico e daí procure proporcionar uma ampla cultura científica de base. Por outro lado, a ciência exclui, tanto o maximalismo dos militantes fervorosos de uma causa, como o imobilismo dos práticos. Reafirmo a recusa, pela CMH, do positivismo e do cientismo.
“Substituir Deus pelo Facto é forçar que a imaginação, o sonho, o desejo de eternidade morram logo ali, sem que o sentido possa ser desocultado e
perseguido (...). Em consequência, qualquer cientista prudente dir-vos-á que não deseja responder à questão do porquê das coisas e que o seu domínio de predilecção se limita à investigação do como” (Adalberto Dias de Carvalho (org.), Problemáticas Filosóficas da Educação, Edições Afrontamento, Porto, 2004, p. 51). Há fenómenos que escapam aos meios de pesquisa (investigação) das ciências. Uma lágrima, por exemplo, não é só água e cloreto de sódio. E a miséria que grassa pelo mundo não se resume a um fenómeno típico da economia, porque reveste também a dimensão éticopolítica.
Os cursos de Motricidade Humana hão-de acentuar que o saber não é um conjunto de conhecimentos puramente intelectuais, pois que a cultura é a aliança do saber e da vida. Por isso, a universidade há-de reforçar a ligação ao universo do trabalho, procurando ligações institucionais com empresas, hospitais, ginásios, clubes e com o próprio Conselho Federal de Educação Física (CONFEF). Também os cursos de Motricidade Humana não devem deixar aprisionar-se pelo modelo biomédico tradicional (que decorre das seguintes premissas: ênfase em medidas numéricas e em dados bioquímicos, dualismo corpo-mente, visão das doenças como entidades, reducionismo, ênfase no doente individual e não na família ou na comunidade) porque a saúde passou a ser observada doutra forma. A evolução do conceito de saúde estuda-se, hoje, dentro de um conceito sistémico. Depois, os profissionais de Motricidade Humana deverão trabalhar na Saúde, mas também no Desporto, na Educação, no Lazer, no Trabalho. A MotricidadeHumana terá futuro se formar educadores-pesquisadores (criadores de condições que humanizem a vida de cada um de nós, como cidadãos, como profissionais, como pessoas) e não professores (simples
transmissores de velhos conhecimentos). A problemática dos profissionais de Motricidade Humana inscreve-se no círculo mais amplo da problemática da formação humana. Eles são, indubitavelmente, formadores, isto é, recebem e dão formação, em vista a um futuro, no qual a variedade seja unidade também.
9. As reflexões que atrás produzi manifestam a minha admiração pela excelência dos objectivos do CONFEF, o qual não se limita, no seu labor diário, às frias estatísticas, referentes ao aumento do número de associados, ou aos problemas jurídicos e administrativos de uma profissão, ou à formulação de políticas governamentais, adequadas à qualificação dos professores de Educação Física brasileiros, mas que (trabalho raro, em todo o mundo, em instituições congéneres) pretende transformar-se em fonte de pensamento prospectivo sobre as grandes questões científicas e filosóficas que a Sociedade do Conhecimento coloca à chamada Educação Física, no Brasil. De facto, as reflexões que atrás produzi (repito) ocorreram-me, na sequência de duas reuniões (e uma terceira já se anuncia, para breve) que o CONFEF, representado pelo Prof. Doutor João Tojal, promoveu e realizou e em que tive a honra de participar. As instituições do ensino superior, no Brasil (e não só) que estudam, ensinam e pesquisam os vários aspectos da Motricidade Humana (educação física escolar, desporto, dança, ergonomia, reabilitação, etc.) deveriam assumir postura idêntica, com a criação de estruturas vocacionadas ao diálogo reflexivo e criativo, que preparem as referidas instituições às exigências de uma sociedade em constante mutação. A tendência natural, em alguns professores que perderam hábitos de estudo, é a resistência à mudança e a cegueira ao trabalho, também neste âmbito inovador, do CONFEF. O futuro das instituições, o cumprimento de programas estratégicos e a qualidade do desempenho dependem da implementação de uma democracia participativa que, porque é universitária, há-de inscrever-se no círculo mais amplo da filosofia educacional. Em Portugal, o Reitor da Universidade de Évora e meu querido amigo, Manuel Ferreira Patrício, não se cansa de afirmar: “Cada um de nós é uma perspectiva epistemológica, sobre o mundo e sobre o conhecimento. Ninguém se forma, nem é formado, iludindo esta realidade”. O CONFEF também parece fazer suas as palavras deste ilustre pedagogo português (que aliás radica muito do seu pensamento pedagógico em Paulo Freire) e, por isso, não se deixa ficar numa atitude de autocontemplação acrítica e, com a sua teoria e prática interventoras, tem em si a génese de um questionamento permanente da Educação Física brasileira.


O desporto como filosofia de transformação social
Manuel Sérgio Vieira, teorizador do desporto, político e humanista, defende.
Considerado recentemente como um dos sete principais teorizadores do desporto a nível mundial, Manuel Sérgio Vieira é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado em Motricidade Humana pela Universidade Técnica de Lisboa (UTL). A sua tese de doutoramento, intitulada “Para uma Epistemologia da Motricidade Humana”, defende a existência da ciência da motricidade humana, de que a educação física é a pré-ciência, e fundamentou a criação da Faculdade de Motricidade Humana da UTL. Conferencista de nível mundial, é também sócio da Associação Portuguesa de Escritores, autor de 27 livros e inúmeros artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Foi presidente do Partido de Solidariedade Nacional e deputado da Assembleia da República, entre 1991 e 1995. Desde 2001, é também colaborador regular do jornal A Página da Educação, onde partilha a rubrica “Educação Desportiva” com os seus colegas André Escórcio e Gustavo Pires. Nesta entrevista, Manuel Sérgio explica porque razão considera a motricidade humana como uma nova ciência social e humana e quais os motivos que o levam a afirmar que ela tem um fim eminentemente político. É que, na opinião de Manuel Sérgio, o principal avanço epistemológico que a educação física deve procurar hoje em dia é reconhecer as “raízes políticas do seu próprio nascimento”.
Uma das questões que tem caracterizado o debate sobre a identidade na educação física nos últimos anos passa por saber se ela é uma actividade pedagógica ou uma ciência em si mesma. Como é que se originou este debate?Antes de mim já outros teóricos tinham discutido este tema. Eu comecei a pôr esse paradigma em causa quando entrei para o Instituto Nacional de Educação Física, em 1968, e avancei para uma nova ciência através de uma teorização inédita. Na minha opinião, era evidente que esta área estuda as pessoas como um todo e não apenas o aspecto físico. O conceito de educação física nasce com a idade moderna, com o racionalismo, num tempo em que se julgava que o ser humano era composto por duas substâncias distintas – corpo e alma –, e em que, ao mesmo tempo, emerge o capitalismo. A educação física, enquanto separação do ser humano em corpo e alma, é também ela o reflexo da separação da sociedade em senhor e servo.O que o professor defende na sua tese de doutoramento “Para uma Epistemologia da Motricidade Humana”, que o tornou conhecido, é exactamente o contrário...Sim, na medida em que o espírito emerge do corpo e que não podemos separar um do outro. O ser humano é uma complexidade - para utilizar a linguagem hegelo-marxista -, ou melhor, uma totalidade. Como tal, a expressão educação física reflecte um tempo que já não é o nosso e deve, portanto, ser posta de lado. De acordo com o positivismo ideológico e racionalista que lhe dá origem, é uma expressão despolitizada, na medida em que se refere apenas ao aspecto físico. O grande salto que hoje a educação física deve dar é no sentido de reconhecer, antes de mais, as raízes políticas do seu próprio nascimento.Defende a tese da motricidade humana enquadrando nela a educação motora mais do que a educação física…Sim, é uma educação motora porque se trata de pessoas em movimento intencional tentando superar e superar-se. Alguma vez no desporto vemos apenas o esforço físico em presença? Não, vemos pessoas que cantam, que sofrem, que amam, que choram, que gritam...isso é o que está dentro de nós. Portanto, a educação física ou é uma tradição ou é uma ignorância.Se pudesse resumir numa ideia apenas o fundamento da sua tese de que forma o faria?Que a ciência da motricidade humana é uma nova área das ciências humanas que estuda o ser humano em movimento intencional tentando superar e superar-se. E quando eu falo em superação não me refiro apenas à superação física – que seria o mesmo que estarmos a trabalhar metade de nós próprios – refiro-me sobretudo à superação ideológica, ética, ou seja, o indivíduo na sua totalidade a tentar superar-se. A minha teoria tem um fim eminentemente político, não tenho qualquer receio de o afirmar.O presidente da Federação Internacional de Educação Física e vice-presidente da Associação Internacional das Escolas Superiores de Educação Física, o brasileiro Manoel. José Manuel Gomes Tubino, publicou um livro onde analisa as teorias da educação física e do desporto e o considera como um dos sete principais teorizadores do desporto mundial. Como se sente ao ver o seu trabalho reconhecido?Não sinto nada em especial, porque conheço os meus limites. Se é verdade que criei qualquer coisa nova, o facto é que ela não é aceite pela esmagadora maioria dos professores de educação física em Portugal, porque eles têm receio de acabar com a expressão "educação física". A ciência da motricidade humana forma técnicos desportivos, técnicos de dança, técnicos de reabilitação, ergonomistas, etc. Mas na sua origem está o ser humano querendo chegar mais alto. O desporto não se fundamenta em si próprio. A essência do desporto é anterior a ele mesmo. É o ser humano em movimento intencional. Portanto, há algo antes do desporto. E é esse algo que erra. É isto o próprio desporto.A sua teoria tem um fundamento indissociavelmente filosófico…Sim, partindo de duas grandes raízes: a cristã e a hegelo-marxista.Porque razão acha que a sua teoria ainda não é geralmente aceite?A minha teoria não é geralmente bem aceite por um puro sentimento de corporativismo e porque é muito difícil aceitar uma mudança de paradigma: a passagem do plano meramente físico ao plano político assusta. Sabe-se perfeitamente que a educação física tem um intuito pedagógico, de disciplina, de respeito pelo adversário, mas, na prática, ela educa pessoas quase com fins bio-médicos. Eu pretendo ir além de tudo isso. Há uma sociedade injusta que é preciso transformar, e, na minha opinião, o desporto tem de ser uma forma de contra-poder.Quase se pode dizer que tem um fundamento revolucionário…Sim, mas não pode ser de outra maneira. O desporto está de tal modo conluiado com esta sociedade injusta que não há outro caminho a seguir. O desporto serve hoje, acima de tudo, para adormecer as pessoas à custa da sociedade injusta estabelecida. Muitas pessoas têm medo de pegar nestes temas e na minha tese precisamente porque ela questiona este pressuposto. Depois, há um corporativismo que se torna muito difícil de vencer. Parafraseando uma célebre expressão: “O desporto é um aparelho ideológico do Estado".
O desporto como revolução social
A prática desportiva é um hábito pouco enraizado nos portugueses. Aliás, de acordo com um recente estudo da União Europeia, somos o país da Europa que menos pratica desporto. Que razões encontra para este facto? Em Portugal subsiste uma ideologia retrógrada e integrista, herdada do catolicismo, que vê o corpo como algo de desprezível. Felizmente, essa perspectiva tem vindo a desaparecer aos poucos… O que eu gostaria de dizer àqueles que se preocupam com o facto de as pessoas não praticarem desporto, é que se questionem eles mesmos sobre se este desporto faz bem a alguém ou que, por si só, ele dá saúde. São interrogações necessárias, tal como é necessário o professor de educação física e o técnico desportivo, por exemplo, questionarem-se sobre que tipo de pessoa querem formar a partir da respectiva aula ou treino. Temos de nos convencer que a saúde não advém apenas do exercício físico, mas também da paz de consciência. Nesse sentido considero que andamos iludidos…Não se deverá também à falta de incentivos e de condições para a sua prática?Sim, isso também é verdade. Mas o mais grave é ver que hoje em dia as pessoas são empurradas para os grandes espectáculos desportivos e adormecidas por eles. Onde é que nos jornais desportivos se fala do desporto de lazer, do desporto de recriação, do desporto escolar? Nada, ou quase nada. É uma sociedade mercantil, rendida ao espectáculo. É ridículo apercebermo-nos que, actualmente, quem faz mais publicidade ao desporto de lazer são as grandes centrais de venda de material desportivo… O que dá saúde é uma sociedade diferente, e nessa sociedade diferente vai aparecer o verdadeiro desporto, porque não se pode isolar o desporto da sociedade em que ele nasce.Não tem receio que a sua teoria possa ser considerada utópica?Na minha opinião, utópico é insistir numa sociedade onde não há pão para todos, onde não há educação para todos, onde não há saúde para todos, e pretender que exista desporto para todos, é com certeza utópico. Ainda ontem ouvi que apenas doze por cento dos portugueses faz desporto. São concerteza os mesmos portugueses que têm direito ao pão, à saúde e à educação. Porque os outros, os que não têm, também não têm direito ao desporto. Temos de começar a ver as coisas de outra perspectiva…Portugal tem uma fraca representação desportiva a nível internacional, limitada habitualmente aos sucessos do futebol ou do atletismo. Que comentário lhe merece a política de captação e de formação para o desporto de competição em Portugal?O desporto de competição faz-se através de uma especialização precoce. Como acontece em alguns países, onde se procuram crianças com aptidões e se faz delas campeões logo desde garotos. Se não há um trabalho de captação, de detecção de talentos, é evidente que se torna difícil o aparecimento de campeões. Mas eu volto a insistir: na minha opinião o campeão em desporto só se justifica com a expressão corporal do desenvolvimento sócio-económico de um povo. Caso contrário, é um sucesso fictício. Não consigo conceber campeões em países como o Quénia e outros que tal… Em países onde se passa fome há campeões? Pelo contrário, num país que tem tudo para todos, brotam naturalmente os campeões no desporto, como brotam os campeões nas artes, nas letras, nas ciências. Para mim isso é que é, de facto, um desporto verdadeiro. Eu sei que isto pede uma revolução social, mas não há outra maneira. Já há muitos anos que nos andam a enganar. Chegou a altura de dizer "basta" e começar a ver o desporto de outra forma.Mas, limitando-nos ao actual contexto, falta o quê? Uma estrutura organizativa mais capaz?Em Portugal tudo é canalizado em função do futebol. Repare que no atletismo, por exemplo, só temos grandes fundistas. Porquê? Porque é mais fácil pôr indivíduos a correr por aí fora… Não temos grandes atletas no salto em altura, por exemplo. Depois, os próprios Jogos Olímpicos são uma forma de os países afirmarem a sua superioridade, e eu não reconheço nisso nada de educativo.O desporto perdeu a sua característica de actividade competitiva salutar para se transformar num negócio altamente lucrativo. Acha que através desse processo se tem vindo a perder a verdade desportiva? Eu penso que não é por acaso que os políticos apoiam tanto o desporto. O desporto adormece as pessoas e leva-as a discutir jogos de futebol a semana inteira e a esquecer os problemas essenciais da vida. É por isso que o desporto devia vir em segundo lugar, não em primeiro. Eu sou um indivíduo que gosta de desporto e do espectáculo desportivo, não é isso que está em questão. O que critico é o facto de se dar mais valor ao desporto de alta competição e ao espectáculo a ele associado do que à criação de uma sociedade que proporcionaria o espectáculo desportivo em condições, tal como proporcionaria o teatro, a música, etc. Nós temos de criar um espaço onde o desporto não seja uma mentira. Nesse sentido, não me interessa se vamos ganhando mais ou menos taças… Que conselho daria aos professores de educação física no sentido de estimularem os alunos para essa visão antropológica do desporto? Diria que pensassem que cada gesto desportivo tem de equivaler a um momento de reflexão, onde esteja presente o fundamento ético e político que humaniza a nossa acção. As aulas de educação física são um espaço de politização extraordinário - atenção: eu chamo-lhe politização, não partidarização -, um espaço que pode fazer homens livres e criar consciências críticas. O desporto tem possibilidade de fazer isso como provavelmente mais nenhuma disciplina terá.No contexto do que tem vindo a defender ao longo desta entrevista, como caracterizaria o actual modelo de formação dos professores em educação física?Aí também tem de haver outra revolução. O actual modelo de formação de professores de educação física é centrado num racionalismo e num empirismo próprio do tempo de Descartes: tudo é científico é matematizado. Ora, o que é científico é a matemática, o ser humano não cabe dentro dum número. Como tal, temos de caminhar o mais depressa possível para uma metodologia específica das ciências humanas, onde o suporte empírico seja visto como indispensável. Não estou a afirmar que os números não sejam necessários, estou a dizer que não bastam. A formação superior em educação física tem de passar a ser considerada uma ciência humana, onde se estuda, teoriza e pratica.
O mestre de José Mourinho
Para além da sua faceta de homem do desporto, o Manuel Sérgio tem também um passado político de relevo. Como foi essa experiência? De facto, fui o primeiro presidente do Partido de Solidariedade Nacional. Não me arrependo de nada do que fiz na vida, mas admito que essa é uma página menos feliz no meu percurso. Quando entro para o Partido de Solidariedade Nacional ele era uma força política com uma base alargada de reformados, que lutava pelas pessoas com reformas miseráveis e pelos interesses de uma camada da população onde há problemas de solidão, de miséria, de exclusão, etc. A partir de determinada altura entusiasmei-me e julguei poder fazer ali um trabalho bonito, criar uma ideologia fundada na própria ideia de solidariedade e fazer dele um partido inter-geracional, com lugar para novos e para velhos. Porém, cheguei à conclusão que estava rodeado de velhos no corpo e na alma que não me aceitaram. Eu era um corpo estranho, a mais… No entanto, devo dizer que quando saí aquilo praticamente acabou. As coisas só vivem quando se transformam. Não fazia sentido aquilo ser um partido dos reformados, tinha de ter uma justificação ideológica. Julgo que me adiantei muito em relação àquelas pessoas. Mais tarde tive convites para integrar outros partidos, mas recusei.Ficou desiludido com a política?Sim, e acima de tudo um pouco desiludido comigo próprio, porque não soube ver rapidamente que aquele não era um meio para mim. Há muitos momentos em que não sou forte. O tempo que estive na política foi para mim um período de grande aprendizagem, mas não me senti realizado.Para além da sua actividade docente, a que mais se dedica actualmente? Que outros interesses tem?Tenho viajado pelo estrangeiro, de onde recebo convites para leccionar, sobretudo da América Latina, onde a minha teoria sobre a motricidade humana está a penetrar com algum sucesso.Aquele que foi reconhecido, este ano, como o melhor treinador de futebol do mundo, tem a fama de dar um particular destaque ao trabalho psicológico com os jogadores, ou seja, vê a competição e o desporto não só como um produto do esforço físico, mas também como um produto do esforço humano. Tendo em conta que o José
Mourinho foi seu aluno, pensa que ele interiorizou alguma das suas ideias e as aplica no seu trabalho?Em primeiro lugar gostaria de dizer que o José Mourinho é um homem invulgarmente esperto, possuidor de grandes qualidades intelectuais. Ele apanhou de mim - como ele próprio diz -, a idéia pela qual desde sempre me debati e que tenho vindo a defender: que é necessário reconhecer o desporto como uma área das ciências humanas. Eu próprio lhe disse: “pode saber muito de preparo físico, de técnica e de táctica, mas se não trabalhar o indivíduo há-de ser um treinador igual aos outros”.Ele ouviu isso da minha parte. E, na realidade, ele trabalha os jogadores na perspectiva do indivíduo. Apesar de não partilhar da mesma orientação política que eu defendo, de qualquer maneira julgo que terá aprendido alguma coisa comigo. Tive muitos alunos que agora são grandes técnicos de futebol, mas julgo que só ele conseguiu apanhar o cerne da minha tese.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa