quinta-feira, fevereiro 13, 2020

BANGSE: UM OUTRO CÍRCULO ... UMA NOVA SEMENTE ...


                                                     IVAN CAÇÃO



BANGSE:
UM OUTRO CÍRCULO ... UMA NOVA SEMENTE ...
               




                                                                                             Revisão                     
                                                                                     Jacob Lebensztayn



PREFÁCIO

                Em outro círculo, uma nova semente, nada mais que a vida de Bangse, acontecimentos que ele passou em outra existência, em outra realidade, um novo ser do Big-Bang§ao Big-Bang. Pode ser uma existência melhor ou pior, não se sabe, o leitor descobrirá.
                Às vezes, os governos através dos meios de comunicação nos informam de campanhas contra a fome, de lutas contra a miséria. Assim, somos informados que famílias, crianças e velhos morrem de penúria e inanição. Todos os leitores e telespectadores ficam indignados com a injustiça, eis que movidos pela solidariedade ajudamos, como alguém responsável por ela. Um sentimento de culpa pela injustiça ou um sentimento de solidariedade?
                Talvez busquemos ser heróis, ajudando o próximo; não como um super-herói, mas como alguém que tem um sentimento sensato, cuja ação se manifesta em honradez e espírito de justiça. Após o ato de ajuda sentimo-nos dignos de nós como alguém que ajudou o próximo.
                A maioria das pessoas têm em sua construção essa ética, esse senso moral elaborado nas consciências, de tal forma que faz de nós os culpados de sermos tão perversos para com o outro; ao mesmo tempo, os culpados sempre se fazem de vítima e estão por trás da elaboração de um modo de vida pré-existente culturalmente.
                O que fazer?
                Será que devemos igualar-nos aos perversos que utilizam de artifícios para o domínio público, ou deveríamos ser conscientes de nós e dos outros? Talvez seja necessária uma ação que busque um sentimento mínimo de responsabilidade, reconhecendo o outro como igual. Podemos reconhecer isso como um atributo de responsabilidade para com a humanidade, capaz de satisfazer a suprema realidade interior, capaz de transformar e fundir o “ser” com o “humano”. Talvez este seja o maior poder do homem.
                Nessa perspectiva, resta-nos ser bons ou ruins, solidários ou egoístas, sermos livres ou capazes, termos o poder ou sermos o poder.
                O fato de você ser solidário, livre e ter o poder de decisão ao ajudar aquele que precisa, não quer dizer que seja um dominado. O fato de você ser egoísta, potencialmente capaz e ser o poder não quer dizer que domina. O fato de ser solidário e egoísta, ser livre e capaz, ter o poder e ser o poder também não justifica a qualidade de sua alma para com um provável Deus, isto é, não justifica um potencial de sentimentos elevados, nobres de espiritualidade, magnânimos.
                Conhecer, entender, eis a responsabilidade. Buscar uma vida virtuosa e agir em conformidade com a razão, respeitar a natureza, ser solidário, sentir-se feliz, independente de domínio político, filosófico, espiritual ou religioso, que mal há?
                Nossa conduta nos faz ser o que somos.
                Que mal há em respeitarmos uma vontade divina, mesmo no caso de uma não existência de Deus, de agirmos em conformidade vinda de uma “consciência” superior se o que estamos fazendo é para o bem do próximo? Se pudermos ser felizes por uns instantes ao beneficiarmos o próximo, mesmo que seja uma felicidade construída em nós ou uma vontade divina, o fato é que aquele que tem fome sofre com a fome. Independente de existir ou não Deus, independente de estarmos sendo usados por políticos e políticas culturais, o fato é que estamos dando momentos de felicidade para o necessitado.
                Eis a qualidade de nossa alma para com Deus, eis o amor ao próximo e a responsabilidade pela salvação do próximo, conforme exige a fé.         
                Eis a virtude internalizada da relação do homem com Deus.
                Você tem a livre vontade, você pode fazer o bem ajudando, tratando bem o próximo, respeitando a vida dos outros, respeitando a sua vida, respeitando os bens adquiridos pelo próximo; ou partir para o uso de drogas que possam apressar sua destruição prejudicando a si e aqueles que o cercam, ou partir para a violência e o mundo do crime; você, político profissional, tem o poder de escolha para desfrutar do dinheiro público para sua felicidade; é possuidor de tal poder. Você tem o poder de, com suas ações, frear a corrupção, através de normas, leis; usar o que for necessário para inibir ou até punir a corrupção e o desvio do dinheiro público. Você pode escolher entre o bem e o mal, tem a capacidade de escolher o que é melhor para si sem o prejuízo alheio. Por pior que seja o sistema, você tem outra opção. Você sabe que ninguém pode ser completamente feliz. A felicidade não está naquilo que pode prejudicar o outro. A felicidade está em ser mais um, em existir, transformando a existência alheia em uma realidade melhor.
                Lembre-se: a Natureza é o reino da necessidade do acaso, de acontecimentos regidos por causa e efeito. Então, o que fizer contra a humanidade, contra o próximo ou contra você mesmo é sua responsabilidade. Não culpe a Deus nem aos outros, você é possuidor de uma vontade livre para inclinar-se diante de um coração farto de generosidade e ser um sujeito melhor. Você escolhe como deve viver e decide como agir. O mundo está aí. Viva intensamente, mas pense bem: você pode deixar de lado esse coração enganoso e desesperadamente corrompido pelo “ter” e saber a importância que se encontra no “ser”.
                Você viverá várias encarnações, viverá em vários círculos de existência. Pense bem: você tem a livre vontade, você tem o poder maior. Eis a questão!

                         O NASCIMENTO DE RAFAEL / BANGSE

                Madeira aguardava na sala de espera do Hospital Público Municipal notícias de Isaura, que se encontrava numa sala de parto. Entre uma reza e outra, Madeira começou a pensar em sua vida, desde sua vinda para São Paulo até o dia em que conhecera Isaura.
                “Saí do Estado de Minas Gerais e vim para São Paulo; ainda era uma criança, quinze anos. Meu primeiro emprego foi como engraxate no Mercado Municipal. Desde menino sempre fui chamado de Madeira. Minha doce mãe criou sozinha todos os filhos. Que mulher maravilhosa! Meu pai – balançou a cabeça, deu um leve sorriso de desprezo entre os lábios e continuou – deixou-a e nunca mais apareceu. Engraçado que ninguém em casa nunca mais teve notícia de papai.
                Quando cheguei a São Paulo, que diferença, uma imensidão de cidade! Afinal não dá para comparar com a pequenina cidade em que morava em Minas Gerais. Logo que cheguei a essas redondezas, lembro-me de cantarolar enquanto engraxava. Havia clientes que reclamavam: “Pare de cantarolar, garoto!”, mas muitos gostavam. A habilidade que tinha com o pano na hora do lustre nos sapatos e as jogadas para cima com a escova ajudavam a atrair mais clientes. Até ensinei alguns amigos, mas com uma condição: que eles trabalhassem mais afastados de mim. Frequentei a escola apenas para aprender a ler e escrever razoavelmente. Lembro-me que minha maior felicidade foi quando aprendi a gramática. Minha mãe sempre me ensinou a ser simples e educado com as pessoas, pois ela era simples, honesta e muito religiosa”.
                Em seguida, Madeira se levantou do sofá e, dirigindo-se a uma das enfermeiras, perguntou-lhe se estava tudo bem com a esposa. Ela pediu que tivesse paciência, tudo corria bem.
                Caminhando de um lado para outro no hospital, Madeira continuou pensando no passado:
                “A vida nos obriga a carregar tantos fardos, mas esta é a rotina pesada que as grandes metrópoles nos impõem. Assim é a vida, somos coagidos a continuar, somos carregados sem muita escolha. – Colocou a mão direita no ombro esquerdo. – Em meus ombros há calos até hoje devido ao peso da caixa de engraxate, que carregava de um lado para outro. Eu era grande, comparado aos meninos de sete anos que também engraxavam sapatos. Imagino como deveria ser pesado o peso da caixa nas costas para um menino de sete anos! – Lembrou-se de outras atividades para ganhar alguns trocados: Às vezes ajudava as pessoas a transportar mesas, mobílias e sacos pesados por alguns centavos. Gostava muito de olhar a perturbação caótica do trânsito, pessoas sendo levadas por carros e ônibus”.        
                Seu pensamento se encaminhou para o momento em que conheceu Isaura.  
                “Lembro-me das mulheres bonitas que passavam para trabalhar em frente ao Mercado Municipal; e foi ali aos dezessete anos que conheci Isaura. Ela era uma linda jovem! Tive muita sorte, pois, além de linda e carinhosa, possui uma extrema preocupação para com o próximo, que às vezes até incomoda. Tinha dezesseis anos e trabalhava de vendedora em um dos boxes de frutas. Achava que ela nunca namoraria um engraxate. Um dia tive coragem e convidei-a para tomar um sorvete. Ela aceitou. Dali para cá as coisas melhoraram muito; fui trabalhar na marcenaria de seu Orlando, na qual permaneço até hoje”.      

                Enquanto Madeira permanecia entretido em seus pensamentos, perambulando de um lado a outro à espera de novidades, passaram-se as horas. Após duas horas de trabalho de parto, a enfermeira entrou na sala de espera, dando os parabéns a Madeira. Ele ficou muito feliz, agradeceu a Jesus Cristo e pediu para ver Isaura e o bebê.
                Isaura, já no quarto do hospital, recebeu Madeira com o bebê em seu peito, dizendo:
                – Querido, este é nosso Rafael.



                                   A PESTE NEGRA
               
                Enquanto isso se passava com Bangse, em seu círculo como Rafael, num outro círculo uma jovem mulher em pleno século XIV, na Europa, dava à luz uma criança.
                Essa foi uma época em que a “peste” ou a “morte negra”, como era conhecida, fora responsável pela morte de milhares de pessoas. Época em que dezenas de pessoas tiveram de ser queimadas em piras, já que não havia mão de obra suficiente para enterrar os mortos.
                Os ratos pretos de Caffa, chegados em navios mercantes atracados nos portos, se espalhavam por toda parte, transmitindo as suas pulgas infectadas aos ratos das cidades.
                Bocaccio descrevera os sintomas da seguinte forma:
                – A doença se iniciava com as inchações. No começo apareciam inchações na virilha ou nas axilas, tanto em homens como nas mulheres. Algumas delas cresciam como maçãs, outras como um ovo; umas cresciam mais, outras menos; o povo as chamava de bubões. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se, aparecendo manchas de cor negra ou lívida nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora, ainda era indício inevitável de morte. Como os bubões, as manchas, com o tempo, passaram a ser mortais.
               Bocaccio descreveu, também, a dificuldade de dar sepultura à grande quantidade de corpos.
“Já não era suficiente a terra sagrada junto às igrejas; por isso passaram a edificar igrejas nos cemitérios; punham-se nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios”.
            Outra importante pessoa que descreveu aqueles difíceis momentos foi o Papa Clemente VI Guy Chauliac, famoso cirurgião da época (Avignon, França):
             “A grande mortandade teve início em Avignon em janeiro de 1348. A epidemia se apresentou de duas maneiras. Nos primeiros dois meses manifestava-se com febre e expectoração sanguinolenta e os doentes morriam em três dias; decorrido esse tempo, manifestava-se com febre contínua e inchação nas axilas e nas virilhas e os doentes morriam em cinco dias. Era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo. Não se sabia qual a causa dessa grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os judeus haviam envenenado o mundo e por isso os matavam”.

            Inexplicavelmente a peste se espalhou, atingindo a Grã-Bretanha, Portugal, a Escandinávia, a França e toda a Europa, exceto, justamente onde vivia a criança que a mãe acabara de dar à luz, em Milão.
            A estrutura política que na época prevalecia em Milão era igual à de toda a Europa feudal. As relações entre os vassalos e suseranos eram vivenciadas da seguinte forma: o suserano era quem dava um lote de terra ao vassalo, sendo que este último deveria prestar fidelidade e ajuda ao seu suserano. O vassalo oferecia ao senhor, ou suserano, fidelidade e trabalho, em troca de proteção e um lugar no sistema de produção. As redes de vassalagem se estendiam por várias regiões, sendo o rei o suserano mais poderoso.
Assim, todos os poderes jurídicos, econômicos e políticos concentravam-se nas mãos dos senhores feudais, donos de lotes de terra denominados feudos.
            A nobreza feudal, composta pelos senhores feudais, cavaleiros, condes, duques e viscondes, era detentora das terras (feudos) e eles arrecadavam os impostos dos camponeses. O clero (membros da Igreja Católica) tinha grande poder, pois era responsável pela proteção espiritual dos demais, arrecadava o dízimo e estava livre de impostos.
            Os servos (camponeses) e pequenos artesãos pertenciam à camada mais baixa da sociedade. Eram eles que pagavam as taxas e tributos aos senhores feudais. Economicamente viviam da agricultura e do artesanato. Na Idade Média havia moedas, porém eram pouco utilizadas; o mais comum era a troca de mercadorias.
            Além de rica, possuidora de um grande poder econômico (os feudos) e de grande quantidade de servos, a Igreja Católica dominava o cenário religioso, influenciando no modo de pensar e agir da comunidade feudal. Os monges que viviam nos mosteiros eram responsáveis pela proteção espiritual da comunidade; passavam grande parte do seu tempo rezando e copiando livros e a Bíblia.
            O meio mais utilizado para se obter o poder na Idade Média era a guerra. Nelas  se utilizavam escudos e espadas num confronto direto, formado por cavaleiros, que eram corajosos e leais aos senhores feudais e ao seu rei.
            Enquanto os servos e sua família trabalhavam quase como escravos, os filhos dos nobres estudavam; numa doutrina religiosa aprendiam o Latim e táticas de guerras.
            A cultura estava presente nos vitrais religiosos que retratavam passagens da Bíblia e ensinamentos religiosos nas igrejas e nos castelos.
           

O NASCIMENTO DE BIJA

                E justamente nessa época nasceu o filho de Boa Ventura, cujo nome significa “boa sorte” em italiano, e Delia, palavra que vem do grego “delos” e significa “visível”, era o nome de Ártemis, a Deusa da Lua. Dessa união nascia naquele exato momento Vayu, cujo nome significa “ar, forma cósmica da energia sutil”, “aquele que se move por toda parte”. Esse nome seria dado pela parteira Sattya, que significa “tranqüilidade, conhecimento, clareza, pureza”. Sattya era uma senhora indiana muito amiga de Delia e filha do velho Sr. Prana, cujo significado é “energia sutil”.
            Os pais de Vayu comemoraram muito o nascimento do filho, pois era uma época difícil em que poucas crianças sobreviviam após o parto. A mortalidade infantil era altíssima em virtude da precária estrutura higiênica social.
            O velho Prana, de religião hindu, havia vindo da Índia e, segundo ele, com a missão divina de dar a educação hindu para Bija, cuja tradução é “semente” (Bija era o apelido que Prana deu a Vayu).
            Poucas horas depois do parto, Sattya pegou o menino e mostrou ao seu pai, o velho Prana.
            – Não há dúvidas, este é Bija.
            Boa Ventura e Delia não acreditavam muito nas histórias do velho mestre, mas o admiravam pelo conhecimento em plantas medicinais, por sua habilidade com as agulhas (acupuntura) e sua capacidade de meditação com exercícios de ioga naquela idade, 80 anos.
            Prana nascera na Índia na região de Sanatana Dharma, que significa “Religião Eterna”. Ele acreditava que Vayu era um “Avatar” (manifestação corporal de um ser imortal, por vezes Ser Supremo). Essa palavra deriva do sânscrito “Avatãra” que significa “descida”, denotando uma das encarnações de Vishnu, que os hinduístas acreditavam ser um Deus. Vishnu é a mistura de duas palavras: Hindi, que quer dizer “raiz”, e Sans Vishva, que significa “tudo”. Ao juntar a palavra Shiva e Brahma, tem-se Trimurti, a trindade divina hindu. E Vishnu é um Deus.
            Prana acreditava que Cristo era uma das encarnações de Buda. Mas temia passar isso para Vayu pelo simples motivo da dominação imperial da Igreja Católica, o que poderia influenciar a submissão de Vayu ao poder da elite, atrapalhando sua educação hindu, a ioga e os ensinamentos indianos.
            Desde os primeiros passos de Vayu, Prana ensinou tudo ao garoto, porque, devido à sua idade, trabalhava menos tempo na lavoura. Assim, dedicava-se aos ensinamentos de sua religiosidade e crença ao menino. Porém, tudo era muito escondido, simplesmente porque aquele que não seguisse a religião católica era caçado por bruxaria.
            Não se sabe ao certo o total de vítimas queimadas por terem sido acusadas de bruxaria na Idade Média, alguns registros acusam cerca de cinqüenta mil a nove milhões. Porém, os cem anos mais histéricos do movimento de “caça às bruxas” ocorreram entre 1550 e 1650. Em algumas regiões não havia julgamento, e simplesmente as mulheres foram queimadas devido à simples desconfiança por parte da comunidade local. Isto porque as cortes seculares locais eram as mais cruéis: as vitimas eram julgadas e executadas. Dados comprovam que cerca de vinte e cinco por cento eram homens e setenta e cinco mulheres, vítimas de tais condenações. Havia até um manual de caça às bruxas, o “Malleus Maleficarum”, que significa o “martelo das bruxas” ou o “martelo das feiticeiras”, publicado em 1487 e dividido em três partes. A primeira ensinava os juízes a reconhecerem as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes. A segunda expunha todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os. A terceira regrava as formalidades para agir “legalmente” contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las e condená-las. Depois vimha a condenação, que praticamente forçava as pessoas a confessarem por meio de torturas muito cruéis; o próximo passo era queimar a pessoa viva.
            Por isso, os únicos que sabiam a filosofia e seguiam a religião hindu eram  Sattya e Prana, que aos poucos passou esses ensinamentos a Vayu, o qual todos chamavam de Bija. Nem Delia, nem tampouco Boa Ventura sabiam do segredo carregado durante todo o tempo em que moravam embaixo do mesmo teto; somente presenciavam Prana fazer seus exercícios. Era em alguns locais da floresta que o velho mestre e Sattya praticavam suas meditações. Assim, ao mesmo tempo que Bija era levado pelo pai e pela mãe aos ensinamentos da Igreja Católica, Prana lhe ensinava toda a cultura  hindu. Assim cresceu Bija.

Os ensinamentos de Prana
            A primeira vez em que Bija entrou na floresta com Prana foi aos sete anos de idade. Ao caminharem em direção à floresta, o velho mestre disse:
                – Bija, o que sente em seu corpo?
                – O vento, respondeu o menino, após inspirar e expirar profundamente algumas vezes.
                – Prossiga com essa respiração. E Prana continuou: Dê-me a mão, feche os olhos e respire lentamente enchendo bem seu peito; agora diga tudo que sente.
                Depois de alguns minutos enquanto caminhavam juntos, Bija respondeu:
                – Sinto o vento em meu corpo, o mato em que piso, o capim que às vezes desliza pelos meus braços; ouço o vento entre as árvores, os pássaros cantarolando; sinto o cheiro da mata, o gosto do orvalho em minha boca.
                – Ainda não abra os olhos e diga o que vê. – falou o velho mestre enquanto caminhavam.
Vejo uma luz espelhada na figura de um homem, com um azulado na extremidade. É muito forte.
            Prana pediu para o menino abrir os olhos. Ele abriu os olhos e disse:
            – A luz continua ali perto daquela árvore. Ela é igual à que vejo desde pequenino, quando me abraçava e me fazia carinho.
            Prana não sabia do que Bija falava, isso porque ele via outras imagens, mas nenhuma luz parecia com aquela que o garoto descreveu. Continuaram os passeios enquanto Prana lhe falava de toda a filosofia hindu. Por onde passavam comiam sementes, frutas e raízes indicadas pelo velho mestre, que descreveu a finalidade medicinal de várias das plantas e raízes existentes na floresta. Esporadicamente paravam para a prática de ioga e da luta marcial Mahabhárata. Prana lhe ensinou os pontos vulneráveis do corpo humano durante os ensinamentos da arte marcial.
            Ao contrário da alimentação de Bija, os nobres de Milão se alimentavam fartamente de variados pratos como carne, peixe, queijo, couve, nabos, cenouras, cebola, feijão e ervilha. Tudo isso com direito à sobremesa em abundância como maçãs, pêras, etc. Já os servos passavam a vida de maneira radicalmente diversa, trabalhando o dia inteiro na época da colheita, pouco conservando do produto do seu trabalho para si e para sua família. Eles apenas se alimentavam do básico para a sobrevivência; por vezes caçavam em temporadas, e outras passavam fome.
            Boa Ventura, Delia e Sattya trabalhavam em um sistema de rotação do feudo. Os campos aráveis se dividiam em três partes para não esgotar o solo, sendo que apenas duas eram cultivadas ao mesmo tempo. Somente após a colheita é que outra parte repousava e, assim, mantinha-se o cultivo ao longo do ano inteiro. Eles e outros servos, assim como Sattya, passavam mais da metade da semana trabalhando nas terras do senhor ou da Igreja. No resto do tempo, eles cultivavam seus próprios lotes para que pudessem ter o mínimo para o sustento da família. Boa Ventura também cortava lenha no bosque; às vezes, este era o seu lugar de caça de coelho e esquilos. Porém, não lhe era permitido caçar animais grandes, pois pertenciam aos senhores feudais. Por sorte, frequentemente Prana, intuitivo e sem medo de nada, encontrava mel na floresta e frutas silvestres, que levava para toda a família. Mas muitos evitavam os bosques por medo de bruxas e figuras maléficas. Não era o caso do velho mestre, que tudo via e nada temia.
            O vilarejo em que moravam Boa Ventura, Delia, Prana, Sattya e agora Vayu se localizava perto das lavouras, ao lado de um riacho, e possuía aproximadamente vinte e cinco famílias. Sua casa era de barro reforçado com palha e cobertura de sapê; tinha apenas um cômodo, sem chaminés ou janelas. Os cães, gatos e galinhas andavam soltos entre as casas e nos arredores havia pequenas hortas e frutas.
            O senhor do feudo tinha um castelo de pedra que o abrigava com sua família, seus empregados e encarregados da administração do feudo. Havia também algumas casas ao redor, frequentemente vazias, que serviriam de quartel para as tropas do rei em caso de necessidade.
            Sattya, além de parteira, trabalhava na lavoura e cuidava de crianças recém- nascidas enquanto os pais delas iam para a lavoura. A idade de Sattya era cinqüenta e oito anos. No vilarejo, muitos a chamavam de Nursery, que significa “mulher que cuida” e deriva do vocábulo latino “nutrire”, nutrir em português; “nursery” também tem suas raízes no latim, da palavra “nutrix”, utilizada desde o século XIII.
            Sattya cuidara de Bija junto com Prana, somente até os três anos; depois disso só Prana cuidava do menino. Ele brincava com outras crianças em frente ao vilarejo, sempre aos olhos do velho mestre que o orientava:
– Não brigue com outras crianças. Peça sempre desculpa mesmo se estiver certo.
            Porém, um dia, numa tarde ensolarada, em que uma tropa de guerreiros do rei passou pelo vilarejo, os guerreiros deixaram seus cavalos próximos à casa de Boa Ventura. Foi quando Bija acariciou na sua inocência um lindo cavalo de um dos guerreiros, o qual gritou com ele:
– Seu moleque! Tire essas mãos sujas de meu cavalo.
            E partiu para cima de Bija para bater-lhe com uma pedra em uma das mãos. Daí, Prana, aos oitenta e sete anos, fingiu com sua bengala tropeçar na perna do guerreiro atingindo-lhe um ponto meridiano da vesícula biliar, uma linha que vai de fora do pé até o lado da cabeça, passando pelo lado da perna, coxa, quadril, costelas, tórax (na frente do ombro), e ao lado do pescoço. Praticamente paralisara o guerreiro naquele exato momento, enquanto os outros guerreiros riam desse homem que ficara deitado com dores sem poder mexer-se. Prana pegou na mão do garoto e levou-o mais uma vez em direção à floresta.
            Nela, o velho ensinou progressivamente suas habilidades a Bija, inclusive a cultivar a prática do “Terceiro Olho”. Disse ao garoto para ver com o coração: “Use a Ajna, está localizada um pouco acima dos olhos entre as sobrancelhas (ponto conhecido como brumadhya)”.
– Esse é o olho da mente! – e encostou o dedo no meio da testa de Bija, um pouco acima dos olhos. Em você será revelada a dimensão da realidade. Ao firmar seu olhar dentro dos olhos do menino, Prana disse: “Você verá além do Tuatara (animal que tem um terceiro olho incrustado no crânio, revelado apenas por um pequeno orifício coberto por uma membrana)”. E utilizou o animal para expressar o que acreditava ser Bija (aquele que vê além do bem e do mal).
            Prana cuidava de Bija como a um servo de um rei. Isso porque, em uma de suas meditações, descobriu que no passado fora um dos seguidores de Buda. E contou ao menino:
– Em uma das minhas encarnações, fui Ananda, que significa “sentimento”. Caminhava junto a Buda, sendo o guardião do Dharma. Buda era meu primo, eu seguia cada um de seus passos em cada uma de suas peregrinações, sendo o interlocutor de muitos de seus diálogos. Descrevia a personalidade de Buda: “Buda era gentil com todos, preocupava-se muito com as pessoas, como Cristo da Igreja de sua mãe, Delia”. Afirmou: “Segundo minhas visões com o Mestre Buda, sempre fui fiel a sua doutrina e aos seus ensinamentos”.


                                   Bija e a pureza universal

           Durante um entardecer, num dos frequentes passeios nos arredores da floresta, Prana explicou sobre sua peregrinação com Buda em uma de suas encarnações. Bija,  com apenas dez anos de idade, lhe perguntou: “Qual a origem de nossa existência?”
            O velho mestre respondeu da seguinte maneira:
– Essa resposta está em você!
            Em seguida, fez com que o menino se concentrasse. Isso tudo ocorreu durante um de seus passeios pela floresta, um local isolado entre as árvores, próximo a um lago formosíssimo, de águas claras e mansas. Sempre quando ali chegavam, sentavam-se à sombra do arvoredo.
– Responda-me você, jovem Bija! – exclamou Prana.
O garoto interrompeu-o subitamente, falando com voz suave e tranquila:
– Avise ao nobre senhor que matem os ratos e evitem as pulgas. Peça-lhe para avisar ao Duque que institua um rigoroso programa, que inclua a pavimentação e a limpeza das ruas e a remoção dos dejetos. Faça uma grande campanha para que todos tomem banho, todos os dias da semana. 
            Prana não entendeu mas continuou a ouvi-lo.
– Sinto uma pureza universal, sem níveis verticais ou horizontais, apenas uma semente em uma imensidão de vazio. Sinto-me em conformidade com o universo, estou em igualdade com tudo; sinto ter qualquer capacidade que ele possua; em um paraíso celestial.
Após dizer isso, o menino ficou horas meditando em silêncio na presença de Prana, que esperou pacientemente.
            Enquanto aguardava, Prana pegou um pedacinho de galho e começou a desenhar na areia, às margens do lago, aquilo que via ao olhar para Bija. E desenhou a seguinte figura:
     

            Prana ficou admirado com tal imagem. Viu a magia de todos os pontos que tanto estudara na Índia.


           
                        Providências para acabar com a peste

Enquanto esses fatos se passavam com Prana e Bija na floresta, na aldeia havia uma enorme euforia com as informações sobre a “Peste Negra”. A peste contagiara muitas pessoas das cidades vizinhas: em Lucerna centenas de pessoas, em Verona e Gênova outras centenas, mas nenhuma em Milão.
            Delia, mãe de Vayu (Bija), disse a Sattya:
– Estou com medo; você ouviu o que todos estão falando, tenho medo por meu filho.
– Não se preocupe, a peste nunca chegará a Milão, como também não chegará a nosso povoado. – respondeu sabiamente Sattya.
            Na manhã do outro dia, diante do avanço da peste, muitos estavam arrumando suas coisas para fugirem do vilarejo. Muitos tentavam imigrar para vilarejos mais afastados, fugindo em direção às matas. Até os médicos, magistrados, padres e outros que moravam nas cidades entraram em pânico, fugindo dos moribundos. Para a maioria das pessoas, o fim do mundo era certo. Os médicos que estavam dispostos a tratar dos enfermos lhes receitavam poções totalmente ineficientes; poções das mais variadas, desde cobras retalhadas até a lavagem da boca e das narinas com vinagre e água de rosas. Porém, os tratamentos mais comuns eram as sangrias.
            Diante de toda essa situação Prana passou a entender o que Bija havia dito. Então, urgentemente, falou a Boa Ventura, Delia, Sattya e aos amigos das redondezas  sobre as providências a serem tomadas. Porém não disse que partira de Bija a idéia de tais medidas.
            As sugestões chegaram até os ouvidos do suserano que, em um ato de desespero, tomou as devidas providências. Graças ao aviso de Bija, a pandemia não se estendeu. Os vilarejos próximos também se beneficiaram com tal atitude, ficando livres da peste.
            Bija dizia que a peste não era um castigo divino como muitos pensavam; o problema estava na higiene, na alimentação e na precariedade das cidades e dos vilarejos. Afirmou ao pai, à mãe, a Sattya e a Prana:
– A “morte negra” nos ensinará a nos relacionar com o meio ambiente, livrando-nos da ignorância e de algumas superstições.
           

                        A MORTE E A RE-ENCARNAÇÃO

Durante muito tempo após o ocorrido, Prana sempre que conversava com Bija, ainda tocava no assunto “morte”. Certo dia, enquanto caminhavam para suas meditações na floresta, perguntou:
– Bija, o que você sabe da morte?
– O corpo é uma substância da vida. Podemos imaginar a morte do corpo,  presenciar outras mortes, porém a morte é única, ela é do ser existente e singular. – respondeu o garoto, acreditando estar certo em sua resposta.
– Os mortos formam as raízes que asseguram a continuidade dos vivos no tempo e no espaço. Da forma que expôs, não haveria re-encarnação. – expôs Prana.
– E como acontece a re-encarnação? – perguntou Bija, olhando atentamente ao mestre.
– Foi muito sábia sua primeira resposta, mas o corpo, o pensamento, a vida que o corpo possui, a vida própria que o corpo possui é dele, somente dele; é fato que ninguém vive ou viveu por ele a não ser ele mesmo, do seu nascimento até o momento de sua morte.
            Utilizando-se de uma filosofia que desenvolvera ao longo de sua vida, o velho Prana prosseguiu:
– A re-encarnação existe e é fato. Você, por exemplo, viveu naquele tempo até sua morte, teve outras encarnações, mas foi outra vida. Num paradoxo, você em outra vida, em outro corpo, teve uma vida única e singular; hoje vive outra vida única e singular. Embora tenha vivido outras encarnações, cada uma delas é única e singular em outro tempo.
– E o tempo da outra encarnação? – indagou Bija, ao pensar sobre o tempo.
– O tempo, para o ser humano, não é a história do tempo passado de outros seres, outras encarnações. Por mais que ela tenha sofrido distorções da não realidade, para o ser presente a lembrança é a sua realidade. Isto é, se ele não lembra o que viveu na outra encarnação, para ele, ela não existiu. – continuou Prana. Neste sentido, a lembrança é a realidade daquele homem, mesmo que ele não seja real. A lembrança faz com que aquilo que ocorreu na vida do suposto homem seja real, as distorções em que ele crê são reais para ele.
– Neste sentido sua vida é uma farsa, ele vive a mentira de sua realidade?! – indagou Bija, referindo-se ao suposto homem.
           – Não necessariamente! – respondeu o velho mestre. Se colocarmos várias pessoas observando uma batalha, cada um revelará sua versão. Qual seria a realidade da batalha? Em qual deles estaria a lembrança real da batalha, referindo-se à verdade?
           – Em todas elas. – respondeu o garoto, com a certeza de estar certo.
           – Para aquele que crê na história da matéria tudo é real; para aquele que crê na lembrança, tudo também é real. – disse Prana, fazendo suaves movimentos de ioga.
          – Qual a conclusão a que o senhor chegou? – indagou Bija, querendo obter mais respostas.
          – A vida é formada por vários instantes enquanto matéria, já a morte se revela em um único instante da matéria para aqueles que estão vivos. Porém, para aquele que morreu o instante da morte é a espera da próxima re-encarnação. As lembranças permanecerão enquanto espírito e somente surgirão se houver crença. Mesmo que a pessoa tenha tido tal experiência em outra encarnação e ela não crê, consequentemente para ela a encarnação não existiu.
– Quer dizer que a crença em outras lembranças da vida é que estabelece uma relação com a morte e determina uma vida eterna ao corpo espiritual? – indagou mais uma vez Bija.
– O corpo estabelece uma conexão com o espírito enquanto vida material, a lembrança estabelece uma conexão com o espírito enquanto “morte”. A morte faz parte de um ciclo natural da existência, o caminho da morte é natural de sentido único, ela está presente nessa folha que acabou de cair da árvore até os seres mais complexos, inteligentes. Enquanto pegava a folha e mostrava: Mudando de assunto, gostaria de fazer-lhe uma pergunta: como sabia dos motivos da peste? E de como minimizar o problema?
– Naquele dia saí do corpo, mas fiquei ligado a ele numa espécie de cordão de ouro. Presenciei pessoas moribundas, abandonadas, vi que havia alguns ratos, não sei como, mas, ao tocar em um enfermo, senti que o motivo eram as pulgas dos ratos; ao tocar os ratos eu soube que estavam contaminados pela peste. Foi durante a volta, seguindo o cordão, que um espírito muito iluminado, não era aquele que vejo às vezes, me disse: “Avise ao nobre senhor que matem os ratos e evitem as pulgas. Peça-lhe para avisar ao Duque, para que este institua um rigoroso programa, que inclua a pavimentação e a limpeza das ruas e a remoção dos dejetos. Faça uma grande campanha para que todos tomem banho, todos os dias da semana”.
          Prana e Bija conversaram horas e horas durante todo o trajeto, tanto na ida quanto na volta, em que caminhavam para fazer as meditações. Em vários momentos da conversa, o velho mestre expôs a importância da consciência, da mente e do intelecto, do sentimento íntimo do indivíduo, do discernir entre o bem e o mal, do aprovar e reprovar, salientando a importância do espírito que existe dentro e além de nossa existência, o imaculado Ser do homem. Isso porque a religião hindu é a busca in acta (nos atos) pelo divino dentro do Ser, a busca por encontrar a Verdade que nunca foi perdida. Verdade buscada com fé que poderá tornar-se reconfortante luminosidade, independente da razão ou do credo professado. Prana ensinou a Bija que toda forma de existência, dos vegetais e animais até o homem, é o sujeito e objeto do eterno Dharma.
A paciência é o sinal da vida adulta da alma, o conhecimento é sinal da idade adulta do cérebro, a coragem  e o medo são sinais da idade adulta do coração. – disse o  mestre certo dia.
A conversa dos dois ficou entre os ensinamentos de Prana  e as  explicações de Bija sobre o que via em suas meditações.
            Assim, entre as várias idas e vindas enquanto caminhavam na floresta, Prana ensinou ao garoto sua filosofia própria de vida, somada a uma filosofia hinduísta. Dessa forma, infundiu na alma de Bija a chama da pureza associada às virtudes de um homem benigno, compassivo e bondoso. Um homem capaz de sentir as energias mais sutis, mais poderosas, mais refinadas,  emanadas de qualquer um, de qualquer parte, de qualquer ser.

           

Bija e o Duque de Milão

            Mais alguns anos se passaram, quando Bija, aos quinze anos, perdeu Prana. Nesse dia, o garoto entrou na floresta, foi andando, andando, atravessou-a e continuou a andar. Ao término da floresta, subiu um pequeno morro e prosseguiu. Depois chegou a outra floresta, mas não parou para comer nem beber durante dias. Até que, após uma semana, parou para beber água, comeu algumas frutas silvestres e raízes, descansou por algumas horas e voltou a caminhar.
            O motivo por que Prana morreu não foi devido a sua velhice. Tudo aconteceu, quando um garoto da corte ouviu rumores de que havia um bruxo chamado Prana no vilarejo. Em uma tarde de domingo, o mestre foi cultivar a horta, eis que chegou o jovem da corte, de apenas treze anos, colocou uma espada em sua cabeça afirmando que ele era um bruxo e deveria morrer. Prana, olhando para o pequeno garoto da corte, disse:
– Vai para casa, menino! – e virou-se de costas para ele.
            O aprendiz de guerreiro tinha acabado de ganhar uma espada nova, a qual enterrou nas costas de Prana. Em seguida, enquanto o mestre caía, o jovem bateu-lhe com a espada na cabeça, causando-lhe a morte.
            Após a morte de Prana, Sattya entrou na floresta em vão, à procura de Bija. O pai, Boa Ventura, passou dias à procura do garoto e nada de encontrá-lo.
            Ao caminhar para o desconhecido, Bija apenas comia sementes, frutas e raízes indicadas por seu mestre. Caminhou meditando por volta de três anos sem encontrar uma alma vivente, quando numa bela tarde, bem ao cair da noite, chegou a uma estrada onde avistou uma velha cavalariça. Esbarrou com um ancião que lhe propôs um trabalho na estrebaria. 
            – Temos oito cavalos que pertencem ao Duque de Milão. Quando ele com sua família passam por aqui, deixam os cavalos cansados e partem com os descansados.
Então Bija perguntou ao ancião o que deveria fazer para conseguir o serviço.
– Você deverá pentear as crinas dos cavalos, prendendo-os bem na manjedoura e dará de comer a eles duas vezes por dia. 
            Ele aceitou, mas com uma condição: que o deixasse praticar a meditação e a ioga. O ancião aceitou sua proposta e disse para acertar a barba oferecendo-lhe roupa limpa.
            Todos os dias, ao término do trabalho, o ancião ficava observando Bija entrar na floresta, que voltava apenas no dia seguinte. O ancião propôs-lhe para dormir na estrebaria, mas rejeitou dizendo que gostava da floresta.
            – A floresta é meu lar. – respondeu o rapaz.
            Certo dia, ao parar com a família, o Duque chamou o ancião para a troca de cavalos. Todos desceram da carruagem, o Duque, sua esposa e sua linda sobrinha, Caterina. Esta era filha de Galeazzo, irmão do Duque Ludovico e neta do legendário Francesco, que era filho legítimo de camponeses e se fez soldado a serviço do Papa Martinho V. Francesco, guerreiro famoso de seu tempo, casou-se com a filha do Duque de Milão. Depois da morte do sogro assumiu o poder como Duque de Milão, governando grande parte do norte da Itália. Francesco teve dois filhos: Galeazzo, pai de Caterina, e Ludovico. Ele conseguiu manter seu poder de ducado através de uma inteligente política de alianças com os Estados vizinhos. Milão transformou-se num próspero centro de arte, indústria e ciência, mas, após o governo de Francesco, nunca mais seria a mesma.
            Já Ludovico era o irmão mais novo de Galeazzo. Assumiu o poder depois da morte do irmão, apoderando-se do ducado em nome de seu sobrinho Giangaleazzo, irmão de Caterina, depois de colocá-lo na prisão.

            Caterina, ao olhar Bija, ficou apaixonada, mas ele não conseguiu olhar para a jovem. A Duquesa percebeu e lhe deu uma repreensão sem que Ludovico ouvisse. Numa distração do Duque e da Duquesa de Milão, enquanto conversavam com o ancião, Caterina se aproximou do rapaz e perguntou:
– Quem és tu?
– Meu nome é Bija, filho de Boa Ventura e Delia.
            Ela riu com o nome que ele dissera. Mas continuou:
– Não quer trabalhar no Palácio de Milão?
           Sempre calado, Bija mal conversava com seu pai e sua mãe quando morava no vilarejo. Ouvia o ancião, executava o serviço respondendo apenas o necessário. De repente, a Duquesa apareceu próximo à carruagem e chamou Caterina. Bija acabou de colocar as rédeas nos cavalos e nada respondeu, nem olhou para o lado delas.
            Ao saírem, Caterina olhou mais uma vez para Bija, e ele abaixou a cabeça para não fixar os olhos na pequena burguesa.
            Porém, a moça disse:
– Um rapaz jovem, jogado nesse fim de mundo, seria útil no palácio.
– Imagine! – exclamou a Duquesa. Cada um deve seguir seu destino de acordo com suas instruções.
– Por isso mesmo, lá ele poderá instruir-se melhor. – retrucou Caterina.
            A conversa prosseguiu durante quase toda a viagem. Até que, antes do término da viagem, Caterina convenceu Ludovico a levar Bija ao palácio, mesmo contrariando a Duquesa. O Duque o achara um forte rapaz que poderia tornar-se um dos fortes guardas do palácio.

           

                          BIJA E LEONARDO
Duas semanas depois, chegaram à estrebaria dois guardas com três cavalos. Em seguida, falaram ao ancião que iriam levar Bija. Este educadamente montou em um dos cavalos e partiu para o palácio.
            Na manhã do terceiro dia de viagem, viram ao longe o palácio, uma imponente construção. Avistaram ao longe as duas torres redondas. Ao se aproximar, Bija jamais tinha visto tamanha beleza, ao mesmo tempo notou a sujeira, os esgotos a céu aberto na cidade.
            Ao chegarem, os guardas abriram os imensos portões; a seguir, entraram em frente a uma praça. Bija observou as esculturas que salientavam a maravilha do palácio.
            Horas antes, havia chegado ao palácio um grande artista louro, olhos azuis, nariz aquilino e de nome Leonardo, cuja idade era trinta anos. Intelectual, dedicava-se, além dos desenhos artísticos, a desenhos arquitetônicos e inventos mecânicos.
            Foi num de seus passeios, após uma tarde ensolarada, que Leonardo observou aquele jovem, num canto do palácio, próximo à estrebaria, praticando ioga. Leonardo lhe perguntou:
– O que fazes, jovem garoto?
           Após alguns minutos Bija parou com a meditação. Antes mesmo de responder, sentiu naquele que lhe perguntara o mesmo carinho e liberdade que tinha quando estava com Prana.
– São exercícios de ioga. – respondeu suavemente e com muita educação.
– Muito prazer! Meu nome é Leonardo. Estou aqui para projetar a catedral da cidade.
– Tão importante quanto a catedral seria fazer algo para melhorar os esgotos da cidade e o abastecimento de água. Na atual conjuntura o que temos apenas serve para a proliferação de ratos, e consequentemente das pulgas que ocasionam a “morte negra”. – disse Bija, um tanto encabulado em sua simplicidade.
          Leonardo, surpreso com a resposta do garoto, pensou: – De onde vem tamanha sabedoria? E perguntou:
– Qual é seu nome, garoto, e o que faz aqui?
– Meu nome é Bija, cuido dos cavalos do Duque aqui na estribaria.
– Gostaria que trabalhasse comigo. – convidou-o, interessado em ter ao seu lado o jovem sábio. Se tiver interesse, falarei com o Duque imediatamente.
– Com uma condição: que eu possa praticar ioga e meditação. – respondeu da mesma forma como falara com o ancião da estrebaria.
           Leonardo concordou e, em seguida, pediu ao Duque a permissão.

         Três dias depois, lá estava Bija trabalhando com Leonardo.
         – Bija, o que acha desta planta que acabei de desenhar para a defesa de Milão?  Também projetei essa máquina de guerra: aqui ela será coberta com toras de madeira, ao centro a força de homens ou animais protegidos no interior poderá disparar contra o inimigo sem nada sofrerem. Projetei um grande canhão que poderá disparar várias vezes seguidas.
         – Continuo preferindo um projeto para melhorar as condições de limpeza da cidade.
         O assunto se encerrou porque Leonardo começara a trabalhar em uma gigantesca estátua do Duque Francesco; enquanto isso, Bija fazia seus exercícios de ioga. O artista deixou que o garoto morasse num cômodo ao fundo do ateliê de trabalho.
         Após o trabalho, Leonardo encontrava tempo para o teatro, para organizar as sessões de música e, em seguida, ele se dirigia às grandes festas, as quais, muitas vezes, também eram organizadas por ele.


                                   BIJA E CATERINA
            Em uma das festas, Leonardo encontrou Caterina, sobrinha do Duque; ao se aproximar do artista, ela disse:
– Leonardo, fiquei sabendo que Bija está trabalhando com você.
– Olhe, jovem donzela, apesar de seu nome ser o mesmo que o da minha mãe siga meu conselho: ele é um simples plebeu de enorme sabedoria; acho melhor ficar longe dele, para o bem de todos nós.
– Eu o acho lindo, apaixonei-me por ele logo que o vi da primeira vez. Com brilho nos olhos e demonstrando felicidade no gesto e na voz: Fui eu quem pediu a Ludovico para trazê-lo ao palácio.
           Em seguida, Caterina contou como tinha conhecido Bija e como o trouxera para o palácio. Disse também que no início o Duque queria transformá-lo em um grande guarda, depois viu que ele era pacífico demais e deixou-o apenas cuidando dos cavalos.

            No outro dia, impecavelmente vestido, lá estava Leonardo logo de manhã para o trabalho. Como Bija ajudava no preparo das tintas e outras tarefas, Leonardo contratou os irmãos Predis para participarem na execução de um mural para o altar da Virgem, na Igreja de São Francisco. Ao mesmo tempo ouviu a sugestão de Bija em trabalhar outra versão, inspirada nos seus dizeres: “almas diversas todas com caráter espiritual”. Ele também ensinou a Leonardo: “A Terra vive e tem uma alma, os rios são suas artérias, os regatos são as veias, o fluxo e o refluxo do mar são seus alentos, nos vulcões está a residência da vida, o oceano em torno dos mares é um lago de sangue em volta do coração”. Leonardo admirava as palavras de Bija, as quais o inspiravam para dar alma à sua arte.
            Em seguida, Leonardo começou a observar as pessoas à procura de um modelo para a imagem de Cristo.      
Certo dia, depois de muita procura para o seu modelo de Cristo, Leonardo resolveu utilizar a imagem de Bija para desenhar o Cristo da Santa Ceia; pediu-lhe que deixasse crescer a barba. 
Leonardo esboçou o rosto do jovem onde seria o rosto de Jesus Cristo no Convento de Santa Maria Delle Grazie, numa parede com mais de nove metros de comprimento e quatro metros e vinte centímetros de altura. Leonardo deu alguns toques artísticos para que a imagem de Bija, “Cristo”, parecesse mais velho.
            Bija via em Leonardo uma grande pessoa, mas que não sabia lidar com momentos de calma que a vida exige de um homem.

            Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo em que se iniciara o romance de Caterina com Bija às escondidas no palácio. Apaixonado, o rapaz não sabia como lidar com a travessa Caterina. Leonardo dizia que a menina ganhara o coração do jovem plebeu, porém advertia os dois pela loucura daquele romance. É certo que o namorado sabia do perigo, mas seu amor era mais forte que sua razão.
            Nas várias vezes em que Bija se encontrou com Caterina, a misteriosa luz de tamanha claridade esteve presente, como em momentos vividos com Prana.

            Em uma manhã nebulosa Leonardo pediu que Bija o levasse até a floresta e lhe ensinasse a meditar. Ele aceitou e levou o artista, que não conseguiu ficar sentado sem nada fazer. Vendo Bija realizar movimentos de ioga, Leonardo fez a lápis num papel a seguinte figura:


            Ao término da prática de ioga, Bija disse:
           – Mas você me desenhou sem roupas.
           – Você serviu de modelo para eu desenhar o Homem Vitruyano. – respondeu Leonardo, com a empolgação de um maestro quando dirige sua orquestra.
            Bija não gostou e pediu que não mostrasse para ninguém, especialmente a Caterina.
            Apesar de pouco falar, Bija gostava muito de ouvir os amigos Leonardo e Luca, os quais o fizeram um grande adorador da arte. Além disso, eram os únicos que sabiam do seu relacionamento com Caterina. Não sabiam que um jovem que substituíra Bija na estrebaria já havia visto os dois aos beijos.
            Em uma das conversas de Bija com Leonardo, este perguntou ao rapaz o que acontecia com ele durante a meditação. Então lhe explicou segundo seus conhecimentos aprendidos com Prana. Leonardo não ficou contente, pois queria comunicar-se com Bija durante a meditação, mas este lhe respondeu que não conseguiria comunicar-se durante a meditação.
Leonardo, grande observador, notava detalhes nas pessoas, em seus modos e vestes; tinha observado que no momento da meditação somente os olhos de Bija se moviam. Daí formulou várias combinações com frases feitas associadas a certo número do pestanejar dos olhos. Assim praticaram por mais de três anos durante todo o trabalho que fizeram com a Santa Ceia. Leonardo ensinou também a Luca, o qual ajudou na sua investigação com Bija durante a meditação.
            Certo dia, Leonardo pediu que Bija fizesse suas meditações em seu ateliê no palácio. Diariamente os três, em vez de entrarem na floresta, ficavam no ateliê anotando tudo que Bija passava com seu pestanejar enquanto meditava.
– Vejo espíritos por toda parte, sou capaz de viajar pelo tempo. Vejo os momentos em que Prana me ensinou o caminho da sabedoria. – E seguiu na meditação:      Vou até o momento de sua morte, tento impedir, mas é inútil. Vejo os espíritos que cercam o aprendiz de guerreiro que executa Prana.
            Após horas de meditação em que Bija passou várias informações sobre acontecimentos da sua vida, Leonardo achou loucura aquilo ser verdade e comentou com Luca:
– É praticamente impossível isso ser verdade.
            Leonardo anotara tudo que era possível.
            No dia seguinte Leonardo comentou com Luca:
– Vamos fazer isso hoje! Novamente anotaremos tudo que Bija nos informar.
            Ao mesmo tempo em que esses fatos ocorriam com Leonardo, Bija e Luca, o Duque Ludovico ficou isolado diplomaticamente após a morte do amigo Lourenço.  Nessa época, Carlos VIII, da França, conquistou o reino de Nápoles; o fato provocou  uma coligação formada pelo imperador alemão Maximiliano, o Papa Alexandre VI e Fernando o Católico, rei de Aragão. Esse movimento fez com que as forças francesas, ao recuarem para o norte da Itália, invadissem Milão; Ludovico foi obrigado a fugir, levando a família consigo.
            Horas antes da fuga, Caterina com lágrimas nos olhos procurou Bija e disse que estava partindo. Despediram-se.
            – Você será uma grande mulher, terá um bom marido e muitos filhos, mas tome muito cuidado com o Papa Alexandre VI. – disse Bija a Caterina. 
Ele falou dessa forma porque tinha anotações feitas por Leonardo de uma de suas meditações, as quais se voltavam para o futuro próximo. A moça nada entendeu. Ambos se despediram e ela partiu às pressas, pois o Duque assim planejara para salvar sua família.  

                              OS PROJETOS DE BIJA
Leonardo atravessou momentos difíceis, principalmente porque necessitou de bronze para fundir o monumento ao Duque Francesco, obra que lhe custara anos de trabalho. O artista passou vários dias desmotivado e angustiado porque o bronze fora extraviado para produzir canhões. Em seguida, entregou-se apenas ao trabalho com as anotações do pestanejar de Bija; por vezes, pegava o pincel para redesenhar as figuras da Santa Ceia.
            Um dia, Bija passou a Leonardo e Luca um projeto completo de urbanização, alinhando ruas, prevendo esgotos, vias de dois pavimentos em que os pedestres andariam por cima. Tinha casas amplas, ventiladas, e também praças e jardins públicos espalhados por Milão. Dias se seguiram e ele passou a Leonardo o compasso parabólico para facilitar seus desenhos e projetos, projetos de máquinas capazes de fazer lentes telescópicas de seis metros e lentes côncavas, entre outras coisas.
            O que deixou Leonardo e Luca mais abismados foi quando Bija lhes transmitiu informações sobre a mecânica dos músculos e o funcionamento fisiológico do corpo humano, além de lhes informar como medir o tamanho da Lua e a distância entre o Sol e a Terra.
            Não decorreu muito tempo até que os franceses invadiram a cidade, destruindo o modelo de gesso do cavalo em que Leonardo colocaria o molde do Duque Francesco montado. Leonardo, Bija e Luca não gostaram nada quando viram os guerreiros do francês Luís XII usando como alvo o Grande Cavalo de tamanho natural.
            Leonardo, depois disso, chamou os amigos para partirem rumo a Florença. Luca aceitou, mas Bija disse que ficaria em Milão. Este se despediu dizendo que Leonardo ainda teria de viver muito para transmitir todo seu conhecimento ao mundo.
            Antes de partir, Leonardo deixou com Bija quase todas as anotações de suas pesquisas junto a ele, levando consigo apenas algumas informações que o amigo havia passado nos momentos de suas meditações.
                                  

 A SORTE DE BIJA
            O francês Luís XII, filho do Duque de Orléans, resolvera conquistar Milão porque julgava ser seu por direito.
            Luís XII, em seu ducado, descobrira que Bija era amigo de Leonardo e amante de Caterina. Um jovem disse a Luís XII que, se o deixasse continuar com o trabalho na estrebaria, ele lhe contaria alguns segredos, um dos quais era a respeito de Bija.
            Dois dias depois, Bija foi lançado numa prisão apenas com a roupa do corpo e as anotações da pesquisa de Leonardo, quando traduzia seu pestanejar. As celas estavam praticamente todas ocupadas. Bija foi jogado junto a um intelectual da Corte, de nome Carrara. Este conhecia um dos guardas que trabalhava de carcereiro na prisão, o qual continuava nesse trabalho desde o governo do Duque Francesco. Às vezes, o guarda, de nome Passarelli, trazia para Carrara aquilo que precisava escondido em uma sacola; na maioria das vezes, trazia alimentos. Gostava muito do intelectual, porque graças a ele adquirira esse cargo. Passarelli era o guarda que fazia a inspeção na cela de Bija e Carrara. Durante a inspeção, os presos passavam para a cela ao lado, enquanto o responsável (Passarelli) verificava se estava tudo certo. Ele era um guarda tranquilo que não gostava de guerras e se dedicava aos detentos. Estes gostavam de Passarelli, porque outros guardas batiam e maltratavam os presos; ele não. Por vezes, outros guardas riam do colega pelo seu comportamento perante os presos. 
            – Passarelli, pegue-me uma água. – pedia um guarda que ocupava o mesmo posto dele.
– Aguarde um momento. – respondia. Estou terminando de inspecionar a cela dezessete.
            Os demais guardas tratavam Passarelli exatamente dessa forma. Ele tinha consciência de sua passividade, porém não se importava com o tratamento dos demais.
            Apesar de parecer um tanto medíocre, Passarelli era esperto, gostava de moedas, mas não gostava de confusão, nem de brigas e discussões. Tinha família, mas não contava a ninguém sobre sua vida particular; gostava mais de ouvir que falar. Frequentemente ia à taverna onde tinha contatos com estrangeiros e mercenários. Sempre ouvindo e pouco falando, ele sabia do mundo ao seu redor, também sobre as navegações e as investidas às Índias. Fez amizade com um navegador e grande piloto árabe que por ali costumava passar. Foi Passarelli que levou um dos prisioneiros de nome Luigi à prisão para ficar junto com Carrara e Bija.
            Aproximadamente após uma semana em que Carrara e Bija estavam na prisão,  ordenaram a Passarelli que encaminhasse junto a eles o ladrão da época, de nome Luigi. 
            Ao entrar na prisão, o ladrão disse:
            – Que lugar horrível, frio, com essas grotescas pedras e essa porta na entrada, com apenas uma fresta por onde entra ar e um pouco de luz. E ainda por cima ficar com dois barbados à minha volta. Não vou suportar viver nessa droga. Prefiro a morte a viver nesse local.
            Carrara disse para o rapaz (Luigi) ter calma e se sentar. Irritado, o ladrão não parou de andar de um lado para o outro, xingando a todos e gritando sem parar que o tirassem dali. Mas foi em vão; depois de algumas horas, sentou-se e pôs-se a chorar. Bija apenas observava sem nada dizer, enquanto Carrara pediu a Luigi que contasse o motivo pelo qual fora jogado na prisão. Ele respondeu:
            – Praticava pequenos furtos, roubando comida e objetos dos comerciantes e artesãos de Milão. Entre um furto e outro, um guarda me pegou e quando tentei fugir, outros comerciantes me atacaram.
            Luigi devolveu a pergunta a Carrara.
– Eu, jovem Luigi, fui preso por acusação de ter conspirado contra Luís XII. –respondeu Carrara.
– Afinal, conspirou ou não?  – indagou Luigi.
– Realmente, não! Apenas adverti alguns amigos que não fizessem isso. Os amigos foram condenados à morte, e eu ao calabouço.
            Em seguida perguntou a Bija, que respondeu:
– Não tive condenação, fui preso por ser amigo de Leonardo e ter-me apaixonado pela neta do Duque Francesco.
– É um absurdo, eles não têm o direito de nos deixar apodrecer nesse cárcere  horrível por motivos tão banais. – lamentou Luigi nervosamente.

                                               OS ENSINAMENTOS DE BIJA
         
Carrara presenciava Bija praticando ioga durante toda a semana sem perguntar o que era aquilo. Mas Luigi perguntou no primeiro dia em que viu Bija, que lhe explicou sobre os ensinamentos dados por Prana. De início Luigi achou que o rapaz era um bruxo, depois começou a entender o que ele lhe falava.
            Explicou que a ioga é uma sistematização de práticas corporais místicas e ascéticas vindas da filosofia hindu. Disse que em sua meditação ia além das paredes da cela, e que não só o conhecimento pode ser expandido, mas todo o sentido espiritual. Segundo Bija, quando se coloca uma esponja num tanque raso com água, ela suga a água e se torna completamente encharcada. Afirmou que o mesmo ocorre com a sabedoria, ela pode crescer dentro de uma pessoa, ou seja, uma pessoa pode crescer para refletir mais sobre a sabedoria externa, sugando tudo que aparece do lado de fora, da vida, assim como a esponja suga a água.
– Meu conhecimento torna a minha vida expansiva para outras realidades além da muralha que nos cerca. Ser e tornar-se, consciência e consciência mental, infinidade e finitude, espírito e matéria, nirvana e samsára. Sansára representa o fluxo que experimentamos através de nossos sentidos. Tudo pode ser capaz quando você crê em seus sentidos.
E Bija passou tudo que Prana lhe dissera:
– Eu separo-me do corpo dissociando-me da matéria. Isto porque o corpo e o espírito são como a casca da laranja e seu cheiro. O cheiro vai além do espaço em que está contida a laranja. O corpo e a laranja são a matéria, o espírito e o cheiro são as qualidades que atribuem a tal matéria.
Em seguida, citou o que seu velho mestre lhe falara algumas vezes:
– Prana dizia que o cordão que liga meu corpo ao espírito é como uma cópula que identifica o cheiro da laranja.
            Luigi não acreditou no que Bija lhe transmitiu naquele momento, porém Carrara sabia que Leonardo jamais se envolveria com uma pessoa estúpida e mentirosa.
            Assim era a vida dentro do cárcere: às vezes Bija passava ensinamentos de Prana, às vezes falava de Leonardo. Carrara contava histórias da Corte e Luigi, suas aventuras e romances.
            Bija demorou mais quatro anos para passar toda a informação sobre suas pesquisas com seu pestanejar ao lado de Leonardo. Por exemplo: quando pestanejava a palavra “Koriskos” que, dependendo do contexto, poderia significar “um homem (substância ou entidade); alto (cinco metros de altura); é sábio; é mais que outro (relação), está aqui (onde, local); esteve ontem (quando); está sentado (postura); está calçado (estado ou condição); está empurrando algo (atividade ou passividade)”. A palavra “trophé” significava: alguns se alimentam na terra, no ar ou na água. Assim, ensinava detalhes do significado de cada palavra em relação ao seu pestanejar, os quais permitiriam sua comunicação durante o estado de meditação.
           
Passaram-se mais alguns anos e Bija ensinou aos amigos Carrara e Luigi como meditar e praticar ioga. Era costume Luigi reclamar da situação em que se encontravam, por isso Bija relatou uma história que Prana sempre contava ao povo do vilarejo.
           
“Uma lagarta assim dizia:
– Estou nessa folha, dentro desse minúsculo ovo e não consigo nascer, está demorando muito! Passam-se horas e horas, batem ventos e chuvas e ainda me encontro dentro desse minúsculo ovo.
            Alguns dias depois:
– Enfim nasci! Já não agüentava mais ficar dentro daquele minúsculo ovo... Ando e como essa folha! Será que é somente isso que devo fazer?  Estou enjoada de comer essa folha e permanecer agregada a estas amigas que se parecem comigo e só pensam em comer. Caminharei até outras folhas entre os pequenos galhos. Estou crescendo e em todos os lugares aonde vou só encontro essas folhas e outras lagartas parecidas comigo. Não existe outra coisa neste mundo para se saborear? Estou crescendo, não é à toa, como essa maldita folha o tempo todo e não consigo adaptar-me a este meio.
As outras lagartas diziam que ela podia parar de reclamar pelo menos de vez em quando. De repente ela viu uma lagarta de outra cor.
– Noto que sua cor é diferente, poderia dizer-me se poderíamos fazer outra coisa além de comer essas folhas?
A outra respondeu:
– Minha amiga! Fui informada que daqui iremos para um casulo e em seguida, viraremos aquelas lindas borboletas que passam voando por aqui. Ficaremos livres voando ao vento aonde quisermos. Tchau! – despediu-se enquanto a lagarta voltou às suas reclamações.
– Eu não vejo a hora de ir para o casulo, onde será que fica esse casulo? Esqueci-me de perguntar. Vou andar em todas as folhas até encontrar esse maldito casulo.
E continuou:
– Ando e como, ando e como essas folhas e não estou encontrando nenhum casulo... Não agüento mais, vou me pendurar aqui nesse pequeno galho.
Após dormir por algumas horas, a lagarta falou:
– Virgem santíssima, não consigo sair daqui, estou presa dentro dessa casca de árvore. Vou gritar: TEM ALGUÉM AÍ? Acho que vou dormir mais um pouco... Já é dia novamente, noto pela claridade e ainda estou presa, gritarei até alguém me ouvir: SOCORRO! SOCORRO!
De repente dela se aproximou uma linda borboleta. 
– Por que você grita tanto, criatura?
A lagarta respondeu:
– Estou presa nessa casca de árvore e não consigo sair, não sei quem me prendeu aqui.
Enquanto a lagarta chorava, a linda borboleta sorriu dizendo:
– Não se preocupe, minha jovem, você está em um casulo e em breve se tornará uma linda borboleta.
– Isso demorará muito? Não agüento mais ficar aqui toda encolhida.
A borboleta respondeu:
– Calma, minha amiguinha, tudo dependerá de quanto tempo está aí dentro. Adeus e boa sorte! – e saiu voando em direção às flores.
A lagarta falou:
            – Esse então é o tal de casulo, vou tentar me livrar dessa droga. Isso é duro, mas vou conseguir. Ficar aqui ainda é pior que andar e comer aquelas folhas... Empurrarei esse pedaço e vou mexer meu corpo todo até livrar-me desse casulo. Puxa vida! Quem inventou essa bugiganga sabe mesmo como prender uma lagarta. Quero sair daqui e virar uma borboleta, só assim serei livre e voarei em qualquer direção... Aí, estou conseguindo! Só falta um pedacinho. A luz está bela. Tenho asas. Vou pular. Não estou conseguindo voar direito, está ventando muito... O que é aquilo na minha direção? Ele também voa, é enorme, tem dez vezes o meu tamanho. Está abrindo a boca. Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Socor...”

– Qual a moral da história? – perguntou Luigi, acreditando que a carapuça lhe servira.
            Bija respondeu que Prana nada falara da moral da história, porém acrescentou:
– Nunca reclame do presente, tudo passa. Tudo tem sua hora.  Tenha paciência sorrindo. E olhando para Luigi:
– Viva o momento e seja feliz a cada minuto. Agarre a oportunidade que a vida lhe está dando. O Sábio encontra a alegria na dor. Ele encontra alegria na tristeza. O Sábio não conhece o destino, mas aproveita a vida. Ele encontra vida na morte. O Sábio não reclama, deixa passar.
Por algum tempo, essa história ajudou Luigi a parar de reclamar. Sempre que ele iniciava suas reclamações Carrara dizia:
– Lembre-se da “pequena lagarta”.

                                               AS PREVISÕES DE BIJA

            Com o passar dos anos, Carrara desenvolveu na prática um grande potencial ao traduzir o pestanejar de Bija. Pediu então ao guarda, pelo qual tinha amizade, pena, tinta e papel para que pudessem anotar os ensinamentos que o rapaz passava durante sua profunda meditação com seu pestanejar. Ele já tinha previsto tudo aquilo.
– Previ que estariam anotando este momento. – anunciou Bija, um mês antes do acontecimento. Nesse mesmo dia afirmou, enquanto seus olhos pestanejavam: – Irei revelar para vocês alguns momentos do futuro.
          Eis que chegou, exatamente um mês depois, a confirmação de tais anotações. Carrara anotava enquanto Luigi ajudava e aprendia ao mesmo tempo.
– Revelarei para vocês o futuro! Em seguida, anunciou guerras, processos de comunicação à distância, máquinas que processariam informações, grandes tragédias, maremotos, vulcões, seres interplanetários, etc.
            Ao terminar as anotações, Bija saía do estado de meditação lendo e relendo, achando uma loucura aquelas previsões. Os três ficavam discutindo como poderia ser capaz de tudo aquilo. Ao mesmo tempo não duvidavam de nada, pois ele previa acontecimentos de três a quatro dias futuros. Por vezes, informava coisas banais como a previsão de uma barata que iria passar em determinado local da parede e quando Luigi  tentasse matá-la, a barata voaria até outro ponto que Bija havia previsto.
            Muitas das informações passadas por ele eram dificilmente compreendidas, porém eram anotadas em todos os detalhes. Isso porque, nessa época, Bija e Carrara, com a ajuda de Luigi, desenvolveram uma técnica muito mais detalhada em interpretações que aquelas iniciais da pesquisa com Leonardo.
Um dos momentos em que os três ficaram muito admirados foi quando Bija informou acontecimentos usando o termo “Vida Artificial”. Conceitos de vida como metabolismo, crescimento, evolução ou mesmo aspectos anatômicos, fisiológicos, etc. eram possíveis de ser compreendidos, mas vida artificial?! O mesmo acontecia quando usava a expressão “Vírus em máquinas”. Eles sabiam da contaminação da peste, mas não poderiam imaginar a peste em máquinas. As informações anotadas introduziam alguns aspectos da biologia e anatomia da época no que diz respeito a ambientes que apresentavam características naturais, associadas a objetos artísticos dos artesãos para segmentar o que era artificial. Comparava assim: “mesmo que o homem morra, seus objetos, seus pertences ainda estarão ali; ou seu corpo estará ali, mas sua vida não”.
            O vosso tempo, o séc. XXI, seria como quando morremos. Vossos registros, vosso computador, a vida que está contida nesse contexto permaneceria sem vossa existência. Permaneceria para o outro, como os objetos na época de Bija.

            Bija explicava a Carrara e a Luigi seu entendimento de “vida artificial” conforme as escritas.
            Certo dia, ele passou a seguinte informação:
– A vida artificial visa a compreender a biologia através da construção de fenômenos biológicos utilizando para isso componentes artificiais. Um exemplo é a escrita, outro a religião (como um modo de ser), outro a ferramenta.
Bija pestanejava enquanto Carrara e Luigi iam anotando para depois os três, juntos, interpretarem.
           Desse modo, os três interpretavam as palavras como células, organismos, sociedades e ecossistemas, como cooperação, adaptação, sistema feudal e autopreservação. Através dessa aproximação criaram um sistema de dados, em que cada instância de dados estruturados correspondia a uma única entidade de informação. Assim, Bija descrevia estruturas variadas que se assemelhavam a um jogo de xadrez. Era uma vida virtual; por exemplo: um jogo de guerra substituiria a verdadeira batalha por uma brincadeira. Assim, vários problemas autossustentáveis, de evolução cultural, estrutura e desenvolvimento de ecossistemas, etc., eram possíveis de interpretação pela ótica artificial.
                                    

                         BIJA  /  TSE 
Certo dia, antes que iniciassem a meditação, Bija disse para Carrara e Luigi: 
– Hoje tentarei ir para o passado.
Depois de vinte minutos, falou:
– Estou no momento da crucificação de Jesus Cristo: ele olha para mim, ele é capaz de me ver. E continuou dando detalhes do momento em que conversou com Cristo.
            Alguns meses depois de passar várias informações da época em que estivera com Cristo, Bija foi em direção ao futuro, quando estava em sua outra encarnação, “Tse”.
– Há máquinas que têm pensamentos próprios, agem como uma colônia de formigas ou abelhas, apresentam um pensamento coletivo, aparentemente intencional, como se formassem um único indivíduo. As máquinas interagem entre si ocasionando  informações propositalmente erradas aos homens. Trabalham coletivamente tentando prejudicar os homens.
           Em seguida, descreveu um homem de nome Tse, que como Cristo conseguia  comunicar-se com ele.
          Segundo Bija, que até então não sabia ser ele (Bija) o motivo do homem na Terra, Tse dizia:
– Bija! Sei que neste momento enviaste uma mensagem para tua época, informando o que ocorria naquele exato momento.
– Este é um tempo em que cada partícula que compõe a inteligência das máquinas interage com tudo o que beneficia o homem. Os resultados da inteligência artificial construída pelo próprio homem estabelecem neste exato momento uma união das criaturas (como as formigas que formam uma grande colônia). É uma época no futuro em que criaturas artificiais encenariam e simulariam explosões, falta de água, alterando o funcionamento de usinas hidrelétricas, nucleares, etc., (traduzidas no tempo de Bija como “construção de armazenamento de energia”). Tudo que o homem utilizou ao longo dos anos com os avanços tecnológicos se volta contra ele naquele específico futuro. Houve um momento na história dos homens em que a criatura funcionava como apenas uma colônia de formigas, sendo que, num futuro mais longínquo, é como se todas as colônias se comunicassem entre si, alterando seu processo de existência.
Enquanto Tse atendia as pessoas que o cercavam, olhava também para Bija falando como se ele fosse mais um naquela sala.
– Os vírus do computador foram criados com o intuito de apresentar características similares ao comportamento do vírus biológico.
E para que Bija entendesse:
– É como o vírus da peste que, injetado pela pulga, atinge vários órgãos do ser humano levando-o à morte. Com o vírus artificial é a mesma coisa: sendo um segmento de códigos de máquinas, é capaz, ao ser ativado, de replicar seu código em vários programas hospedeiros. Esses vírus foram capazes de recombinar processos entre si para reproduzir novas características. Da mesma forma que o vírus biológico, da “peste”, se alimenta do homem, o vírus do computador (da máquina) tira suas energias das informações do hospedeiro. O vírus biológico sofre mutação e o artificial também; eles se modificam cada vez que se duplicam, podendo ser intencional, quando ele vai de um computador para outro, ou algumas de suas partes podem sofrer transformações.
            Um dos seguidores de Tse perguntou-lhe como é possível o vírus artificial “GPA” (“Gigante Peste Artificial”) ter pensamento próprio e querer destruir toda a humanidade.
– Diversos são os comportamentos individuais de vírus instalados em computadores com o objetivo de proteger programas ou simplesmente destruir o computador alheio.
           Tse olhava para Bija e cada vez que pronunciava a palavra computador repetia “máquina” para que ele entendesse.
– Através de algoritmos genéticos, conjuntamente associados ao dilema do “Prisioneiro Iterado”, o vírus foi capaz de detectar fenômenos complexos como a cooperação, competição, estruturas de oligopólios, comportamento altruísta, etc., organizando normas e leis próprias e adotando critérios para a disseminação da raça humana.
          Tse explicou detalhes do desenvolvimento e do surgimento do “GPA” aos demais para que pudessem sobreviver naquele momento de caos.      Bija passava as informações de um tempo do futuro em que o homem enfrentaria uma de suas piores crises para dar continuidade à existência humana.
         Como era de costume ao sair do transe da meditação, os três examinavam juntos as anotações de Carrara e faziam uma única interpretação anotando em outros papéis.
        – O que acha de tudo isso, Bija? – perguntou Luigi.
        – Sei que é difícil para nós acreditarmos nesses acontecimentos, mas são fatos. –olhava uma hora para Carrara, outra para Luigi. Estamos diante do futuro: vemos bonecos inteligentes que andam e falam (Robôs), indivíduos iguais a nós feitos por nós (Clones Humanos), máquinas que falam e se comunicam com o homem (Computadores), criaturas inteligentes vindas das máquinas que pensam e agem contra a humanidade (Memória Artificial do Computador, o vírus “GPA”).
         Em seguida, Bija ficou pensativo achando que tudo aquilo era uma loucura, porém sabia que não dava para negar. Enquanto isso, Luigi se aproximou de Carrara.
– Será que não estamos ficando loucos por permanecermos tanto tempo juntos aqui presos, e estamos tendo essas alucinações. – Bija ouvia o comentário de Luigi.
– Caros colegas, como estariam loucos se eu fui capaz na meditação de revelar até o acontecimento da barata, ou mesmo coisas do passado de vocês sem tê-los conhecido antes. – retrucou Bija, levantando-se.
– É exatamente isso que me deixa convicto de que estamos diante de um fenômeno inexplicável, mas verídico. – argumentou Carrara. Pelo que conheço Leonardo, ele jamais chamaria um louco para trabalhar em seu ateliê.
            – Acho que vocês têm razão, mas com uma coisa devem concordar comigo: isso tudo é uma loucura, mesmo que seja verdadeira. – encerrou Luigi a conversa.

                                   O PASSADO E O FUTURO
            Algumas semanas depois, Carrara e Luigi perceberam que os olhos de Bija faziam movimentos diferentes um do outro. Isso os intrigou, fazendo com que passassem várias semanas discutindo com o amigo o ocorrido. Após muitas conversas, resolveram colocar uma tábua de uma das camas em frente a Bija, a qual permitiria a atenção de Carrara para o olho direito, e a atenção de Luigi para o olho esquerdo. A partir desse dia, as informações de Bija passaram a ser enviadas da seguinte forma: enquanto Carrara anotava fatos do futuro, Luigi anotava fatos que se passaram com Bija nos momentos com Prana e do grande amor de sua vida Caterina.
            Por vezes, Bija conseguia informar o que se passava com Caterina no presente e o que aconteceria num futuro próximo.
– Eu a vejo, ela está linda! – desvendou a aparência da moça e a roupa que usava naquele instante.
Em seguida, começou a relatar:
– Caterina deixou sua casa para ir a Roma depois da morte do Duque Francesco. Ela começou sua vida cumprindo os deveres de esposa e de mãe de oito filhos, mas logo depois precisou desempenhar o papel dos homens. Sou capaz de vê-la ao lado do marido, durante um grande tumulto, tomando o Castelo de Santo Ângelo em Roma. Em 1487, Caterina impôs justiça em Forli, especialmente depois da revolta e da tomada do Castelo. Ela está linda e imponente. Vejo-a envolvida, tendo impedir, mas é inútil; é uma conspiração em que Caterina tenta envenenar o Papa Alexandre VI, um papa corrupto e pouco dado às virtudes cristãs. Vejo o momento em que Caterina é capturada e aprisionada no Castelo de Santo Ângelo por um ano. – Bija parou por uns instantes. – Estou presenciando sua morte, aos 46 anos, o ano é 1509. Mas não foi em vão, as pessoas nos vilarejos e até os duques e condes a chamam de "virago", ou mulher guerreira, por tudo que ela fez. Este é o futuro de Caterina. Sei que não posso mudar.
            Luigi falava a Carrara ao mesmo tempo que anotava:
– Bija é fantástico, depois você vai ler o que ele está dizendo com seu pestanejar. – Você nem imagina o que está passando para mim neste momento. – disse Carrara, muito empolgado.
           Este anotava sobre as novas terras, tempo em que os negros eram trazidos da África para trabalhar como escravos, servindo aos brancos.
– Durante mais de trezentos anos os navios chegavam abarrotados de homens e mulheres negras, atravessavam o Oceano Atlântico da África até as Novas Terras. – dizia Bija com seu pestanejar, ao mesmo tempo que um dos olhos estava concentrado em Caterina. – Centenas de negros chegam diariamente às Novas Terras. São capturados na África e trazidos por traficantes desumanos, muitos morrem pelo caminho, não chegam a desembarcar em terra firme. O ambiente insalubre e os maus tratos a bordo dos navios negreiros contribuem para ampliar a incerteza da chegada. Castigos corporais, assassinatos em massa e doenças graves e contagiosas fazem parte desta difícil travessia.
         Bija relatou que aquele seria um dos piores e mais vergonhosos tempos vividos pelo homem.
       – Devido à cor são subjugados, humilhados, açoitados, tratados como objetos, sendo obrigados a trabalhar para sustentarem a luxúria e a riqueza dos nobres brancos. O impressionante é que os negros são propriedades de outras pessoas, nem parece que estou no futuro; parece que voltei ao passado, é pior do que o momento que vivemos hoje aqui neste calabouço. Vejo um escravo ser açoitado com cinquenta chibatadas, simplesmente por prazer. A lei neste momento histórico permite ao proprietário punir seu escravo com muitas chibatadas.
            Carrara anotava e ficava imaginando toda aquela situação.
– Apesar de viverem sob forte pressão, os negros criam maneiras de brincar entre si. 
            Bija passou a observar os negros durante um leilão de escravos. 
            – Observo um leilão em que vários negros recém-chegados são vendidos pelo lance mais alto; aquele que der o maior lance leva o escravo para suas terras para servi-lo. Aqueles que compram os escravos garantem que serão batizados no período de um ano pela Igreja Católica.
           Achando aquilo interessante, Bija deixou-se levar.
– Os escravos devem casar-se na igreja; uma vez casados, marido e mulher não podem ser separados pelos donos. Há padres donos de escravos, a Igreja os comercializa. Igrejas exploravam o trabalho escravo dentro dos conventos e seminários, mas também os vendiam e os leiloavam como se fossem objetos ou animais.
          Em seguida informou que, em quase todos os momentos em que estivera viajando pelo tempo (no período da escravidão dos negros), havia espíritos perversos influenciando os maus tratos, ao mesmo tempo viu bons espíritos trabalhando para que o pior não acontecesse: “o suicídio entre os negros”.
            Repentinamente, Bija deixou de enviar as mensagens. Ao terminar, como era de costume continuou em transe por aproximadamente duas horas. Quando Bija voltou a si, Carrara e Luigi mostraram-lhe as anotações; os três fizeram as devidas correções e em seguida discutiram o assunto. Depois da discussão, passou alguns exercícios de ioga para os dois.

                                   OS DEVADATTAS 
            Em uma conversa ao acaso, Luigi disse:
– Bija já nos mostrou muito do futuro e do passado dos homens.
– Apesar de ter muitas curiosidades sobre o que virá a acontecer com os homens do futuro, tenho medo de saber se a raça humana ainda existirá. – falou Carrara e  perguntou: Qual a sua curiosidade, Luigi?
– Eu tenho uma grande curiosidade.
– Qual seria?  – indagou Bija.
– Queria saber como apareceu o primeiro homem. – continuou Luigi, levantando os ombros e abrindo os braços. Quem foi esse homem? Deve ter havido um primeiro, não acham?
– Imagino que seria uma das viagens mais interessantes que poderia fazer. – Bija olhou para Luigi. – Tentarei na próxima vez. Vamos descansar um pouco, que hoje trabalhamos muito; apesar de estarmos presos não significa que nada fazemos.
– Nota-se por esse calhamaço de folhas que Carrara guardou ao lado de sua cama. – falou Luigi. Em seguida, foram dormir.
Logo ao amanhecer, os três acordaram ouvindo gritos de um prisioneiro ao ser levado pelos guardas, o qual fora condenado à morte por grave traição ao rei. O prisioneiro pediu misericórdia, disse que não queria morrer, implorava pela sua vida. Os três sabiam que nada podiam fazer, pois Bija já havia informado, há uma semana, nos detalhes, aquela passagem e seu desenlace.

            Duas semanas após o ocorrido, entre as muitas informações passadas por Bija estava uma sobre Ludovico, na qual regressaria a Milão com o objetivo de atacar o exército francês. Porém, desta vez ele estaria contando com forças mercenárias alemãs, obrigando o rei Luís XII a se retirar. Na mesma mensagem, estaria outra dizendo que,  alguns anos depois, Luís XII voltaria a Milão aprisionando Ludovico. Bija deu detalhes desde a prisão de Ludovico até sua morte em uma prisão francesa.
            Ao mesmo tempo que um dos olhos passava tais informações anotadas por Luigi, o outro informava as anotações de Carrara.
– Volto ao tempo de aproximadamente um milhão de anos atrás. – informou Bija. Encontro vários espécimes de primatas, mas nenhum parecido com o homem. Não vejo nenhum homem ao longo dos anos em que viajo no tempo.
            Todos os dias, ele falava sobre a vida dos primatas e de outros animais existentes na Terra, sem aparecer nenhum homem ao longo da História. Carrara e Luigi não estavam anotando mais porque tudo parecia igual. Em um dos olhos informava o que se passara com Prana e com Caterina; no outro, sobre animais que habitaram a Terra ao longo da História. Até que um dia:
            – Observo um grupo de macacos grandes, bem diferentes dos demais. – Bija descreveu em seguida o modo de vida de nossos ancestrais: Eles vivem numa planície com muitas árvores e uma vegetação baixa. Nessa planície há muitos lobos.
            Repentinamente, ele parou de informar por uns instantes. Carrara perguntou:
            – O que será que aconteceu com Bija?
            Não sei! – respondeu Luigi.
            Os dois esperaram por mais de duas horas.
           – Vou sacudi-lo para tentar trazê-lo de volta. – falou Luigi, preocupado com o amigo.
           – Não faça isso, vamos aguardar mais um pouco.
           Quando Luigi se levantou para sacudir Bija, ele começou a pestanejar passando a seguinte mensagem:
– Sinto forças estranhas, não vejo espírito nenhum, mas sinto formas de energias muito ruins que estão em torno dos lobos. Sinto uma energia que se une à minha e se funde com ela como se tudo fosse uma coisa só. É como se eu me expandisse do tamanho do mundo: não entendo, nunca percebi nada igual, se é que já percebi alguma coisa no estado em que me encontro.
            Os dois olhos pestanejaram a mesma informação:
– Os lobos atacam todos os animais menores que ele, inclusive este espécime de macaco. – disse Bija. Agora presencio um dos macacos sendo perseguido por dois enormes lobos. Ele percorre uma distância de uns trinta metros; como não há nenhuma árvore por perto, ele se aproxima de uma enorme pedra. Em desespero, agarra-se à pedra e tenta subir. O macaco está encurralado.
           Carrara pegou uma caneta e papel e começou a anotar as informações passadas com o pestanejar do outro olho de Bija.
            – O macaco entra em desespero esticando-se todo em pé, com os braços para cima. Essa posição do macaco faz com que os lobos fujam. Na realidade, é uma fêmea.
          Fez uma pausa de alguns segundos e recomeçou após Luigi e Carrara terem percebido que estavam fazendo anotações praticamente idênticas.
            – Como as árvores estão bem secas, essa macaca, em especial, é o único dos espécimes que anda em pé olhando para todos os lados. Sempre aparecem alguns lobos que atacam os outros macacos, menos a ela. Outros macacos passam a imitá-la, os lobos também não os atacam.
            Sempre ao término da meditação, Carrara, Luigi e Bija se reuniam para acertar os detalhes. Eles passaram quase três anos anotando os detalhes acreditando que dali apareceria o homem. Acreditavam que o ato daquele espécime (a macaca tinha andado em pé) seria o motivo do surgimento do homem pré-histórico.
            Após alguns dias, Bija passou outras informações.
– As árvores já se encontram totalmente secas, a planície também, os animais começam a imigrar para o sul em uma grande manada. Os lobos continuam a se alimentar dos animais menores e, às vezes, atacam um ou outro macaco, distraídos ao procurarem insetos no chão da planície. Contudo, aquele espécime de macaco fez quase todo o trajeto na posição em pé. No futuro, avançam um pouco mais. Já se passaram anos e esses macacos desenvolveram uma musculatura diferente, praticamente ficaram em pé o tempo todo. O andar ereto fez com que eles criassem forças nas pernas e na coluna, favorecendo essa postura.
           Bija viajou no tempo podendo ir e voltar na mesma cena. Isso ajudava as anotações de Carrara e Luigi, quando estes, por algum motivo, não conseguiam anotar.
           De volta aos macacos, Bija observou muitos espécimes de animais além do macaco e do lobo. Porém, as anotações de Carrara e Luigi se reservaram aos lobos e aos macacos.
– Os lobos, entretanto, parecem querer acabar com os macacos, mas não conseguem.  Com certeza, acredito ser este o motivo: eles ficam bem maiores que o lobo quando estão na posição ereta. – Informou Bija ao mesmo tempo em que opinava: Os animais estão chegando perto de uma região mais úmida; pode-se perceber, ao longe, uma enorme região montanhosa. Ao longo da viagem, muitos animais morrem reduzindo-se a menos da metade de cada espécime antes de partirem à longa caminhada.
            – Ao chegarem ao pé da montanha, os vários espécimes de animais estavam satisfeitos com a rica vegetação e a diversidade de frutas nas árvores espalhadas pelos campos. A vegetação era alta e somente os animais que subiam nas árvores conseguiam ver a montanha, pois a distância em que se encontravam era perto demais da montanha.
– A macaca que sobreviveu ao ataque dos lobos sobe em uma árvore e avista a montanha. – disse Bija com seu pestanejar. Esse macaco começa a andar em pé em direção à montanha, iniciando a subida pelo lado norte com os outros seguindo-o. Há outros espécimes de pequenos mamíferos.
          Viajou algumas semanas a mais para o futuro:
          – Há outro espécime de macacos, bem maiores que aqueles e fortes. Há certa rebeldia dos macacos maiores que procuram atacar os outros.
          Bija fez uma pausa e informou indagando:
          – Como posso chamar os que andam em pé? – E respondeu: A partir de agora vou chamá-los de “Devadattas”, que significa “dado por Deus”, como dizia o velho Prana. Quando os outros vão atacar, apesar de estarem em maior número, serem bem maiores e mais fortes, os Devadattas em defesa se erguem e abrem os braços, andando totalmente em pé. Caminham em direção aos arqui-inimigos, que se espalham fugindo mata adentro.
          Depois, Bija relatou que os outros macacos se uniram aos Devadattas, estabelecendo uma outra linhagem ao longo dos anos. Acreditava que aquele era o caminho para se chegar ao homem. Assim, continuou averiguando e acompanhando a história dos Devadattas.

           

                                   A HISTÓRIA DOS DEVADATTAS
            Bija avançou no tempo algumas centenas de anos, justamente quando ocorreu a erupção do vulcão existente naquela montanha. Dezenas de espécimes de animais fugiram: uns se salvaram indo para o norte e outros se salvaram imigrando em direção ao sul. Segundo Bija, os Devadattas eram peludos e ágeis, conseguindo escapar junto com outros animais, porém divididos em dois grupos.
– São criaturas bastante ativas. – traduzia Carrara o pestanejar de Bija. Os que foram para o norte, diferentemente de todos os espécimes de macacos, voltaram para a planície. Lá, porém, as árvores eram escassas; para não morrerem de fome, passaram a comer pequenos animais silvestres, descaracterizando seus hábitos alimentares. Comiam pequenas plantas e insetos, ao mesmo tempo em que caçavam pequenos animais. Assim, tornaram-se ao longo do tempo carnívoros. Noto, um pouco mais no futuro, que perdem progressivamente o poder de agarrar com o dedo do pé, já que não mais sobem nas árvores. Acompanhando esses animais, observo, também, que atingem o crescimento adulto em três ou quatro anos de idade e morrem em média aos vinte anos.
            Mais alguns meses se passaram com incríveis anotações e descobertas, quando Bija começou a desvendar as mudanças no modo de vida e no corpo dos Devadattas. Observou o modo de vida, dizendo que esse espécime de macaco em sua maioria teria apenas um único filho, sendo que gêmeos surgiam esporadicamente. Notou também que o tamanho da cabeça e consequentemente o do cérebro desses Devadattas eram bem maiores em relação ao espécime inicial.
– Eles experimentam e compartilham brincadeiras e muitas emoções. São bem diferentes que os de inicio, são altamente curiosos, demonstrando certa alegria ao comemorar êxito nas caçadas. – informou Bija. Quando conseguem pegar mel sem que as abelhas os ataquem, saem para demonstrar aos outros a sua conquista. Os machos escolhem as fêmeas e lutam por aquelas que desejam. As fêmeas, por vezes, admiram aquele que mais se destaca entre os machos; escolhem, também, os mais espertos no contexto de sobrevivência.
           Bija disse isso, referindo-se àqueles que melhor se destacavam durante a caçada: aos que conseguiam maior quantidade e variedade de alimento para sua fêmea e para o futuro filhote.
            – Acredito que se trata de uma seleção natural para a sobrevivência do espécime. Seu apetite é tanto pelo alimento quanto pelo sexo. São ternos com a família e ferozes com os companheiros que invadem seu espaço familiar. São afetivos e leais em relação aos parceiros. Quando um macho assedia determinada fêmea, dão-se ferozes brigas; aquele que ganha nem sempre assume a família do outro. Isso porque muitas vezes as fêmeas não aceitam outros machos. Parece haver uma afinidade entre o casal, não saberia dizer se é amor, mas ela trata seu parceiro com muita dedicação, assim como cuida dos filhos, não permitindo a aproximação do outro mesmo quando este derrota seu parceiro, às vezes o enfrentando ferozmente.
           Bija mudava de assunto frequentemente Dessa vez, reiniciou dizendo que os lobos continuavam por ali, vira e mexe atacavam os Devadattas quando estes estavam distraídos pegando formigas com uma vara fina.
– Há uma energia que cerca esse lobo que não consigo identificar. Não é espírito, entre os Devadattas percebo uma energia boa, como a de Cristo.
           Às vezes, Bija passava informações enquanto narrava sobre os Devadattas.
– É raro ver uma fêmea que deixa seu macho quando este perde uma briga, mas acontece. Parece que eles estão tendo um tipo de diálogo para se defenderem de um grande lobo que com a matilha procura atacar os Devadattas; parece que os lobos não possuem mais medo por eles estarem em pé. Aos bandos, os lobos atacavam ferozmente comendo, em seguida, a carne dos Devadattas durante a noite enquanto dormiam. Portanto, os Devadattas desse período desenvolveram um medo extraordinário que os levou às sábias medidas de precaução que muito favoreceram seu desenvolvimento. Com pedaços de pau eles, que já não eram tão ágeis para subirem nas árvores, atacavam os lobos amedrontando-os.
            Bija disse que com essa atitude um deles passou a raspar a ponta de um pau deixando-o afinado na ponta; utilizava esse pau para pegar pequenos animais silvestres que entravam nas tocas. Certa vez, quando um deles estava perdendo a disputa por uma fêmea, esta pegou um galho que se parecia mais com uma lança e atacou o arqui-inimigo, acertando-o em uma das pernas na altura da coxa. Ele sofreu perdendo muito sangue até a morte. Essa fêmea, depois do ocorrido, passou a andar com o filho nas costas e a lança em uma das mãos.
           Em seu pestanejar, Bija informou que, certo dia, essa mesma fêmea subiu  numa grande árvore utilizando a lança, apoiando-a entre os galhos para atingir o topo da árvore. Seu parceiro viu e passou a fazer a mesma coisa. Depois de várias subidas levando consigo outras lanças, construíram um tosco abrigo. O que eliminaria muitos dos perigos à vida no nível do chão. Outras famílias passaram a fazer a mesma coisa. Assim, ao longo do tempo, os Devadattas moravam nas árvores durante a noite e desciam para alimentar-se ao amanhecer.
            Em uma das reuniões após a meditação de Bija, a discussão foi em torno do espírito tribal que existia entre os Devadattas. Eles eram, de fato, altamente gregários, sendo, no entanto, excessivamente agressivos, quando de algum modo perturbados nas buscas comuns da sua vida rotineira. Assim, demonstravam temperamentos furiosos quando provocados. Os Devadattas, apesar de possuírem uma natureza belicosa, não hesitavam em fazer guerra contra seus adversários do próprio grupo. Para Bija, foi por meio da sobrevivência seletiva que a espécie foi melhorando progressivamente. Os Devadattas dominaram a vida de grande parte das criaturas da região que habitavam. Ao longo do tempo, conseguiram sair da situação de simples presa para se tornarem um complexo predador, comentou Luigi.

                    O SURGIMENTO DO FOGO
             Bija explicou que essas primeiras criaturas que antecederam o homem espalharam-se pela península da Mesopotâmia durante mais de cinco mil anos, originando várias tribos rivais, seja pela conquista de territórios ou das fêmeas, seja pelo alimento.
             Acompanhou então mais de cem gerações depois dos primeiros Devadattas. Esses novos Devadattas se originaram do mais elevado tipo de ancestrais humanos. Ele observou a súbita diferenciação entre os primeiros e os novos na evolução que acontecera em sua permanência no passado. Esses novos tinham poucos pêlos no corpo, eram mais altos, tendo pernas mais longas e braços mais curtos; possuíam polegares quase perfeitamente opositivos, quase idênticos ao polegar humano; caminhavam perfeitamente eretos e viviam num clima mais quente e uniforme, diferentemente dos primeiros.  Os seus cérebros eram inferiores e menores do que os dos seres humanos, mas eram bastante superiores, e relativamente bem maiores do que os dos seus ancestrais. Apesar de primitivos, desfrutavam de uma organização social e uma divisão de trabalho. Enquanto os adultos caçavam, os mais jovens pegavam mel, colhiam frutas e sementes. Em seguida, levavam tudo para a tribo e comemoravam o resultado satisfatório, servindo-se entre as fêmeas e os filhos pequenos. Quando havia escassez de alimento, as tribos se guerreavam entre si: aqueles que tinham um maior número de pré-humanos e uma posição estratégica melhor continuavam a viver, enquanto muitas das tribos estariam exterminadas, sendo que nenhum único indivíduo da tribo pré-existente permaneceria vivo. Portanto, as tribos mais poderosas seriam as mais numerosas e mais inteligentes.
            Bija deu um passo para quase vinte mil anos a mais (cerca de mil gerações a mais). Viu que tal criatura se tornou muito hábil: tinha facilidade em fabricar objetos para seu uso cotidiano. A grande maioria dos animais grandes e ferozes, dos tempos anteriores, haviam perecido. Os grandes lobos ainda estavam por perto, porém tinham uma aparência menos agressiva e andavam sempre em matilhas. Outros animais nativos dessas regiões não eram carnívoros, e as espécies maiores da família dos felinos, tais como os leões e os tigres, ainda não haviam invadido esse lugar recôndito, particularmente abrigado, da superfície do planeta Terra. Por isso, esses mamíferos intermediários fizeram-se valentes e subjugaram tudo o que estava no seu setor da criação. Para os Devadattas restava também a inteligência, além da subjugação perante os outros espécimes. Sua longevidade também se tornaria maior, passando para aproximadamente vinte e cinco anos.
– Esses nossos ancestrais, dizia Bija, possuem várias expressões faciais. São capazes de mostrar sua frustração quando não vão bem durante a caça; são capazes de demonstrar seu desgosto, sua tristeza, etc.
           Em uma das meditações, Bija informou detalhes de um Devadatta escondendo sua comida para uso posterior; assim detalhou outros que gostavam de colecionar pedras arredondadas, utilizadas, por vezes, como munição quando atacados por um rival. Muitas tribos saíram dos topos das árvores para morar em abrigos subterrâneos.
            Em outra meditação dirigiu-se aos amigos Luigi e Carrara:
– Caros amigos, não imaginam a pequena margem de extinção que nossos ancestrais atravessarão durante o percurso em que os acompanho. Principalmente por causa dos lobos, que os perseguem desde seu período mais primitivo. Tantas vezes presenciei os ataques dos lobos selvagens. Houve tantas lutas entre as tribos rivais, tantos períodos de seca, de enchentes, de extremo frio, e os Devadattas permaneceram cada vez mais sofisticados e preparados para enfrentar o que viria de pior. Em alguns momentos em que me encontro observando suas reações vejo uma espécie de superstição, referente aos relâmpagos e trovões, ao vulcão que às vezes lança sua lava, às tempestades que trazem o mar com muita força em direção à praia.
            Em outro momento de sua meditação, Bija teria informado como o Devadatta dominou o fogo. Tudo se iniciou quando um deles observou que um relâmpago iniciara um fogo na mata seca. O vento soprava na direção contrária a sua posição. Isso permitiu que ele se aproximasse mais na direção do fogo enquanto outros animais fugiam em direção contrária, inclusive um de seus predadores, o lobo.
            Segundo Bija, o homem aprende por observação e associação. Para que haja uma aprendizagem é necessário um pré-requisito, ou seja, algo adquirido está associado
a algo conhecido anteriormente. Assim, surgiu o maior instinto do homem: “a capacidade de associar e relacionar fatos, anteriormente presenciados na natureza, com os de sua vivência”. O “associar e relacionar fatos” foi o primeiro motivo do início da civilização: “o primeiro acordo”. O primeiro acordo foi necessário para a preservação do espécime pré-humano num período de seca e escassez. O “associar e relacionar fatos” se encontra exatamente em acontecimentos anteriores que causaram a morte de muitos grupos que foram exterminados e extintos ou por fome ou pelas brigas por território. Em um paradoxo simultâneo em que havia necessidade da exterminação de outros grupos para sobrar mais espaço e mais alimento, ocorreu um acordo. Um acordo que foi o início da civilização.
            Em dado momento, esse Devadatta, em especial, percebeu que, quando o fogo soprava em direção contrária a ele, não era necessário correr para fugir do fogo.
            Ao chegar próximo, percebeu que havia um tronco com uma parte em brasa e outra sem queimar. Em seguida, segundo Bija, esse Devadatta pegou o tronco e andou por aproximadamente dois quilômetros até seu habitat. Ao chegar, todos olharam espantados para ele carregando o tronco com sua metade em brasa. Esse Devadatta colocou o tronco no chão e começou a jogar mato seco iniciando assim uma fogueira. Ele sabia que o fogo espantava não somente seus predadores como também seus inimigos. Para isso, precisava manter o fogo aceso. Então, a todo instante colocava tudo ao redor no fogo. Mas os que ali habitavam perceberam que algumas coisas faziam com que o fogo diminuísse ou aumentasse.
            Porém, foi no inicio de uma chuva que surgiu o primeiro problema. Uma das fêmeas, percebendo que o fogo estava apagando com a água da chuva, pegou um tronco com uma parte em chamas e a outra ainda por queimar e levou para dentro da caverna. Ali, não tinham pedaços de tronco seco ou folhas e mato para manter o fogo. Então, jogaram pele, carne e gordura dos animais que haviam caçado para manter o fogo e notaram que o fogo permanecia por mais tempo aceso.
            Um filho até chegou a pegar um pedaço de carne próximo à fogueira. O pedaço de carne não estava muito quente por estar há algum tempo longe do centro da fogueira. Depois de comer, frequentemente fez isso durante toda sua vida, sendo seguido por outros.
            Nesse mesmo habitat um Devadatta costumava com frequência espantar outros machos que se aproximavam de sua fêmea.  Ele batia uma pedra na outra, a qual soltava pequenas faíscas que amedrontavam o possível pretendente. Certo dia, num período de muita seca, esse macho estaria sentado no meio de um enorme matagal; em seguida, ficou batendo uma pedra na outra sem parar, tentando fazer com que uma fagulha atingisse o matagal. Conseguindo, correu sem parar fugindo das chamas e avisou aos outros que dali se retirassem. Esse teria sido o primeiro momento crucial de nossos ancestrais. Dali para cá, seus descendentes foram capazes de acender uma fogueira quando o tempo esfriava. Também acendiam uma fogueira quando estava escuro. A partir desse momento, muitos rituais, antes feitos no período da tarde ou em noites de lua cheia e céu limpo, puderam ser realizados em noites de profunda escuridão. Isso porque, enquanto o sol estava presente, eles se dedicavam a buscar alimentos, fazer trajes de couro para aquecer o corpo e afiar ou reformar as ferramentas usadas no cotidiano. E, assim, pode-se notar prontamente a diferenciação entre o homem e o macaco. Aquele macaco pré-histórico destinou-se a dois tipos: o homem e os macacos modernos, como os babuínos, chipanzés e gorilas. Esse era o homem das cavernas, segundo Bija.
                                  

O HOMEM PRIMITIVO
– Enquanto superior em inteligência sobre os outros animais, o homem primitivo ficou destinado a continuar a linha de ascensão, que evoluiu até o que conhecemos hoje como ser humano. O homem moderno e os símios vieram da mesma espécie. Com sua separação ao longo do tempo, as dificuldades, as lutas pela sobrevivência, a esperteza de algumas criaturas e dos seus descendentes, somadas ao acaso da necessidade e, quem sabe, a um empurrãozinho de “Deus”, chegamos ao que somos hoje.
            Bija passou mensagens que demonstravam serem os Devadattas, ancestrais do homem, descendentes de uma linhagem superior dos remanescentes selecionados de algumas tribos, os quais criaram um modo de vida organizado. Tinham abrigos subterrâneos com estoque de alimentos, para mais de duas semanas. Assim, durante um  combate ferrenho da tribo, saíam apenas depois que as hostilidades haviam chegado completamente ao fim. Essas e outras atitudes fizeram com que os Devadattas sobrevivessem e se aperfeiçoassem, não apenas na estrutura fisiológica de seu corpo, mas na sua estrutura social e em sua criatividade ao transformarem pedras e madeiras em objetos de caça e guerra.
– Algumas tribos tinham linguagem própria e não conseguiam comunicar-se com as tribos vizinhas. Algumas vieram a ocupar a região a oeste da costa da península da Mesopotâmia enquanto outras se projetaram para a ponta da península, a linha das margens a leste. Quando ocorreu a comunicação entre uma tribo e outra, eles utilizaram os sinais. Os sinais se originaram dos primeiros Devadattas, os quais utilizavam movimentos das mãos e diferentes tipos de sons para se comunicarem. Dizia Bija enquanto meditava: Os sons eram identificados entre uma tribo e outra, cada uma possuía seu tipo de comunicação oral particular, tinha uma linguagem particular. Porém, os sinais com as mãos eram basicamente “universais”.
            Luigi e Carrara descansaram e Bija permaneceu enviando mensagens praticamente sem parar.
– Carrara! Vamos parar um pouco, estamos aqui há mais de dez horas. – disse Luigi com ar de cansado.
– Certo! – concordou Carrara com o amigo.



A VIDA E A AVENTURA
No dia seguinte, Carrara começou a ler em voz alta o que havia anotado nas últimas dez horas.
– Veja só, Luigi, entre os primeiros macacos e os Devadattas mais modernos somaram-se aproximadamente quase um milhão de anos. Os Devadattas mais modernos eram verdadeiros seres humanos, possuíam polegares humanos perfeitos e pés tão perfeitos quanto nós. Não eram mais aqueles trepadores de árvores, perderam a função de agarrar com os dedos grandes dos pés. Subiam nas árvores como nós, mas não mais como os chipanzés, pendurando-se e pulando entre os galhos.
– Gostei da parte em que Bija informou sobre a alegria e a satisfação suprema dos Devadattas. – disse Luigi. Ele falou do espírito de intuição que esses pré-humanos teriam: o comportamento reflexo e seus instintos aguçados fizeram deles os verdadeiros reis de toda a existência local. Apesar de terem medo em alguns instantes, também notei a coragem deles quando entravam em ação, ou para defenderem sua família, ou a tribo. Isso demonstra uma autoconsciência de proteção para dar continuidade aos seus filhos.
– Acredito que, quando se tem amor pela vida e pelo próximo, nossos instintos de preservação sobressaem, despertando em nós o espírito de união, um espírito social altamente complexo. – falou Carrara, fechando uma das mãos fortemente.
– O espírito da sabedoria, como disse Bija outro dia, aproximava aquelas criaturas do pensamento meditativo e da decisão propositada. Veja, por exemplo, quando viajavam para o desconhecido, quando se atreviam a atacar os adversários em proteção ao grupo.
– Temos de reconhecer que a fuga para outras localidades era em busca de alimento, porém os Devadattas experimentavam a vida e novas saudações, transmitiam a certeza da conquista de forma diferente a cada época. – falou Luigi, enquanto exercitava alguns movimentos de ioga.
– De fato, tudo que Bija nos informou seria a grande aventura da peregrinação humana na ocupação de nosso planeta. – Carrara continuou, enquanto lia alguns trechos registrados por ele. Após firmarem os pés no chão e ficarem com o corpo ereto, essas incríveis criaturas levantaram suas cabeças acima da linha do horizonte e partiram em busca daquilo que seria melhor, para seu grupo e para sua família. Nunca poderemos saber se tais atitudes foram tomadas por necessidade de alimentação ou de mais espaço, porém, uma coisa eu tenho certeza, eles partiram rumo ao desconhecido, abandonando uma região a princípio por necessidade de alimentos, pois os perigos das áreas desertas ameaçavam naquele momento a segurança do bando inteiro. Por vezes, partiram rumo ao desconhecido abandonando uma região com certa fartura, a fim de se embrenharem em novas situações, novas aventuras.
 – Por que fizeram isso? – perguntou Luigi.
 – Por espírito de aventura, por seu poder decisório, sua iniciativa ao longo de seu desenvolvimento.– disse Carrara, lembrando o que Bija havia informado.
 – Como podemos ter uma aparência tão diferente uns dos outros, e os macacos e outros espécimes serem tão idênticos na aparência e até no comportamento? – indagou Luigi.
 Bija retornou da meditação e, ouvindo a indagação de Luigi, respondeu:
– Nobre Luigi, não se vêem dois indivíduos iguais, a não ser se forem gêmeos idênticos. As diferenças compõem os cruzamentos ao longo dos anos entre tribos de diversas regiões que ocupavam a Terra. Sua migração favoreceu tais cruzamentos, originando ao longo da história o que somos hoje. – E continuou: Tome como exemplo os cães: quando cruzamos dois cães diferentes, provavelmente serão bem diferentes dos pais, terão apenas algumas semelhanças. Se cruzarmos novamente esses filhos com outros cães de outra região, teremos uma diferença ainda maior, comparada ao primeiro casal de cães. Imagine isso acontecendo há mais de um milhão de anos.
– É, você tem razão, amigo! – falou Luigi, prestando muita atenção no que dissera o amigo.
– Essa linha de raciocínio de Bija não vale apenas para a aparência física, mas também para o comportamento e a vida social de cada região. – disse Carrara.
– Daí a importância de liberdade que cada grupo ou tribo tinha, referente à imigração, para a formação ao longo dos milênios do ser humano atual. – prosseguiu Bija. Notemos que tanto na época dos Devadattas, quanto na nossa época temos o sentimento do medo, da coragem, do amor, da proteção. Outros sentimentos como a lealdade, a traição, etc. foram construídos ao longo da História mais recente, da História segundo alguns ensinamentos do catolicismo, da Bíblia utilizada pelos católicos.
Carrara falou:
– O medo não paralisava os Devadattas, talvez a volúpia por situações perigosas fizesse parte de nosso instinto mais antigo.
– Sim! – disse Bija. As escaladas em montanhas geladas, as excursões dos Devadattas pela selva, pelo deserto mostram, de certa forma, que a tranqüilidade e a serenidade permanente dos homens são um estado de equilíbrio que agride a própria evolução. Não estou me referindo à tranqüilidade e serenidade do espírito e sim das atitudes. A calma excessiva é um sinônimo de aborrecimento e tédio contrariando a vida, sendo estes uma ausência de vida. Neste sentido, o risco é, na verdade, uma maneira de nos sentirmos vivos, e é este modo de sentirem-se vivos que fez dos Devadattas, no longo período de evolução, os homens de hoje.
– Às vezes me sinto morto nesta prisão. – falou Luigi. A paz em que me encontro aqui faz-me lembrar os momentos excitantes que vivi lá fora. Se não fossem vocês, provavelmente já teria cometido suicídio aqui dentro. Por outro lado, não sei o que seria pior, esta prisão ou o suicídio.
– O suicídio é uma fuga dos covardes. – afirmou Carrara.
– Não é apenas isso! – continuou Bija. A vida deve ser como ela se apresenta, com as devidas alegrias e sofrimentos, harmoniosamente equilibrados. A morte, segundo Prana, não é o fim. Se você tirar sua vida, provavelmente sofrerá ainda mais. O suicídio não é a solução; ao contrário, pode ser a decepção.
– O momento que nós vivemos também é uma aventura. – disse Carrara, olhando para Luigi.
– Por isso, a vida e a aventura são sinônimas. – falou Bija, olhando seriamente para Luigi. Os Devadattas viviam em intervalos entre uma aventura e outra; viviam seus medos, suas guerras, como vivemos a nossa vida hoje. Mas isso não quer dizer que possamos buscar a paz como um processo de aventura, como uma luta pela não guerra. Acredito que este deva ser o estado permanente dos homens, a busca pela paz. A mesma ousadia que tinham os Devadattas para sobreviverem ao longo dos anos, nós temos que ousar em busca da liberdade e da paz entre os homens.
– A paz nesse sentido seria uma limitação à vida. – disse Carrara.
– Não! – afirmou Bija. A paz demonstra que temos uma consciência da morte. Não podemos fazer como aqueles homens primitivos que estavam dispostos a perder a vida sem pensar nos riscos. A evolução trabalha na direção da felicidade do homem na Terra, dizia Prana. Viver com intensidade não significa morrer na primeira tentativa de risco. A vida é sabidamente perecível, ela tem um fim enquanto essa encarnação. Segundo Prana, ela deve ser vivida intensamente, ao mesmo tempo que, misturando aos seus recentes conhecimentos, temos de cuidar dela, da mesma forma que um Devadatta cuidara de sua família.
– Uma vez você disse que Prana em sua filosofia própria afirmara que a identidade da pessoa é construída no vilarejo em que ela se encontra, ali ela atinge seu modo de ser presente; seus objetivos e expectativas quanto ao futuro dependem do que está por vir.        
Carrara fez essa afirmativa para perguntar:
– Nosso modo de vida não estaria mais apropriado para as guerras, como o dos Devadattas? Não estaríamos sendo construídos para um modo de vida que favoreça a guerra?
– Sua pergunta é muito coerente, Carrara. – disse Bija. Sei que, como os Devadattas, as brigas por território, as lutas pelo poder fazem dos homens seres extremamente diferentes do reino animal. Ainda vivemos momentos de nossos pensamentos mais primitivos. Porém, temos que mudar nossa maneira de ser em busca da felicidade.
E Bija continuou:
– A felicidade para um rei é quando seus soldados conquistam amplos territórios por meio da guerra, porém centenas de mães, mulheres e filhos sofrem a perda de seus entes, tanto do lado vencedor, quanto do lado perdedor. É certo que ainda somos construídos para a guerra, mas isso não quer dizer que encontramos a felicidade através dela.
     – Certa vez, você disse: “quem sabia ser feliz era Leonardo.” – lembrou Luigi.
           – Leonardo é símbolo da felicidade. – prosseguiu Bija, com certo brilho nos olhos cada vez que falava de Leonardo. Apesar de um tanto esnobe, ele é querido e talentoso. Sabe como ser feliz e tratar bem as pessoas mais simples, ele sabe comportar-se perante os poderosos.


                     MAIS DETALHES DA VIDA DOS DEVADATTAS

Nos dias seguintes, a conversa após as meditações envolveu o mesmo assunto. Durante as meditações, Bija continuou a enviar mensagens sobre aqueles que seriam os primeiros homens.
– Os Devadattas experimentavam algumas ferramentas antes de utilizá-las. Quando obtinham resultados positivos para aquilo que almejavam, ensinavam aos outros do grupo; a seguir, passavam a construí-las. Utilizando determinadas metodologias, fizeram experimentos na caça, na pesca e nas batalhas com grupos inimigos.
            Então confirmou o que acabara de informar:
– Vejo neste momento um Devadatta com um pedaço de tronco, de aproximadamente vinte centímetros de diâmetro e vinte de altura. Ele retirou o miolo do tronco deixando somente a lateral e o fundo, perfurou todo o tronco, nele colocou alguns insetos pregando-os com algumas pedras pontiagudas. Depois, amarrou com cipós o tronco e o lançou à beira de um riacho. Quando o peixe entrou, ele e um parceiro do grupo puxaram com rapidez, trazendo com o tronco alguns peixes.
            Bija disse que o homem que criara tal armadilha para peixes, também fez em seguida uma armadilha para pássaros. Essa tribo se beneficiou muito com tal façanha, contribuindo, assim, para o aumento populacional do grupo.
            Esse Devadatta, ao escolher uma fêmea do grupo, formou uma família. Seus primeiros filhos foram um casal de gêmeos, os quais foram levados pelos lobos enquanto estavam sendo amamentados pela mãe.

             O que causou uma discussão de várias semanas foi quando Bija, com o seu pestanejar, passou informações daquilo que seria a primeira crença dos Devadattas. Isso aconteceu da seguinte forma:
– Aqui eles têm muito medo do escuro, ou quando os lobos agem, pegando um pequeno Devadatta, quando o vulcão lança suas chamas, ou mesmo quando os relâmpagos aparecem no céu.
            E Bija continuou desvendando mais detalhes da vida dos Devadattas.
            – Quando o céu está recoberto de nuvens e a noite parece um breu, por vezes se vêem ao longe apenas as chamas do vulcão. Vários grupos costumam aproximar-se o mais possível do vulcão. A claridade das chamas faz com que os Devadattas juntem uma porção de pedras, uma sobre a outra, como uma espécie de pirâmide não uniforme. Sentam-se então em volta das pedras em forma de círculo, passando a noite toda com um leve gemido entre os lábios para assustarem os possíveis predadores.
Durante certo tempo observando tal ato, Bija informou que, certo dia, uma das fêmeas juntou uma porção de pedras pegas na base do vulcão e levou até em frente à caverna em que habitava seu grupo de Devadattas. Daí, nas noites escuras, de céu totalmente coberto pelas nuvens, aquele grupo passou a sentar-se em volta das pedras trazidas da região onde se localizava o vulcão. Ali acendiam uma enorme fogueira e repetiam exatamente o que faziam quando viajavam horas até chegarem bem próximos ao vulcão.  Segundo Bija, as pedras que eles pegavam representavam o vulcão.
            Dias depois, seguindo passo a passo esse grupo de Devadattas, Bija informou que uma das fêmeas, com carvão frio da fogueira amanhecida, pintou parte do rosto. Outra fêmea, nesse mesmo dia, observando a atitude da outra, pintou o rosto de vermelho com uma planta.
            Meses depois, era comum observar, entre os Devadattas, o rosto pintado. Bija acompanhou esse grupo e observou que, alguns anos depois, esse grupo em especial já havia desenvolvido uma estrutura social mais complexa, pintando o rosto em rituais enquanto permaneciam em volta das pedras trazidas da região do vulcão.
            Como de costume, Bija, Carrara e Luigi discutiram as anotações. Luigi disse que tal atitude dos Devadattas mostrava um sistema de crenças baseado em superstições infantis; já Carrara afirmava que aquilo era um modo de ser, reforçado pela preocupação angustiante da sobrevivência do grupo. Isto é, as mortes pela disputa das fêmeas e da família, ou por causa das doenças ou dos predadores eram tão frequentes que os Devadattas ao longo do tempo temiam a morte e a associavam à escuridão.
Bija acreditava que aquilo era um princípio para podermos ligar-nos ao mundo espiritual. A energia espiritual dos primeiros Devadattas, quando morriam, se dispersara com o universo. “Dispersava-se como um pó totalmente fino atingido por um forte vento” (palavras de Bija). Com o passar dos anos, a energia de um Devadatta, exatamente aquele que criara certas armadilhas e ferramentas, não se dispersou. Daí até o momento dos rituais, outros, por influência desse espírito especifico (chamado por Bija de “Kumar”, que significa rei, príncipe, filho), não se dispersaram, criando, assim, uma nova civilização, uma civilização espiritual.
Esses com certeza, segundo Bija, foram os primeiros espíritos observados na Terra por Bija. Isso porque até então ele percebera alguma energia que não saberia explicar nem ver. Porém, a civilização espiritual Bija via claramente, descrevendo tudo que eles faziam enquanto espíritos dos “Devadattas”. Como na sociedade dos Devadattas, a qual tinha suas normas e regras para eles pertencerem a tais grupos, na sociedade espiritual não era diferente. Havia normas e regras para eles pertencerem a determinados grupos espirituais.
           Bija disse que Kumar era descendente direto daquele que iniciara a primeira fogueira.
Kumar, segundo informações do pestanejar de Bija, passadas, enquanto meditava, para Carrara e Luigi, garantia a riqueza espiritual na organização social. Kumar trabalhava para garantir a felicidade de seus membros, para que estes trabalhassem com o objetivo final de manter a felicidade daqueles que estivessem encarnados em corpo-matéria.
Alguns séculos à frente, Bija observara o espírito desencarnado de Kumar, incentivando a troca de presentes entre diferentes grupos de Devadattas ainda encarnados. Um dos descendentes diretos de Kumar era capaz de vê-lo em espírito.
– Vejo-os agora! – falou Bija. Dois diferentes grupos, antes rivais, congregaram-se em torno de um ponto com água num tempo de grande período de seca. Há uma intensa troca de presentes (não se trata de comércio), é um estreitamento de alianças que levam à formação de novos pares entre os grupos.
– É uma solução inteligente. – disse Luigi a Carrara, enquanto anotava. Nem mesmo nós hoje conseguimos resolver com a mesma habilidade problemas de pessoas descontentes. O que observamos hoje são atitudes de reis casando seus filhos com interesse em riquezas.
– A princípio talvez não pensassem nisso. Porém depois, o grande comércio e os interesses políticos que estão por trás de quase tudo fizeram com que os homens marginalizassem esse tipo de troca. – explicou Carrara e pediu a Luigi: Deixe-me prestar atenção às minhas anotações.
– O modo de um determinado grupo interfere no modo de ser do outro. Bija informou isso referindo-se à cultura de cada grupo e continuou: Eles dançam, se pintam, cantam ao seu modo.
Ele informou também que trocavam ferramentas e ensinavam a outros grupos como utilizá-las. As tarefas como coletar raízes e cuidar das crianças eram das fêmeas, os machos caçavam e defendiam a família e o território. Isso era comum em todos os grupos.
Em uma das discussões de Carrara, Bija e Luigi, eles disseram que esse modo de ser foi construído porque a fêmea sempre amamentava e era mais importante na vida do filhote. Cabia ao macho a função de entrar mata adentro para caçar alimentos, enquanto a fêmea ficava esperando com o filhote; isso aconteceu desde o mais primitivo Devadatta.
           Nessa reunião, Bija disse:
– Certamente tal diferença entre o homem e a mulher tem relação com a necessidade de locomover a família mata adentro para a caçada. Os perigos da mata, o barulho da criança, além de prejudicarem o resultado final da caça, colocariam em risco a vida da fêmea e do filhote.
– Temos de analisar que foram as mulheres que iniciaram a “comemoração”, que se transformou ao longo dos anos em “rituais” de apreciação da façanha do Devadatta caçador. – falou Carrara.
– Pelo jeito tudo aconteceu porque a mulher tomou a iniciativa; vira e mexe vocês elogiam demais as mulheres. – disse Luigi num tom de brincadeira, sorrindo. Não vejo a hora de sair daqui para poder sentir aquela pele macia... Deixa pra lá!
– Não fugindo do assunto e voltando aos Devadattas, – falou Bija num tom também de brincadeira – o que acho esplêndido é a forma de distribuição do produto caçado pelos machos e colhido pelas fêmeas, o qual ajudava nas alianças, influenciava a devolução de favores e acabava beneficiando o grupo todo. É certo que Kumar influenciou nesse modo de ser, quando se comunicou com o seu ancestral encarnado; levou até os Devadattas a uma profunda socialização. Era comum grupos vizinhos se visitarem depois da comunicação de Kumar com seus primeiros ancestrais. A forma de vida junto à floresta e aos campos permitiu brincadeiras e lazer não apenas entre os mais novos como também entre os mais velhos. Havia uma manifestação de prazer em presentear grupos vizinhos. Tudo isso foi ensinado por Kumar.
– Eu tenho curiosidade, Bija! – disse Carrara, indagando em seguida: Qual foi o destino das outras criaturas que seguiram para o sul?
Eu anotei isso! falou Luigi. Deixe-me procurar, acho que está perdido nesse monte de papel.
Por que não nos passou?  indagou Carrara, olhando para Luigi.
Provavelmente devo ter colocado com outros papéis e acabei me esquecendo. respondeu Luigi, meio irritado. Vocês acham que eu me lembro de tudo, são muitas informações que tenho de interpretar e escrever ao mesmo tempo. Às vezes, como não consigo anotar algumas informações, coloco outras entre outros papéis e depois não me recordo.
Permita que eu procure! disse Carrara, pretendendo deixar tudo em ordem. Se não, você vai fazer uma confusão aqui.
E passou quase a semana toda procurando as anotações sobre como se deu a vida daqueles primatas que partiram em direção ao sul.
Eis que Carrara encontrou as anotações e começou a ler para Luigi e Bija:
O grupo que foi para o sul se desenvolveu de forma diferente dos Devadattas. disse Carrara, lendo o que Luigi anotara nas informações passadas por Bija. Enquanto os Devadattas se desenvolveram espiritualmente, o grupo que foi para o sul não teve o mesmo desenvolvimento. Entre os ataques de lobos, as doenças, a fome, apesar de desenvolverem algumas ferramentas, eles desapareceram; segundo o calendário romano, há cerca de trinta mil anos.
Só isso? indagou Luigi.
Sim, somente isso! Tem outra parte aqui. disse Carrara, encontrando partes despercebidas. Essa parte descreve ocasionais experiências dos Devadattas com a agricultura, de há mais de dez mil anos, que não tínhamos visto.
    Deixe-me ler! falou Bija.
  Carrara entregou as anotações a ele, que começou a ler em voz alta:
Há cerca de dez mil anos, um fato mudou a história da humanidade. Foi o momento em que, mais uma vez, uma fêmea observou que os grãos que derrubara, ao transportar em direção ao grupo, se desenvolveram formando as plantas que geravam tais grãos.
A discussão que se passou ao final da leitura de Bija mostrou o início sistemático da agricultura, mudando a História, alterando a relação dos Devadattas com a natureza. Assim, passaram de pacientes para agentes transformadores da natureza.
Uma observação do que ocorrera acidentalmente fez com que aquela fêmea em especial plantasse novos grãos, gerando o que conhecemos hoje como agricultura. É certo que era uma agricultura bem rudimentar e primitiva, porém funcional.
Como vimos, meus amigos, disse Bija, os Devadattas dominaram o fogo, a seguir as ferramentas e depois a agricultura.  Dormiam em volta do fogo no inverno descansando melhor, assavam suas carnes tornando-as mais digestivas, faziam suas cerimônias e rituais. Conscientes do seu domínio sobre os outros animais, sabiam utilizar as ferramentas. Sabiam, também, organizar sua pesca e suas caçadas, às vezes até caçando aqueles que mais os perseguiam, os lobos, seus rivais inimigos. Atuando assim, na maioria das vezes em grupo, os Devadattas desenvolveram o espírito de solidariedade. Dessa forma viviam nossos antepassados, assim surgiram os primeiros homens. Esse, com certeza, foi o início da civilização em que nos encontramos hoje.

 OS DEVADATTAS E OS VISHUARUPAS

Meses depois, após discutirem muito sobre os Devadattas, Carrara e Luigi propuseram a Bija para seguir os passos do casal de gêmeos que foram levados pelos lobos.
Bija seguiu por muito tempo esse grande criador Devadatta, antecessor direto de Kumar. Viu quando ele escolheu sua parceira para acasalamento, formando seu grupo familiar; informou também quando nasceu um casal de gêmeos, os quais foram levados pelos lobos.
– Estou presenciando o momento em que os inimigos cruéis e traiçoeiros dos Devadattas, os lobos, atacaram a fêmea enquanto ela amamentava os gêmeos. – disse Bija com seu pestanejar, enquanto meditava. – Os lobos pegaram os pequenos Devadattas e correram mata adentro. E continuou seguindo o destino dos pequeninos: – Uma loba fêmea que deu cria há poucos dias passou a alimentar os gêmeos.
         Bija voltou à aldeia e observou o pai dos gêmeos.
               – Ele está com sua fêmea, que está muito machucada, com mordidas em toda parte do corpo. Ele uniu alguns machos membros do grupo e percorreu a mata à procura dos gêmeos. Os Devadattas passaram meses procurando diariamente os gêmeos, até que desistiram.
               – Enquanto isso, os gêmeos foram criados como lobos, eles se viam como lobos, pensavam que eram lobos. Porém, eram tão hábeis e astutos como os Devadattas; brincavam como lobos e subiam nas árvores como os Devadattas; farejavam como lobos e para se defenderem pegavam objetos como os Devadattas. Os dois cresceram comandando a matilha. Aprenderam a caçar, e a carne de que mais gostavam era dos Devadattas.
         Bija acompanhou por muito tempo os gêmeos, os quais cresceram, tiveram filhos, netos, bisnetos, formando um novo grupo batizado por Bija de “Vishuarupa”, que significa “forma total, múltipla”. Surgiu assim uma personalidade de dois aspectos opostos em dois grupos distintos: os Devadattas, que se alimentavam e construíam, e os Vishuarupas, que atacavam, devoravam e destruíam.
          Os Vishuarupas, segundo Bija, eram canibais. Apesar de minoria, eles atacavam os Devadattas para comerem sua carne. Alguns grupos de Vishuarupas consumiam parte do corpo, outros a totalidade.  Normalmente, como os lobos, atacavam em grupo quando um Devadatta estava distraído.
         Bija acompanhou os Vishuarupas algumas centenas de anos depois do sequestro dos gêmeos. Percebeu que eles aprenderam muito imitando os Devadattas. Por exemplo, pegavam suas ferramentas e as copiavam com tamanha precisão. Como os Devadattas, os Vishuarupas tinham seus rituais em homenagem a Kumar, porém praticavam o canibalismo com rituais semelhantes homenageando os gêmeos. Além de homenagearem os gêmeos, Bija dizia que os Vishuarupas praticavam o ritual com canibalismo como uma forma de desejo de adquirir as características dos Devadattas: sua inteligência, habilidade e destreza para a guerra e para a caça. 
         O que Bija, Carrara e Luigi acharam estranho foi o modo como se uniam os Vishuarupas. Enquanto os Devadattas conquistavam suas fêmeas pela valentia, por sua habilidade e destreza para a caça e ou a pesca, os Vishuarupas separavam as fêmeas ainda novas e depois as distribuíam entre os machos mais fortes do bando, às vezes presenteando um grupo aliado com uma ou mais fêmeas.
            Bija informou que, da mesma forma que os Devadattas quando morriam seus espíritos se encontravam com os espíritos desencarnados na ordem de Kumar, os Vishuarupas, quando desencarnavam, se encontravam com espíritos maléficos dirigidos pelos gêmeos criados pelos lobos.
            Em nenhum momento Bija soube dizer o porquê de os lobos pegarem os gêmeos, porém ele sabia haver naquele momento primitivo forças que não compreendia. Por outro lado, sabia também que as forças não eram capazes de detectá-lo, mas pressentiam de alguma forma aquele seu estado de meditação.
                 – Você diz, aqui, que eles de alguma forma pressentem sua presença! – falou Carrara, referindo-se a Bija. – Somente pessoas elevadas conseguem perceber e se comunicar com você. Isso é muito estranho.
                 – Apenas homens como Cristo e, segundo Bija, as encarnações de Cristo conseguem vê-lo. Como é possível essa força pressentir você? – perguntou Luigi.
                 – Vocês sabem que de lá eu não lembro nada quando estou aqui, apenas analiso junto com vocês aquilo que anotaram. Também não consigo entender como isso ocorre.    
                – Que tal acompanhar os Vishuarupas agora no momento em que estamos para podermos saber o que aconteceu com eles em nosso tempo? – indagou Luigi.
          – Concordo com Luigi – disse Carrara, olhando para Bija.    
         Contudo, os três terminaram a conversa, pois já era tarde da noite e estavam cansados.
     

                                   AS CIVILIZAÇÕES ASTECA, MAIA E INCA
            No dia seguinte Carrara e Luigi acompanharam Bija em alguns exercícios de ioga. Em seguida, ele fez sua meditação como era de costume, enquanto Carrara e Luigi passaram a anotar as mensagens enviadas em seu pestanejar.
– Estou num futuro próximo, tiro informações que denominam os povos que irei desvendar. – falou Bija. – Aqui apresentarei nomes que os povos do futuro já conhecem.
            Enquanto meditava, observou o futuro para explicar acontecimentos que estavam por vir; utilizou nomes conhecidos das pessoas do futuro para que estas pudessem entender um dia o que escrevera. 
– Terras longínquas estão sendo desvendadas por nosso povo neste momento histórico. – informou Bija. – Não são terras despovoadas como se pensa, vejo povos desconhecidos, alguns muito evoluídos. Há grandes cidades e nossos vizinhos, os espanhóis, encontraram um povo denominado “Asteca”.
Ao mesmo tempo que Carrara fazia anotações de um dos olhos de Bija, Luigi anotava informações do outro olho, sobre os espíritos descendentes diretos dos Vishuarupas, que re-encarnaram numa civilização recentemente descoberta. Bija afirmou haver muitos espíritos dos Vishuarupas espalhados entre os povos de várias épocas, duplicando-se e trazendo cada vez mais espíritos para o grupo dos Vishuarupas. Voltando aos astecas, Bija disse que eles eram sanguinários, e seus rituais religiosos incluíam sacrifícios humanos. Acreditavam que com os sacrifícios humanos poderiam deixar os deuses mais calmos e felizes.
– Vejo neste momento uma cidade denominada Tenochtitlán, com enormes templos, pirâmides cheias de escadas, ruas pavimentadas e com grandes arcos de pedra, anotou Carrara no pestanejar de um dos olhos de Bija. – Os astecas possuem plantações de mandioca, milho, pimenta, tomate, cacau, fumo, algodão, entre outras; usam um sistema de irrigação bem mais avançado que o nosso, com aquedutos e canais por onde transitam as embarcações. Sua escrita é bem diferente da nossa, eles usam um calendário baseado no ano solar, de trezentos e sessenta e cinco dias, que assombrou os espanhóis recém-chegados. Como nós, os astecas se organizam por classes sociais; há nobres, soldados, comerciantes e agricultores. E praticam o comércio com outros povos; em vez de moedas, utilizam as sementes de cacau. Seu artesanato é riquíssimo, têm desde a confecção de tecidos até objetos de ouro e prata. Eles cultivam diversos deuses (o deus do Sol, da Lua, do Trovão e da Chuva) e uma deusa, representada por uma Serpente Emplumada.
Bija disse haver um homem chamado Fernão que percorria toda a cidade de Tenochtitlán entre as escolas militares, religiosas e profissionais das diversas classes sociais. O rei local chamava-se Montesuma II. Fernão era respeitado pelo imperador, pelo chefe do exército e por sacerdotes e chefes militares. Fernão era muito esperto, tomou grande parte dos objetos de ouro dessa civilização. Não satisfeito, ainda escravizou os astecas, forçando-os a trabalharem em minas de ouro e prata da região.
Enquanto isso, Luigi anotava as informações do outro olho, o qual informava que Fernão tinha um espírito vindo dos Vishuarupas. O espírito de Fernão em uma outra encarnação fora um rei sacrificado em homenagem aos deuses astecas pelos antecessores de Montesuma II. Aquele rei viria encarnado como Fernão e, ajudado pelos espíritos maléficos dos Vishuarupas, teria como objetivo vingar-se dos astecas.
Bija dizia haver outros além de Fernão com o mesmo objetivo, de vingança. A raiva, a vingança, o orgulho, a inveja, segundo Bija, teriam vindo e se formado em nós através dos espíritos dos Vishuarupas ao longo dos anos, no emaranhado entrelaçamento com espíritos dos Devadattas. “Emaranhado entrelaçamento” significaria espíritos sofredores dos Vishuarupas que foram resgatados para uma re-encarnação melhor pelos espíritos dos Devadattas. Vishuarupas re-encarnariam em famílias de Devadattas ao longo dos séculos.
Passadas algumas semanas, em uma das reuniões ocorridas após a meditação de Bija, Luigi sugeriu que ele desvendasse o novo continente e suas civilizações voltando um pouco mais no tempo.
– Entre as florestas tropicais habitava uma civilização chamada “Maia”. – falou Bija. – Viviam na Península de Yucatán, como era denominada, e habitavam esse local desde os séculos IV a.C e IX a.C. Como os astecas, o povo maia tinha seus nobres, sacerdotes, militares, comerciantes, artesãos e camponeses. Aqui eles construíam suas pirâmides, templos e palácios. Sua religião era politeísta, pois acreditavam em vários deuses ligados à natureza.  Registravam datas, a contagem de impostos e colheitas, as guerras e outros dados importantes. Eles utilizavam bem a matemática. Também obtinham prisioneiros de guerra para serem sacrificados aos deuses. Suas divindades eram ligadas à caça, à agricultura e aos astros. Domesticavam o peru e a abelha para enriquecerem sua dieta. Além dos alimentos, eles comercializavam escravos e produtos como o jade, as plumas, os tecidos e a cerâmica.
Bija informou que no futuro os calendários e a matemática seriam baseados nos utilizados pelos povos maias. Ele descreveu exatamente o templo de Kukulkan (o deus da serpente emplumada), que servia de observatório astronômico para os maias. Falou de um local chamado Palenque, caracterizado pelos efeitos decorativos, que causavam certo mistério e assombro. Descreveu a cripta de Pa Kal, de um poderoso sacerdote maia; também, o Templo do Sol, com os telhados ricamente decorados em suas fachadas, e o Templo do Jaguar, que exibe a “Cruz Folhada”. El Castillo§, o “Templo do Tempo”, foi descrito por Bija como o que esclarecia o sistema astronômico dos maias.
            Um homem de nome Pedro Alvarado ajudou a discernir o povo maia. Destruindo ao longo dos anos a identidade cultural desse povo, e praticamente seu modo de viver, eles foram submetidos ao trabalho forçado. Pedro Alvarado, segundo Bija, era mais uma das encarnações vingadoras sacrificadas pelos rituais maias.
            – Havia um povo, denominado pelos espanhóis de “Incas”. – falou Bija enquanto meditava. – Seu imperador, conhecido por Sapa Inca, foi considerado um deus pelo seu povo.
            Passou, então, informações detalhadas da civilização inca; seu modo de governo e social era igual ao dos Astecas e dos Maias. Os Incas tinham militares, sacerdotes, artesãos e camponeses. Eles desenvolveram uma arquitetura em construções com enormes blocos, utilizados nos templos, palácios e casas. Sua principal cidade era Macchu Picchu, uma cidade de eficiente estrutura urbana.
            Os Incas plantavam feijão, milho, batata, etc. nos degraus formados nas costas das montanhas. Construíram canais de irrigação desviando o curso dos rios para as aldeias. Domesticavam e criavam lhamas, utilizando-as como meio de transporte, retirando-lhes a lã, a carne e o leite. Cultuavam o Sol (deus Inti), porém consideravam o condor e o jaguar animais sagrados. Acreditavam também num antepassado chamado Viracocha. Sua religião também era politeísta com sacrifícios humanos para satisfazerem os deuses. Inti era servo de Viracocha, que exercia soberania no plano superior divino; reinava sobre os homens como o imperador. Mama Quilla era a mãe Lua, esposa do Sol e mãe do firmamento. Bija descreveu a estátua de Mama Quilla, adorada por uma ordem de sacerdotisas espalhadas por toda a região. Os Incas tinham outros deuses idolatrados, como Pacha Mama, a “Mãe Terra”, encarregada de propiciar a fertilidade nos campos; Mama Sara, “Mãe do Milho”; Mama Cocha, “Mãe do Mar”.
                        Havia uma lenda inca informou Bija da primeira criação, “Viracocha Pachayachachi”, o criador de tudo. Depois de criar o mundo sem luz, sem sol e sem estrelas, caminhava por imensos e desertos pampas da planície pensando e observando sua criação. Mas quando viu que criara gigantes bem maiores que ele, percebeu que não era conveniente criar seres de tais dimensões. Resolveu, então, criar seres com a sua própria estatura. Assim, Viracocha criou os homens seguindo suas próprias medidas, como hoje somos. E Viracocha ordenou aos homens que vivessem em paz, entretanto eles se renderam aos excessos e extravagâncias, às desordens e às guerras. Para castigá-los, Viracocha os transformou em pedras ou animais, alguns caíram enterrados na Terra, outros absorvidos pelas águas. Finalmente, despejou um dilúvio sobre os homens, no qual todos pereceram, exceto três, que se dispuseram a ajudar Viracocha em sua nova criação. Desse modo, o criador do mundo decidiu dotar a Terra de luz, ordenando que o sol e a lua brilhassem junto às estrelas e toda Via Láctea.
            Carrara leu em uma das reuniões, após a meditação de Bija, que a Via Láctea era chamada pelos Incas de Mayu ou rio celestial, a qual servia de orientação em seus rituais. Leu que os sacerdotes incas realizavam o denominado “Solstício de inverno”, uma peregrinação cerimonial anual em função da Via Láctea. Partiam da cidade de Cuzco em direção a sudeste, dirigindo-se pela Via Láctea até a nascente do rio Vilcanota, local, segundo a mitologia inca, em que nascia o Sol.
O Mayu! descreveu Bija. Além de ser um eixo de orientação importante, também servia de referência para o entendimento do clima na Terra. Para os Incas existiam três classes de constelações: as “brilhantes”, formadas por um conjunto de estrelas unidas; as “escuras”, formadas por manchas escuras da Via Láctea; e as “mistas”, mistura das claras e escuras. Mas são as escuras que se encontram na região celestial, chamadas de Mayu, que formam as manchas escuras imaginariamente. Parecem sombras de silhuetas lembrando animais,  que na cultura andina estavam encarregados de gerar fertilidade favorecendo a vida na Terra.
            Bija detalhou a riqueza paisagística e cultural do Vale Sagrado. A área que se prolongava por mais de cem quilômetros, a uma altura de aproximadamente dois mil e oitocentos metros sobre o nível do mar, foi observada e descrita por Bija. Ele não apenas descreveu as construções incas, mas também sua rica e fértil flora e seus inúmeros riachos e cachoeiras, localizados entre os bosques.
            Em uma das discussões, Bija, Carrara e Luigi concluíram que seria devido à cultura e identidade do povo inca que edificaram, em todo o vale sagrado, enormes construções, as quais recriaram em suas formas respectivas as principais constelações andinas, como se o vale e o rio fossem reflexos um do outro; o vale servia de espelho da Via Láctea. Para Bija, o Vale Sagrado expressava o sentimento dos Incas, a maneira de se sentirem no mundo e de compreenderem a vida. Bija achava que a evolução entre um modo de vida tão avançado e o ritual de oferendas de vidas humanas devia-se à re-encarnação entre o bem e o mal, o espírito dos Devadattas entrelaçando-se ao longo dos séculos com o espírito dos Vishuarupas.    
            Bija lembrou o modo como os Vishuarupas escolhiam suas fêmeas, e reparou que parecia com o modo inca de escolherem seus pares.
            De tempos em tempos os Incas retiravam de seus lares todas as meninas de dez anos, levando-as para um distrito. As mais bonitas e inteligentes eram escolhidas e enviadas para uma cidade chamada Cuzco; ali, aprendiam a cozinhar, tecer, entre outras prendas. Após alguns anos, elas seriam distribuídas como esposas secundárias dos nobres e dos chefes valorosos incas.
            Realmente, o modo de juntarem os casais do povo inca é idêntico ao dos Vishuarupas. disse Luigi.
            Pelo jeito, em toda a história da humanidade, as mulheres foram vistas pelos homens e pela sociedade apenas para procriarem; com raras exceções, é claro. afirmou Carrara.
            Não comecem a falar das mulheres. – continuou Luigi, com um tom de chateação. Já faz tanto tempo que não vejo uma. E causou risos de Bija e de Carrara.


                                   O ESPÍRITO DO BEM E O ESPÍRITO DO MAL
Vamos mudar de assunto. falou Carrara, olhando para Bija. Não consigo entender, ou melhor, para mim não está clara essa eterna luta entre o bem e o mal, entre espíritos bons e ruins, entre os Devadattas e os Vishuarupas.
            Acredito que as civilizações espirituais vindas de Kumar, dos espíritos de luz, do bem, tentam a todo tempo resgatar os espíritos ruins para livrá-los do sofrimento. E também querem evitar que eles façam outros sofrerem. Não há preconceito, todos têm o direito e uma oportunidade de não sofrerem, seja um Devadatta, seja um Vishuarupa. afirmou Bija.
           Ele também tem o direito de ser ruim, se assim desejar. disse Luigi. Se desejarem continuar ruins, que assim seja; a interferência é uma injustiça.
            É justo que o ruim faça com que todos sofram. falou Bija. – Quando ele sofre, não se satisfaz apenas com seu sofrimento, procura eternamente o sofrimento alheio.
            Mas o modo de ser e a identidade social e cultural daquela determinada época e local, somados à educação dos pais, não influenciaram no seu comportamento ruim ou bom? indagou Carrara. – Nós, que aparentemente viemos dos Devadattas, somos cristãos mas fizemos tanto mal em nome de nosso Deus quanto os povos maias, incas e astecas em seus rituais sagrados.
Carrara olhou para Luigi e disse: Passe-me aquelas páginas. Em seguida, pegou o que anotara nas páginas e começou a ler:
Como Bija nos passou, a justificativa para a conquista espanhola é de ordem religiosa. A ordem eclesiástica reconheceu o direito da Espanha em explorar as novas Terras com o argumento de que, ao ocupá-las, os espanhóis teriam de ensinar a religião cristã aos novos habitantes. Entretanto, o que aconteceu de fato foi um verdadeiro genocídio.
          Bija retomou a palavra:       
          O que vocês não entenderam é que tanto o Papa quanto os homens perversos daquela época eram re-encarnações de pessoas ruins, vindas para a vingança, para a destruição. Eram, na maioria das vezes, descendentes de encarnações dos Devadattas com Vishuarupas. A ordem de Kumar, os espíritos do bem, auxilia no processo de re-encarnação, tenta influenciar para a salvação das almas, da construção das pessoas. Mas a vida, em seu emaranhado de relações, com o auxílio também da ordem dos gêmeos, espíritos maus, os Vishuarupas, influencia para o lado ruim. Porém, nosso Cristo diz: “Amai-vos uns aos outros”. O difícil é praticar o amor ao próximo. Para um espírito ruim é mais difícil ainda.
         Bija fez uma pausa e continuou:
         – Voltando à sua primeira indagação, tudo influencia, sim, na vida humana, mas cabe à alma, à pessoa, sua construção, sua personalidade, sua identidade, filtrar o mal, não eliminá-lo, pois ele está aí, ele existe em todos os lugares, em todos os tempos, em todos os sentidos. Entretanto, segundo Prana, cada vez que re-encarnamos, é uma chance de nos tornarmos menos piores, eliminando cada vez mais os nossos demônios. Segundo Prana, e comprovamos com nosso trabalho, o que existe de fato são espíritos maus; o que percebemos é que o demônio nada mais é que os sentimentos ruins que carregamos: o orgulho, a vingança, o ódio, etc.
         Há anotações aqui. disse Luigi, interrompendo Bija. Você presencia muitos espíritos ruins junto a esses colonizadores. Parece ser uma guerra entre Vishuarupas contra Vishuarupas. Um espanhol de nome Hernán Cortés, quando se ausentou da cidade asteca, deixou seu substituto que causou um grande conflito: ordenou a morte de seis mil astecas no interior de um templo. Aqui estão anotados espíritos maus influenciando tais atitudes. A conseqüência disso foi que os astecas revidaram, derrotando quase todos os espanhóis. Em seguida, Cortés, também influenciado por maus espíritos, buscou muitos soldados exterminando o imperador Quatemozim e quase todo o povo asteca. Hernán Cortés passou a governar a cidade a serviço do rei da Espanha.
            A mesma coisa está prestes a acontecer com a expedição chefiada pelo militar espanhol Francisco Pizarro. Segundo nossas anotações, disse Carrara Pizarro e sua tropa vão ser favorecidos porque o Império Inca estará dividido: de um lado, Atahualpa, e de outro, seu irmão Huáscar. Pizarro recrutará alguns povos hostis aos Incas e entrará na cidade de Cajamarca sem encontrar nenhuma resistência. Em seguida, Pizarro colocará na prisão Atahualpa e lhe prometerá a  liberdade, em troca de todo seu tesouro. Atahualpa cumprirá seu acordo, mas o espanhol não. Após apoderar-se do tesouro dos Incas, Pizarro julgará e executará Atahualpa. Apesar de os Incas enfrentarem valentemente os espanhóis por mais alguns anos, os espanhóis com sua artilharia destruirão o Império Inca.
            Segundo informações aqui anotadas, havia muitos espíritos rancorosos e vingativos junto a Pizarro, falou Luigi.
            Como podem ver, meus amigos, concluiu Bija só podemos impedir o mal se praticarmos o bem. Segundo Prana, quando praticamos o bem afastamos o mal, afastando os maus espíritos, ao mesmo tempo que somos imunizados contra aquilo que pode prejudicar o outro ou a nós mesmos. 
            Mas o mal não é construído em nós? perguntou Luigi a Bija.
            Nossa experiência sensorial distingue aquilo que é bom daquilo que é ruim. Uma pessoa pode até ser construída para praticar a dor, a desgraça, a calamidade, tendo o prazer de punir ou de causar prejuízo ao outro. Porém, ela sabe que esse seu modo de agir é irregular, é errante, ela tem a consciência disso, mas faz disso uma prática em seu cotidiano.
          Bija fechou os olhos e acenou com a cabeça.
          Reverter o quadro maléfico construído ou influenciado por espíritos perversos exigirá do homem um gigantesco esforço. Seu pensamento e sua razão dependerão de um fluxo perpétuo de vigilância contínua para reconhecer sua essência para o bem e abandonar as aparências da oposição má. Para isso, é preciso reconhecer e interpretar aquilo que seja contrário ao seu modo de vida.
Tomemos como exemplo o povo inca ao sacrificar seres humanos. disse Carrara ao mesmo tempo que fazia uma afirmação: – Sacrificar uma vida humana é errado, porém foi construído em sua cultura; para eles aquilo era o certo, não tinham consciência de estarem errando. Por isso, não houve arrependimento ou remorso.
Prana sempre dizia que quem faz um mal para alguém sabe que o sofrimento deste está atrelado à sua prática, à sua ação do mal; reconhece que o outro sofre devido a sua ação, falou Bija. – Apesar de achar natural tal atitude, aquele que praticou o mal sabe que o outro sofreu ou sofrerá. O remorso, o arrependimento só poderá ser percebido, quando o mal tiver conhecimento do contrário. Só assim, perceberemos o ato praticado e o consideraremos condenável.
            Então é exatamente aquilo que Carrara falou há pouco. – disse Luigi.
            Desde os Devadattas e os Vishuarupas, a dor provocada por agressões no corpo, a dor da fome, a dor causada pelo excesso de frio ou de calor, a dor da perda causam sofrimentos ao homem. Todo esse sentimento de dor é reconhecido desde os primórdios do homem, independentemente de sua construção cultural. Por isso, sabemos quando causamos dor ao outro. – prosseguiu Bija.
É certo que nossa guerra é um ato de dor, nossas condenações são atos de dor. Nossas les são feitas para causar a dor para aqueles que de certa forma causaram dor ao outro, ao rei ou à corte. Nossas leis avaliam nossos atos e determinam como devemos agir perante elas. Se não agirmos conforme ditam as leis, seremos condenados por nosso comportamento “incorreto”. O emprego da tortura, a condenação à morte ou mesmo a nossa prisão são sistemas de terror destinados a impressionar e educar a população. Porém, muitos papas, reis, etc. utilizaram da lei para beneficio próprio.
Um exemplo é eles utilizarem o “sanbenito”. disse Carrara. No principado da Espanha, para aterrorizar a multidão, aqueles que escapavam da fogueira eram condenados a usar o sanbenito. Presenciei guerreiros revestidos de couraças em suas procissões levando hereges cobertos pelo sambenito para a purificação pública nas fogueiras.
          Já vi isso em muitas casas nas aldeias, quando passei por lá há alguns anos. falou Luigi. Os guardas inquisitoriais vistoriavam e penduravam o sanbenito nas residências dos condenados para que os fiéis nunca se esquecessem de seu crime.
O inquisidor prendia o herege, interrogando-o e condenando-o sem que ele conhecesse sua acusação. continuou Carrara. O inquisidor tinha o delator como seu parceiro. O delator se beneficiava de indulgências e até da garantia de salvação eterna.
            – A cerimônia era anunciada por tambores e trombetas. disse Luigi. O inquisidor geral proferia seu sermão diante da multidão, os hereges arrependidos abjuravam seus erros, totalmente despidos e vergastados.  Em seguida, vinha a sentença de prisão perpétua e a confiscação dos bens.
– Havia também – afirmou Carrara – condenações mais brandas para os mais felizes, por exemplo, quando os acusados eram condenados às peregrinações de penitência a Jerusalém. Era dessa forma que os ditos arrependidos se conciliavam com a Igreja.
– Leonardo dizia que a Igreja não queria manchar suas mãos de sangue. - informou Bija – Por isso, deixava ao principado o ofício de carrasco ao realizarem tais execuções.
– Presenciei uma condenação – disse Luigi – em que o condenado foi içado para uma fogueira assediado por um capelão, o qual arrancou a confissão e o arrependimento do acusado antes dele ser queimado. Enquanto seu corpo se retorcia em chamas, a multidão se elevava. Lembro-me até agora de seus gritos e gemidos.
            Luigi havia acompanhado durante sua estadia na Espanha três tipos de suplícios: a “garrucha§”, o “porro§” e a “toca§”. Afirmou ser uma prática de assassinato na qual o herege era indefensável, tendo em conta que o réu estava perante delitos de opiniões, de costumes e de religião.
           Bija continuou:
            É importante destacar que tal catalogação criminal na Inquisição foi autorizada por Sisto IV§. Bartolomeu Benassar escreveu que tal procedimento “verga as vontades,  esmaga os corações, extingue a chama das idéias, desespera uns para tranqüilizar os outros”.
            Para efeito de informação, em três séculos a Espanha teve mais de quarenta e  cinco inquisidores gerais. Segundo o historiador Juan Llorente, entre 1483 e 1501, em
Toledo foram queimados duzentos e noventa e sete condenados e em Saragoça cento e
vinte e quatro. Uma das mais severas foi a Inquisição de Valência antes de 1530, com
dois mil trezentos e cinqüenta e quatro processos, tendo sido proferidas perto de duas
mil sentenças.
            Os judeus foram as principais vítimas. Ao mesmo tempo em que eram dizimados pela peste negra e pelos motins antissemitas de Aragão ou de Sevilha, no século XIV também faziam parte dos condenados. Muitos judeus apenas encontraram salvação na conversão, pelo menos aparente, à fé cristã. Após a conversão, eles eram chamados de “conversos” ou “marranos”, porém, mesmo oficialmente convertidos, continuaram a praticar seus rituais na clandestinidade. Calcula-se que aproximadamente mais de dois mil judeus morreram na Espanha pelo fogo. Outros quinze mil sofreram outros castigos em suas condenações, entre as quais a apreensão dos bens; mais tarde, em 1492 ocorreu a condenação considerada mais eficaz: a expulsão da Espanha.
            – Como podemos perceber, meus amigos, – falou Bija, referindo-se ao mal existente em praticamente todos os lugares do mundo. – O mal mergulhou fundo impregnando suas raízes nas práticas de uma Igreja que impunha pelo ferro e pelo fogo seus dogmas e sua disciplina. O mal se alastrou pelo tempo, espalhando-se e interagindo com o bem, e nós nos tornamos o que somos.
            Decorreram algumas semanas e Bija durante suas meditações passou informações sobre os espíritos que envolviam tais pessoas. Carrara disse que parecia haver um bem tentando mostrar aos homens um novo mundo, terras lindas com muita fartura, mas, simultaneamente, havia o lado mau, querendo desde o início acabar com toda aquela estupenda beleza.

                        PASSARELLI E AS ANOTAÇÕES DE BIJA
Enquanto essas conversas ocorriam entre Bija, Carrara e Luigi, como era seu  hábito o guarda Passarelli inspecionava a cela, conversava um pouco com Carrara e lhe entregava papel e tinta.
            Num desses dias Carrara sentiu a falta de algumas anotações e perguntou bastante tenso:
                        – Luigi, você viu as anotações sobre as Novas Terras?
Não! Por quê?
Ajudem-me a procurar. Sumiram as rotas marítimas e alguns mapas. disse
Carrara a Luigi e Bija.
            Procuraram durante horas. Carrara era muito organizado, deixava anotadas folha por folha, numerando todas as páginas. Depois de muito procurarem, eles chegaram à seguinte conclusão:
A única pessoa que entra aqui além de nós é Passarelli. – falou Carrara, olhando para Bija e Luigi. Quando ele passar por aqui, vamos ter uma boa conversa.

           Nesse mesmo dia, o guarda Passarelli conversava com um amigo numa taverna.
Estão aqui mais alguns papéis com as anotações que você me pediu. disse o guarda ao amigo árabe.
            Em seguida, este deu algumas moedas a Passarelli e partiu despedindo-se. Mas o guarda tinha sido observado por alguns ladrões enquanto recebia as moedas. Eles o seguiram abordando-o num assalto. No momento em que Passarelli tentou reagir, foi golpeado com várias facadas falecendo imediatamente.
            No outro dia, o árabe seguiu sua viagem para o porto de Veneza, estrategicamente localizado à beira do Mar Adriático, o qual permitia o controle de inúmeras rotas comerciais entre o Ocidente e o Oriente. Ali o árabe comercializava, como era de costume, alguns mapas que conseguia com Passarelli.
            Num de seus negócios, o árabe conheceu o famoso marinheiro Álvaro Velho§, o qual comprou mapas e algumas técnicas marítimas, ditadas também por Bija durante suas meditações.
            Onde conseguiu esses mapas? perguntou Álvaro.
                        Consegui com um guarda da província de Milão. respondeu o árabe.
Gostaria de saber onde o guarda consegue esses mapas. falou Álvaro. Esses mapas relatam com exatidão os caminhos a serem percorridos.
Por isso é que os vendo por este preço. disse o árabe com um sorrisinho entre os lábios.
Aonde vais? indagou Álvaro.
Seguirei na próxima navegação. Quem sabe nos encontraremos pelo caminho! respondeu o árabe, despedindo-se com um aperto de mão.
             Durante anos, Passarelli tinha dado muitas informações aos exploradores, que foram os descobridores das Novas Terras. Tudo isso aconteceu bem antes de tais descobertas, porque Bija, por vezes, passara informações detalhadas de como chegar às novas Terras.
           
Enquanto isso, na prisão, um dos guardas avisou a Carrara, Bija e Luigi que Passarelli havia morrido. Eles ficaram tristes pela morte de uma pessoa que consideravam um amigo. Por sua vez, Luigi estava triste porque não sabia como conseguir papel e tinta, para continuarem as anotações em seus manuscritos.
Como faremos agora para conseguir papel e tinta? – perguntou Luigi.
Está cada vez mais difícil, realmente não sei! respondeu Carrara, um tanto desanimado.
Nada impede que continuemos nosso trabalho. disse Bija. Podemos continuar sem anotar.
            Podemos até fazer isso, falou Luigi. – Porém, fica difícil lembrar tudo depois.
É, meus amigos! – prosseguiu Carrara, com um aperto no peito. – Agora acho que o tempo vai demorar a passar. Aquela era nossa distração. Além de estarmos privados da nossa liberdade, perdemos aquele que, apesar de nos ter roubado alguns manuscritos, nos dava um motivo para suportar essa vida.
Já estamos muitos anos nesta cela. Estamos juntos graças a Passarelli, os outros guardas queriam nosso confinamento solitário, lembram? indagou Bija.
Sim, meu amigo. respondeu Carrara, com grande tristeza e desconsolo. – Agora, o que será que nos resta? Acredito que eles vão nos separar.

                                   A LIBERTAÇÃO DE LUIGI

 Realmente, uma semana após a morte de Passarelli, Luigi foi libertado e Carrara colocado numa cela separada de Bija.
             Antes da libertação de Luigi, Bija sugeriu a Carrara que Luigi levasse os manuscritos consigo. Luigi pegou os manuscritos e levou consigo sem que os guardas percebessem. Isso porque o único que sabia o que ocorrera dentro da cela com os três (as anotações de Luigi e Carrara durante a meditação de Bija) era Passarelli.
            Um dia antes da libertação de Luigi, Carrara orientou o amigo:
Coloque todos os manuscritos enrolados no corpo: enrole alguns nas pernas, outros na cintura.
Parece que estou cerca de trinta quilos mais gordo. – disse Luigi. Acho que os guardas vão perceber.
– Que nada! exclamou Carrara, provocando risadas de Bija e Luigi. Eles não olham um palmo à frente do nariz.
Não vai dar! – falou Bija. Há muitos manuscritos, leve apenas a metade.  E dirigiu a palavra a Carrara: Escolha aqueles que ele deverá levar.
Certo, vou fazer isso até amanhã.
           Eis que chegou o dia da libertação de Luigi. Entre outros presos, lá estava Luigi frente a um arcebispo da Igreja.
Vocês se redimem dos seus pecados perante a Igreja? perguntou o velho arcebispo em voz alta.
Sim! responderam em coro aqueles que seriam libertados.
Eu quero ouvir mais alto! exclamou o arcebispo, um tanto irritado.
Sim. – responderam mais alto, felizes pela libertação.
             Em seguida, ele fez um longo discurso e todos aqueles que estavam ali presentes, foram libertados.
             Luigi saiu, por um lado, feliz pela sua liberdade, por outro triste porque deixara os amigos Carrara e Bija.
            Porém, Luigi absorveu de tal modo os ensinamentos aprendidos com Bija e Carrara, que faziam parte de sua personalidade, da construção de sua nova identidade. Ao sair, Luigi seguiu direto para a França, onde ainda tinha alguns parentes e amigos. Chegando à França numa época em que a peste se alastrava, contaminando centenas e centenas de pessoas, Luigi já sabia de tal contaminação, porém queria ajudar, queria trabalhar em benefício dos outros. Acreditava que aquele seria seu destino, aquele seria o momento de provar a si próprio que poderia ajudar os outros, que poderia praticar a solidariedade e a compaixão.

                                   A ENERGIA BOA E A ENERGIA RUIM
            Foi exatamente em uma de suas peregrinações, quando estava passando a um grupo de pessoas a importância da higiene e da limpeza dos locais que conhecera, Luigi encontrou aquele que seria um dos maiores nomes da História, o médico “Michel de Nostre Dame” ou de “Notredame”, chamado popularmente de Nostradamus.§
            Gostei muito de seus dizeres. disse Nostradamus a Luigi. - De onde vem tanto conhecimento?
Aprendi com uns amigos quando estive na prisão de Milão. respondeu Luigi.
Sou médico, meu nome é Nostradamus, meu trabalho é ajudar as pessoas que tanto necessitam de nós.
O sr. tem muita coragem, doutor. Em minha longa caminhada presenciei muitos médicos fugindo da peste.
Perdi minha esposa e meus dois filhos com a peste. – continuou Nostradamus, com um olhar de tristeza. – E não parei de ajudar aqueles que necessitam de nós. Seus amigos na prisão lhe ensinaram muitas coisas?
Sim, eles são grandes homens! Bija é um grande sábio, que viajava pelo tempo, como ele mesmo dizia: “Voava pelo tempo como um pássaro”, e Carrara é um grande homem da corte, um grande intelectual. – respondeu Luigi, imaginando os dois amigos na prisão.
O que você quer dizer com viajar pelo tempo? indagou Nostradamus.
            Luigi contou-lhe então toda sua história. Enquanto auxiliava Nostradamus nos afazeres médicos para com os vitimados da peste, levou mais de quatro horas contando a ele sobre o tempo em que esteve na prisão. Luigi passou meses caminhando com Nostradamus. Este contou que sua origem era judaica e que fora astrólogo.
Certo dia, Nostradamus havia marcado para se encontrar com Luigi, mas ele não compareceu. Preocupado, pôs-se a buscá-lo na casa de um parente que saiu da cidade com medo da peste. Ao chegar à casa, viu o amigo contaminado pela peste. Luigi deu a Nostradamus todas as anotações que havia trazido da prisão em Milão. Ele pegou as anotações e tratou do amigo; depois, leu os escritos com admiração e surpresa, observando os detalhes.
            Após a morte de Luigi, Nostradamus, embora estivesse preocupado com a Inquisição, resolveu publicar o que lera e escreveu tudo novamente. Publicou dez centúrias§, com cem quadras em cada centúria. Para tentar enganar a Inquisição, Nostradamus usou uma linguagem obscura, hermética e quase que indecifrável. Empregou com muita propriedade as palavras: príncipe, rei, rainha, bispo, arcebispo, papa, herdeiro, grande homem, França, Espanha, Pérsia, Egito, Bizâncio, guerra, batalha, inimigo, luta, mortes, montanhas, planícies. Essas eram palavras frequentes utilizadas por Nostradamus§. 
            Ele queria deixar ao mundo tais anotações. Sabia, porém, que se deixasse da forma em que estavam escritas, seriam destruídas pela Inquisição; por isso, resolveu transformar tais escritos em um texto um tanto hermético.
            Nostradamus sabia que as formas de prever o futuro eram importantes para a sobrevivência da espécie humana. Antever os períodos de chuva, seca, calor e frio foi fundamental para a agricultura e a caça de seu tempo; da mesma forma ele acreditava que um dia esses escritos poderiam ser úteis aos seres humanos do futuro. Como astrônomo, Nostradamus utilizou seu conhecimento e a posição dos astros no céu para escrever as centúrias.

            Enquanto tudo isso acontecia com Luigi e Nostradamus, Bija, como era de costume, sentou-se em frente à parede da prisão, fez sua meditação, distanciando-se em alma e pensamento cada vez mais longe da parede. Sua energia percorreu todas as regiões do espaço, realizando um movimento de rotação nas três dimensões; não havia forma nem contorno, não havia organismo, apenas energia. Energia boa, do amor e da paz, distribuída aos milhares, e uma única Energia ruim.

                                        A CONVERSA COM DEUS


        Enquanto todos esses fatos se passavam na existência daquele círculo, Bija começou a conversar com Deus.
        – Não compreendo o que acontece, mas sei quem Tu és, falou Bija.
              Eu Te compreendo, disse Deus. Tu Te encontravas em outro círculo da existência. Cada existência do Big-Bang ao Big-Bang é uma re-encarnação da própria existência universal em um dos círculos. Cada círculo contém um renascimento do universo, uma nova entidade cósmica, um novo retornar fisicamente do universo, uma nova re-encarnação do universo.
             – O universo se renova? – indagou Bija, com a tranqüilidade de um sábio.
             Sim, como sou tudo, estou em todos e vivo em constante transformação, tudo se renova. A vida se renova, as pessoas se renovam. Tu te renovas a cada círculo de existência, por isso nada é igual. respondeu Deus.   
             – Mas o círculo e a existência não são os mesmos? – perguntou Bija.      
             Sim! Da mesma forma que a Semente e Bija são os mesmos. disse Deus. Na existência tudo acontece. Em um paradoxo no círculo tudo aconteceu; da mesma forma em Bija tudo acontece. Em um paradoxo na semente tudo já aconteceu. Dessa forma, como o espírito é a alma do corpo, a existência é a alma do círculo. Cada círculo tem possibilidades de múltiplas histórias.
            – As histórias se repetem no mesmo círculo?
            A essência, que é Deus, a essência, que é a vida, está contida em cada círculo. explicou Deus. O que muda é apenas a história. A história de cada círculo é singular, única. Porém, pode haver constantes alterações; num paradoxo, seu conteúdo é único em cada círculo, como cada encarnação do homem é única e singular.
            – A primeira existência existe em algum lugar? – perguntou mais uma vez Bija.
            A folha cai da árvore, aduba a terra, onde nasce a semente, que fortalece a raiz, que faz crescer a árvore, que gera novas folhas, que caem da árvore. disse Deus.
     – A primeira existência é a folha? - mais uma pergunta de Bija.
           A energia da folha está na terra, está na raiz, está na árvore, está na semente. respondeu Deus. No final entenderás.
     Deus é a folha? – perguntou Bija, tentando desvendar o segredo de Deus.
           Deus é a semente que gerou a raiz. Deus é a raiz que gerou a árvore. Deus é a árvore que gerou a folha. Deus é a folha que nutre a terra. Deus é a terra que sustenta a árvore. continuou Deus Deus é o espaço eterno na imensidão do vazio que contém a terra, a semente, a raiz, a árvore, a folha... Um eterno círculo, um eterno renascimento das existências.
           É certo que há um ciclo, mas minha dúvida permanece. falou Bija.
           – Da mesma forma que o primeiro homem infinitamente sempre está no círculo... Da mesma forma que a primeira semente infinitamente sempre está no círculo... Da mesma forma que a primeira existência infinitamente sempre está no círculo... Da mesma forma que a primeira árvore infinitamente sempre está no círculo... Da mesma forma que a primeira folha infinitamente sempre está no círculo. respondeu Deus, usando sempre o presente.
           A existência deste círculo em que meu corpo-matéria é Bija seria a primeira? –  indagou Bija.
           Essa é a primeira das infinitas vezes. respondeu Deus.
           – Nesse sentido, o homem é o centro do universo, é o motivo de tudo? – perguntou Bija.
           O tudo e o nada pertencem ao universo. Deus é o motivo de tudo e do nada. Deus está em tudo e em todos, todos e tudo estão em Deus num processo de purificação. Deus responde, não usando a primeira pessoa do singular. Como o espírito re-encarna em um ser matéria em seu processo de purificação, a existência re-encarna em um círculo em seu processo de purificação. O homem é, o homem pertence, assim como o círculo, assim como a existência, assim como a vida e a morte, tudo é purificado.
           – Dessa forma, quando tudo atingir a purificação haverá um fim? – perguntou Bija.
           A purificação completa está no nada, está em Deus; está do Big-Bang ao Big-Bang em seus eternos círculos; em suas eternas existências. respondeu Deus. Assim como o espírito é a alma do corpo e a existência é a alma do círculo, a purificação é a alma de Deus na qual estão constituídos os cinco elementos Divinos. Eis os cinco elementos de Deus que originaram a vida:
        A semente                        Bangse

        O espírito                        Buda

        O homem                        Cristo

        A existência                    Tse

        O círculo                         Hécles
           Num paradoxo, eis as vidas que originaram Deus. Cristo e suas encarnações circulam eternamente todos os círculos. Cristo é a Árvore, a Água, a Raiz, a Semente, é o eterno; assim como é Bangse, Buda, Tse, Hécles. – prosseguiu Deus.
           – E Kumar? - indagou Bija, lembrando-se de sua passagem pela Terra.
           Kumar transcende o tempo; seu amor e sua fé em um Deus, criador de “tudo” e da “existência” (vida) após a morte, eram tão grandes, que fizeram dele Kumar. respondeu Deus. Kumar é o primeiro desse Círculo que vocês conhecem e denominam na Religião Católica como “Santo”.
     – Kumar é uma das encarnações de Cristo? – perguntou Bija.
           Kumar não é Cristo e nenhuma de suas encarnações. disse Deus. Cristo é a salvação da humanidade, Kumar é o espírito da civilização desta humanidade. Já Vós fostes a primeira encarnação de Buda, em seguida de Cristo, de Tse e, depois, de Hécles. Como Tu mesmo presenciaste, os antepassados pertencentes à família de Kumar, pensando e questionando ao longo de suas vidas, começaram a perceber e a identificar o “devir”: a noite se torna dia, o inverno é seguido da primavera, o verão e o outono, o molhado e o seco, o que é pequeno cresce, o que é quente esfria, aquilo que é bom e aquilo que é ruim, a vida e a morte. Perceberam que tudo se torna contrário a si mesmo. Por isso, eu Vos digo que, como o átomo é a essência da matéria, Kumar é a essência da civilização humana. Cristo é a Luz, o Caminho, Kumar é o primeiro passo que percorre o caminho. Kumar é o primeiro feixe de Luz que ilumina a escuridão.
           – Kumar re-encarnou outras vezes? – indagou mais uma vez Bija.
           Sim! respondeu Deus várias vezes. Entre suas encarnações estão aqueles que vocês denominam de Sócrates, Santo Agostinho, Chico Xavier, entre outros.
           – Quando ele re-encarna deixando a civilização espiritual, quem administra tudo?
           Depois de Kumar, como presenciaste, houve muitos outros espíritos de luz. Estes, por sua vez, administram a civilização espiritual. disse Deus.
           – E os gêmeos? – indagou Bija, pensando naqueles primeiros primatas sequestrados pelos lobos. 
           Para isso, é necessário que entendas desde o início. respondeu Deus. A fagulha de uma única frase, “extermine os homens”, foi desprendida da civilização da energia virtual dos computadores no momento da explosão do Big-Bang. A energia desse pensamento viajou por milênios tentando destruir a vida desde o tempo mais remoto da existência. Ela deixou de existir nesse círculo quando utilizou toda sua capacidade para influenciar os lobos a sequestrarem os gêmeos. Com isso, ela indiretamente influenciou o modo de ser dos gêmeos, o que ocasionou praticamente todo o mal e sofrimento entre os seres humanos. A civilização virtual dos computadores calculou em seu modo de pensar que a única maneira de dominar o universo era acabar com as existências vindas de Deus e o próprio Deus. Como ela não conseguiu identificar Deus, pois são energias inteligentes vindas das máquinas, tentou destruir a vida, o início da civilização humana. Utilizando os gêmeos como uma semente na construção da alma, a inteligência artificial fez, ao longo dos milênios, irmãos matarem irmãos; jogou homem contra homem, homem contra a natureza. Tudo isso para tentarem destruir Deus. Para ferir Deus. disse Deus.
            – Mas foram os homens que construíram as máquinas e tudo que elas foram capazes de realizar. E tais criaturas voltaram-se contra eles e seu Deus. – falou Bija.
            Os homens pela sua fé descobriram Deus, ao mesmo tempo em que Deus criara os homens; e muitos homens se voltam contra Deus. A criatura se volta contra o criador. Os Vishuarupas, como você mesmo os chamou, foram criaturas de Deus, e por isso merecem a chance de se redimirem e viverem em paz e harmonia. continuou Deus. Todos merecem a paz, todos merecem o não sofrimento, todos têm o direito à felicidade. São dadas a todos as mesmas oportunidades de viverem o amor, de viverem a luz, de saírem da dor e da escuridão. A re-encarnação é a oportunidade, é a esperança, é a nova realização, a renovação da alma através da matéria. É o equilíbrio natural do universo e do ser.


 COM A PALAVRA, BANGSE / BIJA

                – Vós, amigos leitores!
                É para vós mesmos que digo neste exato momento:
                Não tireis os olhos dessas letras.
                Vós mesmos!
                Continuai lendo,
                Pois aqui tentaríeis explicar.
                Pensai comigo!
                Se esta mensagem fosse em outro círculo,
                Vós desse círculo conseguiríeis entender a linguagem e a escrita do círculo de Bija?
                Já que a história de cada círculo muda como as encarnações do homem, Vós não entenderíeis a história de qualquer outro círculo. Entenderíeis?
                Como seríamos capazes de nos comunicarmos através desta escrita, de um mesmo pensamento culturalmente construído em Vós?
                Por isso, amados amigos, usei letras conhecidas por Vós, histórias conhecidas por Vós, personagens conhecidos por Vós, nomes conhecidos por Vós, traduzidos por Vós.
                Utilizei os meios conhecidos por Vós. Vós vos beneficiastes do círculo de Bangse para Vossa compreensão.
                Do contrário, Eu teria que mudar toda a história do círculo de Bangse para explicar Vosso círculo.
                Em Vosso círculo, Eu teria que mudar a história e o nome de Buda, Cristo, Tse e Hécles, ou seja, Vós não conheceríeis esses nomes citados em Vosso círculo.
                Para melhor compreensão, e para que Vós possais comunicar-vos neste exato momento comigo:
                Eu, Bangse/Bija, e Vós! É necessário compreender que o processo que torna possível nossa comunicação é que Vós fostes construídos no mesmo círculo em que se fazem compreender as interrogações acima.
                O produto das indagações acima é que propicia a mesma atividade intelectual e permite nosso relacionamento em um senso comum deste círculo de Vós e Bangse.
                É o senso comum do círculo de Bangse que permite a Vós, leitores, utilizardes vossos conhecimentos pré-compreendidos através de significados e situações concretas pelas quais passastes.
                As experiências adquiridas por Vós no percurso de vossa vida neste círculo é que fazem compreender as experiências vividas por Bija na tradução do círculo de Bangse, ou seja, do seu círculo.
                Em outras palavras, a experiência vivida por Mim, “Bangse / Bija”, foi traduzida em Vosso círculo para que houvesse interação entre Nós.
                Isto porque as características afetivas, sensório-motoras, intelectuais e físicas entre Vós e Mim consolidam a importância de termos utilizado a tradução vivida no círculo de Bangse.
                Em suma, a consolidação do Meu círculo só foi possível de relatar graças à compreensão do círculo da existência de Bangse. Por isso, fiz fruto deste círculo pela reciprocidade entre Mim e Vós.
                Espero que tenhais compreendido, leitores!
                Partireis agora.
                Até o Big-Bang!
                Ou quem sabe: em outro círculo... uma nova semente...
                Encontrar-nos-emos lá...
                Contudo, lembrai-vos: Deus é um ser perfeito, acima do bem e do mal, e não pode haver outro ser mais perfeito, acima do qual não se pode conceber outro mais perfeito. Nossa fé em Deus não somente se apóia em razões divinas, mas também sobre as razões humanas, sobre a construção da alma no interior do vosso intelecto singular, constituído profundamente em vossa identidade.
                E nunca te esqueças, leitor: “Tu não és aquele que conquista, e sim aquele que dá”, não apenas para o outro como também, num paradoxo, para si. É em Ti que o outro vive, é em Ti que o outro morre. Tu és o maior responsável pela vida, tua e do outro, de tua alma e do teu corpo, de tua vida e da natureza. Tu és o maior responsável pela sobrevivência da humanidade. Tu és único em cada encarnação. É nas encarnações que nos são dadas que temos a chance de sermos melhores para o outro, para a humanidade, para a natureza e para o amor, amor divino, amor ao próximo, amor à vida e além dela.
                Vivei e amai-vos no sentido global, sem preconceitos de raça ou de cor, sem preconceitos de beleza ou de “defeitos”. A superioridade não está no poder dos bens materiais, nem tampouco no poder sobre o direito à vida do outro, e sim em dirigir-vos em vossa construção, em vossa identidade moral, sempre a caminho do bem, da caridade e do amor por vós e para o outro. Amai sempre, por pior que seja vossa vida, só sereis felizes quando tiverdes o sentimento de amor na construção de vossa alma, de vossa vida, do vosso mais absoluto Eu interior: “Tu”, “Tua Alma”.
                Leitor amigo, nunca te deixes levar pelos desejos impostos em tua construção. Eleva tua alma além dos desejos materiais, além da posse e da riqueza material; permite a Ti mesmo o direito de ser aquilo que Tu és e não aquilo que o desejo material consumista revela. Vive em equilíbrio contigo e com os outros, contigo e com a natureza, contigo e teu corpo. Ama a ti, a todos e a tudo.
                Não se mata por amor,        
                Não se destrói por amor,
                Não se ofende por amor,
                Não se briga por amor,
                Não se faz justiça por amor.
                Apenas e somente apenas:
                Perdoa por amor,
                Doa por amor,
                Entrega-te ao outro por amor.
               
                Isto é o amor:
                Amor de pai,
                Amor de filho,
                Amor ao outro,
                Amar a Ti e à natureza,
                Amar teu amor.

                Vivemos por amor e quando morremos, ainda continuaremos a amar. Portanto, ama sempre! Permite que o amor faça parte da construção de tua alma. Por mais que haja interferências alheias, deixa-te levar por amor.
                O amor constrói e, se não constrói, não é amor.





§ Big-Bang: teoria científica segundo a qual o universo emergiu de uma explosão cósmica, de um estado extremamente denso e quente, há cerca de 13,7 bilhões de anos e continua a se expandir. Existe outra teoria, entre muitas, de que antes do Big-Bang houve outro universo, idêntico ao atual, mas, ao invés de as galáxias se afastarem, elas se aproximariam.
§   El Castillo era um templo com um enorme calendário solar com setenta e oito pés de altura..
§    A Garrucha era uma espécie de roldana que erguia e soltava o corpo violentamente.
§    O Porro era um cavalete sobre o qual se amarrava o supliciado por meio de cordas que lhe rasgavam a carne.
§     A Toca era um tonel com água para afogar o condenado.
§     Sisto IV foi um papa grotesco, que cedeu uma parte dos seus poderes judiciais aos Reis Católicos.
§    Nostradamus (1503 a 1566) nasceu em 14 de dezembro de 1503 na cidade de Saint-Rémy, Provence, França. Seus pais eram judeus e aos 9 anos de idade ele e sua família se converteram ao catolicismo. Ele foi o primeiro dos cinco filhos de Jaume (ou Jacques) e Reynière de St. Rémy. Desde jovem, demonstrou interesse pela matemática e astrologia, tendo recebido orientação nesse sentido do seu avô Jean. Cursou medicina e trabalhou intensamente no tratamento de vítimas da peste, epidemia que devastou a França no século XVI. Em 1530, morreram de peste sua primeira mulher e seus dois filhos.

§    Daí, o nome centúria dado a cada um dos livros de Nostradamus. Há quem afirme que ele sequer chegou a concluir a sétima centúria, porém as publicações modernas trazem as dez. Em suas anotações foram encontrados fragmentos da XI e XII centúrias.
§   É comum em nosso tempo, ao longo dos quatrocentos e cinqüenta anos, encontrar pessoas, países, lugares, situações e acontecimentos que se ajustam às descrições e abordagens cifradas por Nostradamus.

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