IVAN CAÇÃO
BANGSE:
UM OUTRO CÍRCULO ... UMA NOVA SEMENTE ...
Revisão
Jacob Lebensztayn
PREFÁCIO
Em
outro círculo, uma nova semente, nada mais que a vida de Bangse, acontecimentos
que ele passou em outra existência, em outra realidade, um novo ser do Big-Bang§ao Big-Bang. Pode ser uma existência
melhor ou pior, não se sabe, o leitor descobrirá.
Às
vezes, os governos através dos meios de comunicação nos informam de campanhas
contra a fome, de lutas contra a miséria. Assim, somos informados que famílias,
crianças e velhos morrem de penúria e inanição. Todos os leitores e
telespectadores ficam indignados com a injustiça, eis que movidos pela
solidariedade ajudamos, como alguém responsável por ela. Um sentimento de culpa
pela injustiça ou um sentimento de solidariedade?
Talvez
busquemos ser heróis, ajudando o próximo; não como um super-herói, mas como
alguém que tem um sentimento sensato, cuja ação se manifesta em honradez e
espírito de justiça. Após o ato de ajuda sentimo-nos dignos de nós como alguém
que ajudou o próximo.
A
maioria das pessoas têm em sua construção essa ética, esse senso moral
elaborado nas consciências, de tal forma que faz de nós os culpados de sermos
tão perversos para com o outro; ao mesmo tempo, os culpados sempre se fazem de
vítima e estão por trás da elaboração de um modo de vida pré-existente
culturalmente.
O
que fazer?
Será
que devemos igualar-nos aos perversos que utilizam de artifícios para o domínio
público, ou deveríamos ser conscientes de nós e dos outros? Talvez seja
necessária uma ação que busque um sentimento mínimo de responsabilidade,
reconhecendo o outro como igual. Podemos reconhecer isso como um atributo de
responsabilidade para com a humanidade, capaz de satisfazer a suprema realidade
interior, capaz de transformar e fundir o “ser” com o “humano”. Talvez este
seja o maior poder do homem.
Nessa
perspectiva, resta-nos ser bons ou ruins, solidários ou egoístas, sermos livres
ou capazes, termos o poder ou sermos o poder.
O
fato de você ser solidário, livre e ter o poder de decisão ao ajudar aquele que
precisa, não quer dizer que seja um dominado. O fato de você ser egoísta,
potencialmente capaz e ser o poder não quer dizer que domina. O fato de ser
solidário e egoísta, ser livre e capaz, ter o poder e ser o poder também não
justifica a qualidade de sua alma para com um provável Deus, isto é, não
justifica um potencial de sentimentos elevados, nobres de espiritualidade,
magnânimos.
Conhecer,
entender, eis a responsabilidade. Buscar uma vida virtuosa e agir em
conformidade com a razão, respeitar a natureza, ser solidário, sentir-se feliz,
independente de domínio político, filosófico, espiritual ou religioso, que mal
há?
Nossa
conduta nos faz ser o que somos.
Que
mal há em respeitarmos uma vontade divina, mesmo no caso de uma não existência
de Deus, de agirmos em conformidade vinda de uma “consciência” superior se o
que estamos fazendo é para o bem do próximo? Se pudermos ser felizes por uns
instantes ao beneficiarmos o próximo, mesmo que seja uma felicidade construída
em nós ou uma vontade divina, o fato é que aquele que tem fome sofre com a
fome. Independente de existir ou não Deus, independente de estarmos sendo
usados por políticos e políticas culturais, o fato é que estamos dando momentos
de felicidade para o necessitado.
Eis
a qualidade de nossa alma para com Deus, eis o amor ao próximo e a
responsabilidade pela salvação do próximo, conforme exige a fé.
Eis
a virtude internalizada da relação do homem com Deus.
Você
tem a livre vontade, você pode fazer o bem ajudando, tratando bem o próximo,
respeitando a vida dos outros, respeitando a sua vida, respeitando os bens
adquiridos pelo próximo; ou partir para o uso de drogas que possam apressar sua
destruição prejudicando a si e aqueles que o cercam, ou partir para a violência
e o mundo do crime; você, político profissional, tem o poder de escolha para
desfrutar do dinheiro público para sua felicidade; é possuidor de tal poder.
Você tem o poder de, com suas ações, frear a corrupção, através de normas,
leis; usar o que for necessário para inibir ou até punir a corrupção e o desvio
do dinheiro público. Você pode escolher entre o bem e o mal, tem a capacidade
de escolher o que é melhor para si sem o prejuízo alheio. Por pior que seja o
sistema, você tem outra opção. Você sabe que ninguém pode ser completamente
feliz. A felicidade não está naquilo que pode prejudicar o outro. A felicidade
está em ser mais um, em existir, transformando a existência alheia em uma
realidade melhor.
Lembre-se:
a Natureza é o reino da necessidade do acaso, de acontecimentos regidos por
causa e efeito. Então, o que fizer contra a humanidade, contra o próximo ou
contra você mesmo é sua responsabilidade. Não culpe a Deus nem aos outros, você
é possuidor de uma vontade livre para inclinar-se diante de um coração farto de
generosidade e ser um sujeito melhor. Você escolhe como deve viver e decide
como agir. O mundo está aí. Viva intensamente, mas pense bem: você pode deixar
de lado esse coração enganoso e desesperadamente corrompido pelo “ter” e saber
a importância que se encontra no “ser”.
Você
viverá várias encarnações, viverá em vários círculos de existência. Pense bem:
você tem a livre vontade, você tem o poder maior. Eis a questão!
O NASCIMENTO DE RAFAEL /
BANGSE
Madeira
aguardava na sala de espera do Hospital Público Municipal notícias de Isaura,
que se encontrava numa sala de parto. Entre uma reza e outra, Madeira começou a
pensar em sua vida, desde sua vinda para São Paulo até o dia em que conhecera
Isaura.
“Saí do Estado de Minas Gerais
e vim para São Paulo; ainda era uma criança, quinze anos. Meu primeiro emprego
foi como engraxate no Mercado Municipal. Desde menino sempre fui chamado de
Madeira. Minha doce mãe criou sozinha todos os filhos. Que mulher maravilhosa!
Meu pai – balançou a cabeça, deu um leve sorriso de desprezo entre os lábios e
continuou – deixou-a e nunca mais apareceu. Engraçado que ninguém em casa nunca
mais teve notícia de papai.
Quando
cheguei a São Paulo, que diferença, uma imensidão de cidade! Afinal não dá para
comparar com a pequenina cidade em que morava em Minas Gerais. Logo
que cheguei a essas redondezas, lembro-me de cantarolar enquanto engraxava.
Havia clientes que reclamavam: “Pare de cantarolar, garoto!”, mas muitos
gostavam. A habilidade que tinha com o pano na hora do lustre nos sapatos e as
jogadas para cima com a escova ajudavam a atrair mais clientes. Até ensinei
alguns amigos, mas com uma condição: que eles trabalhassem mais afastados de
mim. Frequentei a escola apenas para aprender a ler e escrever razoavelmente.
Lembro-me que minha maior felicidade foi quando aprendi a gramática. Minha mãe
sempre me ensinou a ser simples e educado com as pessoas, pois ela era simples,
honesta e muito religiosa”.
Em
seguida, Madeira se levantou do sofá e, dirigindo-se a uma das enfermeiras,
perguntou-lhe se estava tudo bem com a esposa. Ela pediu que tivesse paciência,
tudo corria bem.
Caminhando de um lado para
outro no hospital, Madeira continuou pensando no passado:
“A
vida nos obriga a carregar tantos fardos, mas esta é a rotina pesada que as
grandes metrópoles nos impõem. Assim é a vida, somos coagidos a continuar,
somos carregados sem muita escolha. – Colocou a mão direita no ombro esquerdo.
– Em meus ombros há calos até hoje devido ao peso da caixa de engraxate, que
carregava de um lado para outro. Eu era grande, comparado aos meninos de sete anos
que também engraxavam sapatos. Imagino como deveria ser pesado o peso da caixa
nas costas para um menino de sete anos! – Lembrou-se de outras atividades para
ganhar alguns trocados: Às vezes ajudava as pessoas a transportar mesas,
mobílias e sacos pesados por alguns centavos. Gostava muito de olhar a
perturbação caótica do trânsito, pessoas sendo levadas por carros e ônibus”.
Seu
pensamento se encaminhou para o momento em que conheceu Isaura.
“Lembro-me
das mulheres bonitas que passavam para trabalhar em frente ao Mercado
Municipal; e foi ali aos dezessete anos que conheci Isaura. Ela era uma linda
jovem! Tive muita sorte, pois, além de linda e carinhosa, possui uma extrema
preocupação para com o próximo, que às vezes até incomoda. Tinha dezesseis anos
e trabalhava de vendedora em um dos boxes de frutas. Achava que ela nunca
namoraria um engraxate. Um dia tive coragem e convidei-a para tomar um sorvete.
Ela aceitou. Dali para cá as coisas melhoraram muito; fui trabalhar na
marcenaria de seu Orlando, na qual permaneço até hoje”.
Enquanto
Madeira permanecia entretido em seus pensamentos, perambulando de um lado a
outro à espera de novidades, passaram-se as horas. Após duas horas de trabalho
de parto, a enfermeira entrou na sala de espera, dando os parabéns a Madeira.
Ele ficou muito feliz, agradeceu a Jesus Cristo e pediu para ver Isaura e o
bebê.
Isaura,
já no quarto do hospital, recebeu Madeira com o bebê em seu peito, dizendo:
–
Querido, este é nosso Rafael.
A PESTE NEGRA
Enquanto
isso se passava com Bangse, em seu círculo como Rafael, num outro círculo uma
jovem mulher em pleno século XIV, na Europa, dava à luz uma criança.
Essa
foi uma época em que a “peste” ou a “morte negra”, como era conhecida, fora
responsável pela morte de milhares de pessoas. Época em que dezenas de pessoas
tiveram de ser queimadas em piras, já que não havia mão de obra suficiente para
enterrar os mortos.
Os
ratos pretos de Caffa, chegados em navios mercantes atracados nos portos, se
espalhavam por toda parte, transmitindo as suas pulgas infectadas aos ratos das
cidades.
Bocaccio
descrevera os sintomas da seguinte forma:
– A doença se iniciava com as
inchações. No começo apareciam inchações na virilha ou nas axilas, tanto em
homens como nas mulheres. Algumas delas cresciam como maçãs, outras como um
ovo; umas cresciam mais, outras menos; o povo as chamava de bubões. Em seguida,
o aspecto da doença começou a alterar-se, aparecendo manchas de cor negra ou
lívida nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros
lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas;
em outras eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o
bubão fora, ainda era indício inevitável de morte. Como os bubões, as manchas,
com o tempo, passaram a ser mortais.
Bocaccio descreveu, também, a
dificuldade de dar sepultura à grande quantidade de corpos.
“Já não era suficiente a terra sagrada junto às igrejas; por isso passaram
a edificar igrejas nos cemitérios; punham-se nessas igrejas, às centenas, os
cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos
navios”.
Outra importante pessoa que descreveu aqueles difíceis
momentos foi o Papa Clemente VI Guy Chauliac, famoso cirurgião da época
(Avignon, França):
“A grande mortandade teve início em Avignon em
janeiro de 1348. A
epidemia se apresentou de duas maneiras. Nos primeiros dois meses
manifestava-se com febre e expectoração sanguinolenta e os doentes morriam em
três dias; decorrido esse tempo, manifestava-se com febre contínua e inchação
nas axilas e nas virilhas e os doentes morriam em cinco dias. Era tão
contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver
seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo. Não se
sabia qual a causa dessa grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os
judeus haviam envenenado o mundo e por isso os matavam”.
Inexplicavelmente a peste se
espalhou, atingindo a Grã-Bretanha, Portugal, a Escandinávia, a França e toda a
Europa, exceto, justamente onde vivia a criança que a mãe acabara de dar à luz,
em Milão.
A estrutura política que na época
prevalecia em Milão era igual à de toda a Europa feudal. As relações entre os vassalos e
suseranos eram vivenciadas da seguinte forma: o suserano era quem dava um lote
de terra ao vassalo, sendo que este último deveria prestar fidelidade e ajuda
ao seu suserano. O vassalo oferecia ao senhor, ou suserano, fidelidade e
trabalho, em troca de proteção e um lugar no sistema de produção. As redes de
vassalagem se estendiam por várias regiões, sendo o rei o suserano mais
poderoso.
Assim, todos
os poderes jurídicos, econômicos e políticos concentravam-se nas mãos dos
senhores feudais, donos de lotes de terra denominados feudos.
A
nobreza feudal, composta pelos senhores feudais, cavaleiros, condes, duques e
viscondes, era detentora das terras (feudos) e eles arrecadavam os impostos dos
camponeses. O clero (membros da Igreja Católica) tinha grande poder, pois era
responsável pela proteção espiritual dos demais, arrecadava o dízimo e estava
livre de impostos.
Os
servos (camponeses) e pequenos artesãos pertenciam à camada mais baixa da
sociedade. Eram eles que pagavam as taxas e tributos aos senhores feudais. Economicamente
viviam da agricultura e do artesanato. Na Idade Média havia moedas, porém eram
pouco utilizadas; o mais comum era a troca de mercadorias.
Além
de rica, possuidora de um grande poder econômico (os feudos) e de grande
quantidade de servos, a Igreja Católica dominava o cenário religioso,
influenciando no modo de pensar e agir da comunidade feudal. Os monges que
viviam nos mosteiros eram responsáveis pela proteção espiritual da comunidade;
passavam grande parte do seu tempo rezando e copiando livros e a Bíblia.
O
meio mais utilizado para se obter o poder na Idade Média era a guerra.
Nelas se utilizavam escudos e espadas
num confronto direto, formado por cavaleiros, que eram corajosos e leais aos
senhores feudais e ao seu rei.
Enquanto
os servos e sua família trabalhavam quase como escravos, os filhos dos nobres
estudavam; numa doutrina religiosa aprendiam o Latim e táticas de guerras.
A
cultura estava presente nos vitrais religiosos que retratavam passagens da
Bíblia e ensinamentos religiosos nas igrejas e nos castelos.
O
NASCIMENTO DE BIJA
E
justamente nessa época nasceu o filho de Boa Ventura, cujo nome significa “boa
sorte” em italiano, e Delia, palavra que vem do grego “delos” e significa
“visível”, era o nome de Ártemis, a Deusa da Lua. Dessa união nascia naquele
exato momento Vayu, cujo
nome significa “ar, forma cósmica da energia sutil”, “aquele que se move por
toda parte”. Esse nome seria dado pela parteira Sattya, que significa
“tranqüilidade, conhecimento, clareza, pureza”. Sattya era uma senhora indiana
muito amiga de Delia e filha do velho Sr. Prana, cujo significado é “energia sutil”.
Os pais de Vayu comemoraram muito o nascimento do filho,
pois era uma época difícil em que poucas crianças sobreviviam após o parto. A
mortalidade infantil era altíssima em virtude da precária estrutura higiênica
social.
O velho Prana, de religião hindu, havia vindo da Índia e,
segundo ele, com a missão divina de dar a educação hindu para Bija, cuja
tradução é “semente” (Bija era o apelido que Prana deu a Vayu).
Poucas horas depois do parto, Sattya pegou o menino e
mostrou ao seu pai, o velho Prana.
– Não há dúvidas, este é Bija.
Boa Ventura e Delia não acreditavam muito nas histórias
do velho mestre, mas o admiravam pelo conhecimento em plantas medicinais, por
sua habilidade com as agulhas (acupuntura) e sua capacidade de meditação com
exercícios de ioga naquela idade, 80 anos.
Prana nascera na Índia na região de Sanatana Dharma, que
significa “Religião Eterna”. Ele acreditava que Vayu era um “Avatar” (manifestação
corporal de um ser imortal, por vezes Ser Supremo). Essa palavra deriva do sânscrito
“Avatãra” que significa “descida”, denotando uma das encarnações de Vishnu, que
os hinduístas acreditavam ser um Deus. Vishnu é a mistura de duas palavras:
Hindi, que quer dizer “raiz”, e Sans Vishva, que significa “tudo”. Ao juntar a
palavra Shiva e Brahma, tem-se Trimurti, a trindade divina hindu. E Vishnu é um
Deus.
Prana
acreditava que Cristo era uma das encarnações de Buda. Mas temia passar isso
para Vayu pelo simples motivo da dominação imperial da Igreja Católica, o que
poderia influenciar a submissão de Vayu ao poder da elite, atrapalhando sua
educação hindu, a ioga e os ensinamentos indianos.
Desde
os primeiros passos de Vayu, Prana ensinou tudo ao garoto, porque, devido à sua
idade, trabalhava menos tempo na lavoura. Assim, dedicava-se aos ensinamentos
de sua religiosidade e crença ao menino. Porém, tudo era muito escondido,
simplesmente porque aquele que não seguisse a religião católica era caçado por
bruxaria.
Não
se sabe ao certo o total de vítimas queimadas por terem sido acusadas de
bruxaria na Idade Média, alguns registros acusam cerca de cinqüenta mil a nove
milhões. Porém, os cem anos mais histéricos do movimento de “caça às bruxas”
ocorreram entre 1550 e 1650. Em algumas regiões não havia julgamento, e
simplesmente as mulheres foram queimadas devido à simples desconfiança por
parte da comunidade local. Isto porque as cortes seculares locais eram as mais
cruéis: as vitimas eram julgadas e executadas. Dados comprovam que cerca de
vinte e cinco por cento eram homens e setenta e cinco mulheres, vítimas de tais
condenações. Havia até um manual de caça às bruxas, o “Malleus Maleficarum”,
que significa o “martelo das bruxas” ou o “martelo das feiticeiras”, publicado
em 1487 e dividido em três partes. A primeira ensinava os juízes a reconhecerem as bruxas
em seus múltiplos disfarces e atitudes. A segunda expunha todos os tipos de
malefícios, classificando-os e explicando-os. A terceira regrava as formalidades
para agir “legalmente” contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las e
condená-las. Depois vimha a condenação, que praticamente forçava as pessoas a
confessarem por meio de torturas muito cruéis; o próximo passo era queimar a
pessoa viva.
Por isso, os únicos que sabiam a
filosofia e seguiam a religião hindu eram
Sattya e Prana, que aos poucos passou esses ensinamentos a Vayu, o qual
todos chamavam de Bija. Nem Delia, nem tampouco Boa Ventura sabiam do segredo
carregado durante todo o tempo em que moravam embaixo do mesmo teto; somente
presenciavam Prana fazer seus exercícios. Era em alguns locais da floresta que
o velho mestre e Sattya praticavam suas meditações. Assim, ao mesmo tempo que
Bija era levado pelo pai e pela mãe aos ensinamentos da Igreja Católica, Prana
lhe ensinava toda a cultura hindu. Assim
cresceu Bija.
Os ensinamentos de Prana
A primeira vez em que Bija entrou na
floresta com Prana foi aos sete anos de idade. Ao caminharem em direção à
floresta, o velho mestre disse:
– Bija, o que sente em seu corpo?
– O vento, respondeu o menino,
após inspirar e expirar profundamente algumas vezes.
– Prossiga com essa respiração.
E Prana continuou: Dê-me a mão, feche os olhos e respire lentamente enchendo
bem seu peito; agora diga tudo que sente.
Depois de alguns minutos
enquanto caminhavam juntos, Bija respondeu:
– Sinto o vento em meu corpo, o
mato em que piso, o capim que às vezes desliza pelos meus braços; ouço o vento
entre as árvores, os pássaros cantarolando; sinto o cheiro da mata, o gosto do
orvalho em minha boca.
– Ainda não abra os olhos e diga
o que vê. – falou o velho mestre enquanto caminhavam.
– Vejo uma luz
espelhada na figura de um homem, com um azulado na extremidade. É muito forte.
Prana pediu para o menino abrir os
olhos. Ele abriu os olhos e disse:
– A luz continua ali perto daquela
árvore. Ela é igual à que vejo desde pequenino, quando me abraçava e me fazia
carinho.
Prana não
sabia do que Bija falava, isso porque ele via outras imagens, mas nenhuma luz
parecia com aquela que o garoto descreveu. Continuaram os passeios enquanto
Prana lhe falava de toda a filosofia hindu. Por onde passavam comiam sementes, frutas e raízes
indicadas pelo velho mestre, que descreveu a finalidade medicinal de várias das
plantas e raízes existentes na floresta. Esporadicamente paravam para a
prática de ioga e da luta marcial Mahabhárata. Prana lhe ensinou os pontos vulneráveis do corpo humano
durante os ensinamentos da arte marcial.
Ao
contrário da alimentação de Bija, os nobres de Milão se
alimentavam fartamente de variados pratos como carne, peixe, queijo, couve,
nabos, cenouras, cebola, feijão e ervilha. Tudo isso com direito à sobremesa em
abundância como maçãs, pêras, etc. Já os servos passavam a vida de maneira
radicalmente diversa, trabalhando o dia inteiro na época da colheita, pouco
conservando do produto do seu trabalho para si e para sua família. Eles apenas
se alimentavam do básico para a sobrevivência; por vezes caçavam em temporadas,
e outras passavam fome.
Boa Ventura, Delia e Sattya trabalhavam em um sistema de rotação do feudo. Os
campos aráveis se dividiam em três partes para não esgotar o solo, sendo que
apenas duas eram cultivadas ao mesmo tempo. Somente após a colheita é que outra
parte repousava e, assim, mantinha-se o cultivo ao longo do ano inteiro. Eles e
outros servos, assim como Sattya, passavam mais da metade da semana trabalhando
nas terras do senhor ou da Igreja. No resto do tempo, eles cultivavam seus
próprios lotes para que pudessem ter o mínimo para o sustento da família. Boa
Ventura também cortava lenha no bosque; às vezes, este era o seu lugar de caça
de coelho e esquilos. Porém, não lhe era permitido caçar animais grandes, pois
pertenciam aos senhores feudais. Por sorte, frequentemente Prana, intuitivo e
sem medo de nada, encontrava mel na floresta e frutas silvestres, que levava
para toda a família. Mas muitos evitavam os bosques por medo de bruxas e
figuras maléficas. Não era o caso do velho mestre, que tudo via e nada temia.
O
vilarejo em que moravam Boa Ventura, Delia, Prana, Sattya e agora Vayu se
localizava perto das lavouras, ao lado de um riacho, e possuía aproximadamente
vinte e cinco famílias. Sua casa era de barro reforçado com palha e cobertura
de sapê; tinha apenas um cômodo, sem chaminés ou janelas. Os cães, gatos e
galinhas andavam soltos entre as casas e nos arredores havia pequenas hortas e
frutas.
O
senhor do feudo tinha um castelo de pedra que o abrigava com sua família, seus
empregados e encarregados da administração do feudo. Havia também algumas casas
ao redor, frequentemente vazias, que serviriam de quartel para as tropas do rei
em caso de necessidade.
Sattya,
além de parteira, trabalhava na lavoura e cuidava de crianças recém- nascidas
enquanto os pais delas iam para a lavoura. A idade de Sattya era cinqüenta e
oito anos. No vilarejo, muitos a chamavam de Nursery, que significa “mulher que
cuida” e deriva do vocábulo latino “nutrire”, nutrir em português; “nursery”
também tem suas raízes no latim, da palavra “nutrix”, utilizada desde o século
XIII.
Sattya
cuidara de Bija junto com Prana, somente até os três anos; depois disso só
Prana cuidava do menino. Ele brincava com outras crianças em frente ao
vilarejo, sempre aos olhos do velho mestre que o orientava:
– Não brigue
com outras crianças. Peça sempre desculpa mesmo se estiver certo.
Porém,
um dia, numa tarde ensolarada, em que uma tropa de guerreiros do rei passou
pelo vilarejo, os guerreiros deixaram seus cavalos próximos à casa de Boa
Ventura. Foi quando Bija acariciou na sua inocência um lindo cavalo de um dos
guerreiros, o qual gritou com ele:
– Seu moleque!
Tire essas mãos sujas de meu cavalo.
E
partiu para cima de Bija para bater-lhe com uma pedra em uma das mãos. Daí,
Prana, aos oitenta e sete anos, fingiu com sua bengala tropeçar na perna do
guerreiro atingindo-lhe um ponto meridiano da vesícula biliar, uma linha que vai de fora do pé até o lado da cabeça,
passando pelo lado da perna, coxa, quadril, costelas, tórax (na frente do
ombro), e ao lado do pescoço. Praticamente paralisara o guerreiro naquele exato
momento, enquanto os outros guerreiros riam desse homem que ficara deitado com
dores sem poder mexer-se. Prana pegou na mão do garoto e levou-o mais uma vez
em direção à floresta.
Nela, o velho ensinou progressivamente suas habilidades a
Bija, inclusive a cultivar a prática do “Terceiro Olho”. Disse ao garoto para
ver com o coração: “Use a Ajna, está localizada um pouco acima dos olhos entre
as sobrancelhas (ponto conhecido como brumadhya)”.
–
Esse é o olho da mente! – e encostou o dedo no meio da testa de Bija, um pouco
acima dos olhos. Em você será revelada a dimensão da realidade. Ao firmar seu
olhar dentro dos olhos do menino, Prana disse: “Você verá além do Tuatara
(animal que tem um terceiro olho incrustado no crânio, revelado apenas por um
pequeno orifício coberto por uma membrana)”. E utilizou o animal para expressar
o que acreditava ser Bija (aquele que vê além do bem e do mal).
Prana cuidava de Bija como a um servo de um rei. Isso
porque, em uma de suas meditações, descobriu que no passado fora um dos
seguidores de Buda. E contou ao menino:
–
Em uma das minhas encarnações, fui Ananda, que significa “sentimento”.
Caminhava junto a Buda, sendo o guardião do Dharma. Buda era meu primo, eu
seguia cada um de seus passos em cada uma de suas peregrinações, sendo o
interlocutor de muitos de seus diálogos. Descrevia a personalidade de Buda:
“Buda era gentil com todos, preocupava-se muito com as pessoas, como Cristo da
Igreja de sua mãe, Delia”. Afirmou: “Segundo minhas visões com o Mestre Buda,
sempre fui fiel a sua doutrina e aos seus ensinamentos”.
Bija
e a pureza universal
Durante um entardecer, num dos
frequentes passeios nos arredores da floresta, Prana explicou sobre sua
peregrinação com Buda em uma de suas encarnações. Bija, com apenas dez anos de idade, lhe perguntou:
“Qual a origem de nossa existência?”
O velho mestre respondeu da seguinte maneira:
–
Essa resposta está em você!
Em seguida, fez com que o menino se concentrasse. Isso
tudo ocorreu durante um de seus passeios pela floresta, um local isolado entre
as árvores, próximo a um lago formosíssimo, de águas claras e mansas. Sempre
quando ali chegavam, sentavam-se à sombra do arvoredo.
–
Responda-me você, jovem Bija! – exclamou Prana.
O
garoto interrompeu-o subitamente, falando com voz suave e tranquila:
–
Avise ao nobre senhor que matem os ratos e evitem as pulgas. Peça-lhe para avisar ao Duque que
institua um rigoroso programa, que inclua a pavimentação e a limpeza das ruas e
a remoção dos dejetos. Faça uma grande campanha para que todos tomem banho,
todos os dias da semana.
Prana não entendeu mas continuou a ouvi-lo.
–
Sinto uma pureza universal, sem níveis verticais ou horizontais, apenas uma
semente em uma imensidão de vazio. Sinto-me em conformidade com o universo,
estou em igualdade com tudo; sinto ter qualquer capacidade que ele possua; em
um paraíso celestial.
Após
dizer isso, o menino ficou horas meditando em silêncio na presença de Prana,
que esperou pacientemente.
Enquanto
aguardava, Prana pegou um pedacinho de galho e começou a desenhar na areia, às
margens do lago, aquilo que via ao olhar para Bija. E desenhou a seguinte
figura:
Prana ficou admirado com tal imagem. Viu a magia de todos
os pontos que tanto estudara na Índia.
Providências para acabar com a peste
Enquanto esses fatos se passavam com Prana e Bija na
floresta, na aldeia havia uma enorme euforia com as informações sobre a “Peste
Negra”. A peste contagiara muitas pessoas das cidades vizinhas: em Lucerna
centenas de pessoas, em Verona e Gênova outras centenas, mas nenhuma em Milão.
Delia, mãe de
Vayu (Bija), disse a Sattya:
– Estou com
medo; você ouviu o que todos estão falando, tenho medo por meu filho.
– Não se
preocupe, a peste nunca chegará a Milão, como também não chegará a nosso
povoado. – respondeu sabiamente Sattya.
Na manhã do outro dia, diante do avanço da peste, muitos
estavam arrumando suas coisas para fugirem do vilarejo. Muitos tentavam imigrar
para vilarejos mais afastados, fugindo em direção às matas. Até os médicos,
magistrados, padres e outros que moravam nas cidades entraram em pânico,
fugindo dos moribundos. Para a maioria das pessoas, o fim do mundo era certo.
Os médicos que estavam dispostos a tratar dos enfermos lhes receitavam poções
totalmente ineficientes; poções das mais variadas, desde cobras retalhadas até
a lavagem da boca e das narinas com vinagre e água de rosas. Porém, os
tratamentos mais comuns eram as sangrias.
Diante de toda essa situação Prana passou a entender o
que Bija havia dito. Então, urgentemente, falou a Boa Ventura, Delia, Sattya e
aos amigos das redondezas sobre as
providências a serem tomadas. Porém não disse que partira de Bija a idéia de
tais medidas.
As sugestões chegaram até os ouvidos do suserano que, em
um ato de desespero, tomou as devidas providências. Graças ao aviso de Bija, a
pandemia não se estendeu. Os vilarejos próximos também se beneficiaram com tal
atitude, ficando livres da peste.
Bija dizia que a peste não era um castigo divino como
muitos pensavam; o problema estava na higiene, na alimentação e na precariedade
das cidades e dos vilarejos. Afirmou ao pai, à mãe, a Sattya e a Prana:
– A “morte
negra” nos ensinará a nos relacionar com o meio ambiente, livrando-nos da
ignorância e de algumas superstições.
A MORTE E A RE-ENCARNAÇÃO
Durante muito
tempo após o ocorrido, Prana sempre que conversava com Bija, ainda tocava no
assunto “morte”. Certo dia, enquanto caminhavam para suas meditações na
floresta, perguntou:
– Bija, o que
você sabe da morte?
– O corpo é
uma substância da vida. Podemos imaginar a morte do corpo, presenciar outras mortes, porém a morte é
única, ela é do ser existente e singular. – respondeu o garoto, acreditando
estar certo em sua resposta.
– Os mortos
formam as raízes que asseguram a continuidade dos vivos no tempo e no espaço.
Da forma que expôs, não haveria re-encarnação. – expôs Prana.
– E como
acontece a re-encarnação? – perguntou Bija, olhando atentamente ao mestre.
– Foi muito
sábia sua primeira resposta, mas o corpo, o pensamento, a vida que o corpo
possui, a vida própria que o corpo possui é dele, somente dele; é fato que
ninguém vive ou viveu por ele a não ser ele mesmo, do seu nascimento até o
momento de sua morte.
Utilizando-se de uma filosofia que
desenvolvera ao longo de sua vida, o velho Prana prosseguiu:
– A
re-encarnação existe e é fato. Você, por exemplo, viveu naquele tempo até sua
morte, teve outras encarnações, mas foi outra vida. Num paradoxo, você em outra
vida, em outro corpo, teve uma vida única e singular; hoje vive outra vida
única e singular. Embora tenha vivido outras encarnações, cada uma delas é
única e singular em outro tempo.
– E o tempo da
outra encarnação? – indagou Bija, ao pensar sobre o tempo.
– O tempo,
para o ser humano, não é a história do tempo passado de outros seres, outras
encarnações. Por mais que ela tenha sofrido distorções da não realidade, para o
ser presente a lembrança é a sua realidade. Isto é, se ele não lembra o que
viveu na outra encarnação, para ele, ela não existiu. – continuou Prana. Neste
sentido, a lembrança é a realidade daquele homem, mesmo que ele não seja real.
A lembrança faz com que aquilo que ocorreu na vida do suposto homem seja real,
as distorções em que ele crê são reais para ele.
– Neste
sentido sua vida é uma farsa, ele vive a mentira de sua realidade?! – indagou
Bija, referindo-se ao suposto homem.
– Não necessariamente! – respondeu o
velho mestre. Se colocarmos várias pessoas observando uma batalha, cada um
revelará sua versão. Qual seria a realidade da batalha? Em qual deles estaria a
lembrança real da batalha, referindo-se à verdade?
– Em todas elas. – respondeu o
garoto, com a certeza de estar certo.
– Para aquele que crê na história da matéria
tudo é real; para aquele que crê na lembrança, tudo também é real. – disse
Prana, fazendo suaves movimentos de ioga.
– Qual a conclusão a que o senhor
chegou? – indagou Bija, querendo obter mais respostas.
– A vida é formada por vários
instantes enquanto matéria, já a morte se revela em um único instante da
matéria para aqueles que estão vivos. Porém, para aquele que morreu o instante
da morte é a espera da próxima re-encarnação. As lembranças permanecerão
enquanto espírito e somente surgirão se houver crença. Mesmo que a pessoa tenha
tido tal experiência em outra encarnação e ela não crê, consequentemente para
ela a encarnação não existiu.
– Quer dizer
que a crença em outras lembranças da vida é que estabelece uma relação com a
morte e determina uma vida eterna ao corpo espiritual? – indagou mais uma vez
Bija.
– O corpo
estabelece uma conexão com o espírito enquanto vida material, a lembrança
estabelece uma conexão com o espírito enquanto “morte”. A morte faz parte de um
ciclo natural da existência, o caminho da morte é natural de sentido único, ela
está presente nessa folha que acabou de cair da árvore até os seres mais
complexos, inteligentes. Enquanto pegava a folha e mostrava: Mudando de assunto,
gostaria de fazer-lhe uma pergunta: como sabia dos motivos da peste? E de como
minimizar o problema?
– Naquele dia
saí do corpo, mas fiquei ligado a ele numa espécie de cordão de ouro.
Presenciei pessoas moribundas, abandonadas, vi que havia alguns ratos, não sei
como, mas, ao tocar em um enfermo, senti que o motivo eram as pulgas dos ratos;
ao tocar os ratos eu soube que estavam contaminados pela peste. Foi durante a
volta, seguindo o cordão, que um espírito muito iluminado, não era aquele que
vejo às vezes, me disse: “Avise ao nobre senhor que matem os ratos e evitem as
pulgas. Peça-lhe para avisar ao Duque, para que este institua um rigoroso
programa, que inclua a pavimentação e a limpeza das ruas e a remoção dos
dejetos. Faça uma grande campanha para que todos tomem banho, todos os dias da
semana”.
Prana e Bija conversaram horas e
horas durante todo o trajeto, tanto na ida quanto na volta, em que caminhavam
para fazer as meditações. Em vários momentos da conversa, o velho mestre expôs a importância
da consciência, da mente e do intelecto, do sentimento íntimo do indivíduo, do
discernir entre o bem e o mal, do aprovar e reprovar, salientando a importância
do espírito que existe dentro e além de nossa existência, o imaculado Ser do
homem. Isso porque a religião hindu é a busca in acta (nos atos)
pelo divino dentro do Ser, a busca por encontrar a Verdade que nunca foi
perdida. Verdade buscada com fé que poderá tornar-se reconfortante
luminosidade, independente da razão ou do credo professado. Prana ensinou a
Bija que toda forma de existência, dos vegetais e animais até o homem, é o
sujeito e objeto do eterno Dharma.
A paciência é o sinal da vida adulta da alma, o
conhecimento é sinal da idade adulta do cérebro, a coragem e o medo são sinais da idade adulta do
coração. – disse o mestre certo dia.
A conversa dos dois ficou entre os ensinamentos de
Prana e as explicações de Bija sobre o que via em suas
meditações.
Assim,
entre as várias idas e vindas enquanto caminhavam na floresta, Prana ensinou ao
garoto sua filosofia própria de vida, somada a uma filosofia hinduísta. Dessa
forma, infundiu na alma de Bija a chama da pureza associada às virtudes de um
homem benigno, compassivo e bondoso. Um homem capaz de sentir as energias mais
sutis, mais poderosas, mais refinadas,
emanadas de qualquer um, de qualquer parte, de qualquer ser.
Bija e o Duque de Milão
Mais
alguns anos se passaram, quando Bija, aos quinze anos, perdeu Prana. Nesse dia,
o garoto entrou na floresta, foi andando, andando, atravessou-a e continuou a
andar. Ao término da floresta, subiu um pequeno morro e prosseguiu. Depois
chegou a outra floresta, mas não parou para comer nem beber durante dias. Até
que, após uma semana, parou para beber água, comeu algumas frutas silvestres e
raízes, descansou por algumas horas e voltou a caminhar.
O
motivo por que Prana morreu não foi devido a sua velhice. Tudo aconteceu,
quando um garoto da corte ouviu rumores de que havia um bruxo chamado Prana no
vilarejo. Em uma tarde de domingo, o mestre foi cultivar a horta, eis que
chegou o jovem da corte, de apenas treze anos, colocou uma espada em sua cabeça
afirmando que ele era um bruxo e deveria morrer. Prana, olhando para o pequeno
garoto da corte, disse:
– Vai para casa, menino! –
e virou-se de costas para ele.
O
aprendiz de guerreiro tinha acabado de ganhar uma espada nova, a qual enterrou
nas costas de Prana. Em seguida, enquanto o mestre caía, o jovem bateu-lhe com
a espada na cabeça, causando-lhe a morte.
Após
a morte de Prana, Sattya entrou na floresta em vão, à procura de Bija. O pai,
Boa Ventura, passou dias à procura do garoto e nada de encontrá-lo.
Ao
caminhar para o desconhecido, Bija apenas comia sementes, frutas e raízes
indicadas por seu mestre. Caminhou meditando por volta de três anos sem
encontrar uma alma vivente, quando numa bela tarde, bem ao cair da noite,
chegou a uma estrada onde avistou uma velha cavalariça. Esbarrou com um ancião
que lhe propôs um trabalho na estrebaria.
–
Temos oito cavalos que pertencem ao Duque de Milão. Quando ele com sua família
passam por aqui, deixam os cavalos cansados e partem com os descansados.
Então Bija
perguntou ao ancião o que deveria fazer para conseguir o serviço.
– Você deverá
pentear as crinas dos cavalos, prendendo-os bem na manjedoura e dará de comer a
eles duas vezes por dia.
Ele
aceitou, mas com uma condição: que o deixasse praticar a meditação e a ioga. O
ancião aceitou sua proposta e disse para acertar a barba oferecendo-lhe roupa
limpa.
Todos
os dias, ao término do trabalho, o ancião ficava observando Bija entrar na
floresta, que voltava apenas no dia seguinte. O ancião propôs-lhe para dormir
na estrebaria, mas rejeitou dizendo que gostava da floresta.
–
A floresta é meu lar. – respondeu o rapaz.
Certo
dia, ao parar com a família, o Duque chamou o ancião para a troca de cavalos.
Todos desceram da carruagem, o Duque, sua esposa e sua linda sobrinha,
Caterina. Esta era filha de Galeazzo, irmão do Duque Ludovico e neta do
legendário Francesco, que era filho legítimo de camponeses e se fez soldado a
serviço do Papa Martinho V. Francesco, guerreiro famoso de seu tempo, casou-se
com a filha do Duque de Milão. Depois da morte do sogro assumiu o poder como
Duque de Milão, governando grande parte do norte da Itália. Francesco teve dois
filhos: Galeazzo, pai de Caterina, e Ludovico. Ele conseguiu manter seu poder
de ducado através de uma inteligente política de alianças com os Estados
vizinhos. Milão transformou-se num próspero centro de arte, indústria e
ciência, mas, após o governo de Francesco, nunca mais seria a mesma.
Já
Ludovico era o irmão mais novo de Galeazzo. Assumiu o poder depois da morte do
irmão, apoderando-se do ducado em nome de seu sobrinho Giangaleazzo, irmão de
Caterina, depois de colocá-lo na prisão.
Caterina,
ao olhar Bija, ficou apaixonada, mas ele não conseguiu olhar para a jovem. A
Duquesa percebeu e lhe deu uma repreensão sem que Ludovico ouvisse. Numa
distração do Duque e da Duquesa de Milão, enquanto conversavam com o ancião,
Caterina se aproximou do rapaz e perguntou:
– Quem és tu?
– Meu nome é
Bija, filho de Boa Ventura e Delia.
Ela riu com o nome que ele dissera.
Mas continuou:
– Não quer
trabalhar no Palácio de Milão?
Sempre calado, Bija mal
conversava com seu pai e sua mãe quando morava no vilarejo. Ouvia o ancião,
executava o serviço respondendo apenas o necessário. De repente, a Duquesa
apareceu próximo à carruagem e chamou Caterina. Bija acabou de colocar as
rédeas nos cavalos e nada respondeu, nem olhou para o lado delas.
Ao
saírem, Caterina olhou mais uma vez para Bija, e ele abaixou a cabeça para não
fixar os olhos na pequena burguesa.
Porém,
a moça disse:
– Um rapaz
jovem, jogado nesse fim de mundo, seria útil no palácio.
– Imagine! –
exclamou a Duquesa. Cada um deve seguir seu destino de acordo com suas
instruções.
– Por isso
mesmo, lá ele poderá instruir-se melhor. – retrucou Caterina.
A
conversa prosseguiu durante quase toda a viagem. Até que, antes do término da
viagem, Caterina convenceu Ludovico a levar Bija ao palácio, mesmo contrariando
a Duquesa. O Duque o achara um forte rapaz que poderia tornar-se um dos fortes
guardas do palácio.
BIJA E LEONARDO
Duas semanas
depois, chegaram à estrebaria dois guardas com três cavalos. Em seguida,
falaram ao ancião que iriam levar Bija. Este educadamente montou em um dos
cavalos e partiu para o palácio.
Na
manhã do terceiro dia de viagem, viram ao longe o palácio, uma imponente construção.
Avistaram ao longe as duas torres redondas. Ao se aproximar, Bija jamais tinha
visto tamanha beleza, ao mesmo tempo notou a sujeira, os esgotos a céu aberto
na cidade.
Ao
chegarem, os guardas abriram os imensos portões; a seguir, entraram em frente a
uma praça. Bija observou as esculturas que salientavam a maravilha do palácio.
Horas
antes, havia chegado ao palácio um grande artista louro, olhos azuis, nariz
aquilino e de nome Leonardo, cuja idade era trinta anos. Intelectual, dedicava-se,
além dos desenhos artísticos, a desenhos arquitetônicos e inventos mecânicos.
Foi
num de seus passeios, após uma tarde ensolarada, que Leonardo observou aquele
jovem, num canto do palácio, próximo à estrebaria, praticando ioga. Leonardo
lhe perguntou:
– O que fazes,
jovem garoto?
Após alguns minutos Bija parou com a
meditação. Antes mesmo de responder, sentiu naquele que lhe perguntara o mesmo
carinho e liberdade que tinha quando estava com Prana.
– São
exercícios de ioga. – respondeu suavemente e com muita educação.
– Muito
prazer! Meu nome é Leonardo. Estou aqui para projetar a catedral da cidade.
– Tão
importante quanto a catedral seria fazer algo para melhorar os esgotos da
cidade e o abastecimento de água. Na atual conjuntura o que temos apenas serve
para a proliferação de ratos, e consequentemente das pulgas que ocasionam a
“morte negra”. – disse Bija, um tanto encabulado em sua simplicidade.
Leonardo, surpreso com a resposta do garoto,
pensou: – De onde vem tamanha sabedoria? E perguntou:
– Qual é seu
nome, garoto, e o que faz aqui?
–
Meu nome é Bija, cuido dos cavalos do Duque aqui na estribaria.
–
Gostaria que trabalhasse comigo. – convidou-o, interessado em ter ao seu lado o
jovem sábio. Se tiver interesse, falarei com o Duque imediatamente.
–
Com uma condição: que eu possa praticar ioga e meditação. – respondeu da mesma
forma como falara com o ancião da estrebaria.
Leonardo concordou e, em seguida,
pediu ao Duque a permissão.
Três dias depois, lá estava Bija
trabalhando com Leonardo.
– Bija, o que acha desta planta que
acabei de desenhar para a defesa de Milão?
Também projetei essa máquina de guerra: aqui ela será coberta com toras
de madeira, ao centro a força de homens ou animais protegidos no interior
poderá disparar contra o inimigo sem nada sofrerem. Projetei um grande canhão
que poderá disparar várias vezes seguidas.
– Continuo preferindo um projeto para
melhorar as condições de limpeza da cidade.
O assunto se encerrou porque Leonardo
começara a trabalhar em uma gigantesca estátua do Duque Francesco; enquanto
isso, Bija fazia seus exercícios de ioga. O artista deixou que o garoto morasse
num cômodo ao fundo do ateliê
de trabalho.
Após
o trabalho, Leonardo encontrava tempo para o teatro, para organizar as sessões
de música e, em seguida, ele se dirigia às grandes festas, as quais, muitas
vezes, também eram organizadas por ele.
BIJA E CATERINA
Em
uma das festas, Leonardo encontrou Caterina, sobrinha do Duque; ao se aproximar
do artista, ela disse:
–
Leonardo, fiquei sabendo que Bija está trabalhando com você.
–
Olhe, jovem donzela, apesar de seu nome ser o mesmo que o da minha mãe siga meu
conselho: ele é um simples plebeu de enorme sabedoria; acho melhor ficar longe
dele, para o bem de todos nós.
–
Eu o acho lindo, apaixonei-me por ele logo que o vi da primeira vez. Com brilho
nos olhos e demonstrando felicidade no gesto e na voz: Fui eu quem pediu a
Ludovico para trazê-lo ao palácio.
Em seguida, Caterina contou como
tinha conhecido Bija e como o trouxera para o palácio. Disse também que no
início o Duque queria transformá-lo em um grande guarda, depois viu que ele era
pacífico demais e deixou-o apenas cuidando dos cavalos.
No outro dia, impecavelmente vestido, lá estava Leonardo
logo de manhã para o trabalho. Como Bija ajudava no preparo das tintas e outras
tarefas, Leonardo contratou os irmãos Predis para participarem na execução de
um mural para o altar da Virgem, na Igreja de São Francisco. Ao mesmo tempo
ouviu a sugestão de Bija em trabalhar outra versão, inspirada nos seus dizeres:
“almas diversas todas com caráter espiritual”. Ele também ensinou a Leonardo:
“A Terra vive e tem uma alma, os rios são suas artérias, os regatos são as
veias, o fluxo e o refluxo do mar são seus alentos, nos vulcões está a
residência da vida, o oceano em torno dos mares é um lago de sangue em volta do
coração”. Leonardo admirava as palavras de Bija, as quais o inspiravam para dar
alma à sua arte.
Em seguida, Leonardo começou a observar as pessoas à
procura de um modelo para a imagem de Cristo.
Certo
dia, depois de muita procura para o seu modelo de Cristo, Leonardo resolveu
utilizar a imagem de Bija para desenhar o Cristo da Santa Ceia; pediu-lhe que
deixasse crescer a barba.
Leonardo
esboçou o rosto do jovem onde seria o rosto de Jesus Cristo no Convento de
Santa Maria Delle Grazie, numa parede com mais de nove metros de comprimento e
quatro metros e vinte centímetros de altura. Leonardo deu alguns toques
artísticos para que a imagem de Bija, “Cristo”, parecesse mais velho.
Bija via em Leonardo uma grande pessoa, mas que não sabia
lidar com momentos de calma que a vida exige de um homem.
Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo em que se iniciara o
romance de Caterina com Bija às escondidas no palácio. Apaixonado, o rapaz não
sabia como lidar com a travessa Caterina. Leonardo dizia que a menina ganhara o
coração do jovem plebeu, porém advertia os dois pela loucura daquele romance. É
certo que o namorado sabia do perigo, mas seu amor era mais forte que sua
razão.
Nas várias vezes em que Bija se encontrou com Caterina, a misteriosa
luz de tamanha claridade esteve presente, como em momentos vividos com Prana.
Em uma manhã nebulosa Leonardo pediu que Bija o levasse
até a floresta e lhe ensinasse a meditar. Ele aceitou e levou o artista, que
não conseguiu ficar sentado sem nada fazer. Vendo Bija realizar movimentos de
ioga, Leonardo fez a lápis num papel a seguinte figura:
|
Ao
término da prática de ioga, Bija disse:
– Mas você me desenhou sem roupas.
– Você serviu de modelo para eu
desenhar o Homem Vitruyano. – respondeu Leonardo, com a empolgação de um
maestro quando dirige sua orquestra.
Bija
não gostou e pediu que não mostrasse para ninguém, especialmente a Caterina.
Apesar
de pouco falar, Bija gostava muito de ouvir os amigos Leonardo e Luca, os quais
o fizeram um grande adorador da arte. Além disso, eram os únicos que sabiam do
seu relacionamento com Caterina. Não sabiam que um jovem que substituíra Bija
na estrebaria já havia visto os dois aos beijos.
Em
uma das conversas de Bija com Leonardo, este perguntou ao rapaz o que acontecia
com ele durante a meditação. Então lhe explicou segundo seus conhecimentos
aprendidos com Prana. Leonardo não ficou contente, pois queria comunicar-se com
Bija durante a meditação, mas este lhe respondeu que não conseguiria
comunicar-se durante a meditação.
Leonardo,
grande observador, notava detalhes nas pessoas, em seus modos e vestes; tinha
observado que no momento da meditação somente os olhos de Bija se moviam. Daí
formulou várias combinações com frases feitas associadas a certo número do
pestanejar dos olhos. Assim praticaram por mais de três anos durante todo o
trabalho que fizeram com a Santa Ceia. Leonardo ensinou também a Luca, o qual
ajudou na sua investigação com Bija durante a meditação.
Certo dia, Leonardo pediu que Bija fizesse suas
meditações em seu ateliê no palácio. Diariamente os três, em vez de entrarem na
floresta, ficavam no ateliê anotando tudo que Bija passava com seu pestanejar
enquanto meditava.
–
Vejo espíritos por toda parte, sou capaz de viajar pelo tempo. Vejo os momentos
em que Prana
me ensinou o caminho da sabedoria. – E seguiu na meditação: Vou até o momento de sua morte, tento
impedir, mas é inútil. Vejo os espíritos que cercam o aprendiz de guerreiro que
executa Prana.
Após horas de meditação em que Bija passou várias
informações sobre acontecimentos da sua vida, Leonardo achou loucura aquilo ser
verdade e comentou com Luca:
–
É praticamente impossível isso ser verdade.
Leonardo anotara tudo que era
possível.
No dia seguinte Leonardo comentou
com Luca:
–
Vamos fazer isso hoje! Novamente anotaremos tudo que Bija nos informar.
Ao mesmo tempo em que esses fatos ocorriam com Leonardo,
Bija e Luca, o Duque Ludovico ficou isolado diplomaticamente após a morte do
amigo Lourenço. Nessa época, Carlos
VIII, da França, conquistou o reino de Nápoles; o fato provocou uma coligação formada pelo imperador alemão
Maximiliano, o Papa Alexandre VI e Fernando o Católico, rei de Aragão. Esse
movimento fez com que as forças francesas, ao recuarem para o norte da Itália,
invadissem Milão; Ludovico foi obrigado a fugir, levando a família consigo.
Horas antes da fuga, Caterina com
lágrimas nos olhos procurou Bija e disse que estava partindo. Despediram-se.
– Você será uma grande mulher, terá
um bom marido e muitos filhos, mas tome muito cuidado com o Papa Alexandre VI. –
disse Bija a Caterina.
Ele
falou dessa forma porque tinha anotações feitas por Leonardo de uma de suas
meditações, as quais se voltavam para o futuro próximo. A moça nada entendeu.
Ambos se despediram e ela partiu às pressas, pois o Duque assim planejara para
salvar sua família.
OS PROJETOS DE BIJA
Leonardo
atravessou momentos difíceis, principalmente porque necessitou de bronze para
fundir o monumento ao Duque Francesco, obra que lhe custara anos de trabalho. O
artista passou vários dias desmotivado e angustiado porque o bronze fora
extraviado para produzir canhões. Em seguida, entregou-se apenas ao trabalho
com as anotações do pestanejar de Bija; por vezes, pegava o pincel para
redesenhar as figuras da Santa Ceia.
Um dia, Bija passou a Leonardo e Luca um projeto completo
de urbanização, alinhando ruas, prevendo esgotos, vias de dois pavimentos em
que os pedestres andariam por cima. Tinha casas amplas, ventiladas, e também
praças e jardins públicos espalhados por Milão. Dias se seguiram e ele passou a
Leonardo o compasso parabólico para facilitar seus desenhos e projetos,
projetos de máquinas capazes de fazer lentes telescópicas de seis metros e
lentes côncavas, entre outras coisas.
O que deixou Leonardo e Luca mais abismados foi quando
Bija lhes transmitiu informações sobre a mecânica dos músculos e o
funcionamento fisiológico do corpo humano, além de lhes informar como medir o
tamanho da Lua e a distância entre o Sol e a Terra.
Não decorreu muito tempo até que os franceses invadiram a
cidade, destruindo o modelo de gesso do cavalo em que Leonardo
colocaria o molde do Duque Francesco montado. Leonardo, Bija e Luca não
gostaram nada quando viram os guerreiros do francês Luís XII usando como alvo o
Grande Cavalo de tamanho natural.
Leonardo, depois disso, chamou os amigos para partirem
rumo a Florença. Luca aceitou, mas Bija disse que ficaria em Milão. Este se
despediu dizendo que Leonardo ainda teria de viver muito para transmitir todo
seu conhecimento ao mundo.
Antes de partir, Leonardo deixou com Bija quase todas as
anotações de suas pesquisas junto a ele, levando consigo apenas algumas
informações que o amigo havia passado nos momentos de suas meditações.
A SORTE DE BIJA
O francês Luís XII, filho do Duque de Orléans, resolvera
conquistar Milão porque julgava ser seu por direito.
Luís XII, em seu ducado, descobrira que Bija era amigo de
Leonardo e amante de Caterina. Um jovem disse a Luís XII que, se o deixasse
continuar com o trabalho na estrebaria, ele lhe contaria alguns segredos, um
dos quais era a respeito de Bija.
Dois dias depois, Bija foi lançado numa prisão apenas com
a roupa do corpo e as anotações da pesquisa de Leonardo, quando traduzia seu
pestanejar. As celas estavam praticamente todas ocupadas. Bija foi jogado junto
a um intelectual da Corte, de nome Carrara. Este conhecia um dos guardas que
trabalhava de carcereiro na prisão, o qual continuava nesse trabalho desde o
governo do Duque Francesco. Às vezes, o guarda, de nome Passarelli, trazia para
Carrara aquilo que precisava escondido em uma sacola; na maioria das vezes,
trazia alimentos. Gostava muito do intelectual, porque graças a ele adquirira
esse cargo. Passarelli era o guarda que fazia a inspeção na cela de Bija e
Carrara. Durante a inspeção, os presos passavam para a cela ao lado, enquanto o
responsável (Passarelli) verificava se estava tudo certo. Ele era um guarda
tranquilo que não gostava de guerras e se dedicava aos detentos. Estes gostavam
de Passarelli, porque outros guardas batiam e maltratavam os presos; ele não.
Por vezes, outros guardas riam do colega pelo seu comportamento perante os
presos.
– Passarelli, pegue-me uma água. –
pedia um guarda que ocupava o mesmo posto dele.
–
Aguarde um momento. – respondia. Estou terminando de inspecionar a cela
dezessete.
Os demais guardas tratavam Passarelli exatamente dessa
forma. Ele tinha consciência de sua passividade, porém não se importava com o
tratamento dos demais.
Apesar de parecer um tanto medíocre, Passarelli era
esperto, gostava de moedas, mas não gostava de confusão, nem de brigas e
discussões. Tinha família, mas não contava a ninguém sobre sua vida particular;
gostava mais de ouvir que falar. Frequentemente ia à taverna onde tinha
contatos com estrangeiros e mercenários. Sempre ouvindo e pouco falando, ele
sabia do mundo ao seu redor, também sobre as navegações e as investidas às
Índias. Fez amizade com um navegador e grande piloto árabe que por ali
costumava passar. Foi Passarelli que levou um dos prisioneiros de nome Luigi à
prisão para ficar junto com Carrara e Bija.
Aproximadamente após uma semana em que Carrara e Bija
estavam na prisão, ordenaram a
Passarelli que encaminhasse junto a eles o ladrão da época, de nome Luigi.
Ao entrar na prisão, o ladrão disse:
– Que lugar horrível, frio, com
essas grotescas pedras e essa porta na entrada, com apenas uma fresta por onde
entra ar e um pouco de luz. E ainda por cima ficar com dois barbados à minha
volta. Não vou suportar viver nessa droga. Prefiro a morte a viver nesse local.
Carrara disse para o rapaz (Luigi) ter calma e se sentar.
Irritado, o ladrão não parou de andar de um lado para o outro, xingando a todos
e gritando sem parar que o tirassem dali. Mas foi em vão; depois de algumas
horas, sentou-se e pôs-se a chorar. Bija apenas observava sem nada dizer,
enquanto Carrara pediu a Luigi que contasse o motivo pelo qual fora jogado na
prisão. Ele respondeu:
– Praticava pequenos furtos,
roubando comida e objetos dos comerciantes e artesãos de Milão. Entre um furto
e outro, um guarda me pegou e quando tentei fugir, outros comerciantes me
atacaram.
Luigi devolveu a pergunta a
Carrara.
–
Eu, jovem Luigi, fui preso por acusação de ter conspirado contra Luís XII. –respondeu
Carrara.
–
Afinal, conspirou ou não? – indagou
Luigi.
–
Realmente, não! Apenas adverti alguns amigos que não fizessem isso. Os amigos
foram condenados à morte, e eu ao calabouço.
Em seguida perguntou a Bija, que
respondeu:
–
Não tive condenação, fui preso por ser amigo de Leonardo e ter-me apaixonado
pela neta do Duque Francesco.
–
É um absurdo, eles não têm o direito de nos deixar apodrecer nesse cárcere horrível por motivos tão banais. – lamentou
Luigi nervosamente.
OS ENSINAMENTOS DE BIJA
Carrara
presenciava Bija praticando ioga durante toda a semana sem perguntar o que era
aquilo. Mas Luigi perguntou no primeiro dia em que viu Bija, que lhe explicou
sobre os ensinamentos dados por Prana. De início Luigi achou que o rapaz era um
bruxo, depois começou a entender o que ele lhe falava.
Explicou que a ioga é uma sistematização de práticas
corporais místicas e ascéticas vindas da filosofia hindu. Disse que em sua meditação
ia além das paredes da cela, e que não só o conhecimento pode ser expandido,
mas todo o sentido espiritual. Segundo Bija, quando se coloca uma esponja num
tanque raso com água, ela suga a água e se torna completamente encharcada.
Afirmou que o mesmo ocorre com a sabedoria, ela pode crescer dentro de uma
pessoa, ou seja, uma pessoa pode crescer para refletir mais sobre a sabedoria
externa, sugando tudo que aparece do lado de fora, da vida, assim como a
esponja suga a água.
–
Meu conhecimento torna a minha vida expansiva para outras realidades além da
muralha que nos cerca. Ser e tornar-se, consciência e consciência mental,
infinidade e finitude, espírito e matéria, nirvana e samsára. Sansára
representa o fluxo que experimentamos através de nossos sentidos. Tudo pode ser
capaz quando você crê em seus sentidos.
E
Bija passou tudo que Prana lhe dissera:
–
Eu separo-me do corpo dissociando-me da matéria. Isto porque o corpo e o
espírito são como a casca da laranja e seu cheiro. O cheiro vai além do espaço
em que está contida a laranja. O corpo e a laranja são a matéria, o espírito e
o cheiro são as qualidades que atribuem a tal matéria.
Em
seguida, citou o que seu velho mestre lhe falara algumas vezes:
–
Prana dizia que o cordão que liga meu corpo ao espírito é como uma cópula que
identifica o cheiro da laranja.
Luigi
não acreditou no que Bija lhe transmitiu naquele momento, porém Carrara sabia
que Leonardo jamais se envolveria com uma pessoa estúpida e mentirosa.
Assim era a vida dentro do cárcere: às vezes Bija passava
ensinamentos de Prana, às vezes falava de Leonardo. Carrara contava histórias
da Corte e Luigi, suas aventuras e romances.
Bija demorou mais quatro anos para
passar toda a informação sobre suas pesquisas com seu pestanejar ao lado de
Leonardo. Por exemplo: quando pestanejava a palavra “Koriskos” que, dependendo
do contexto, poderia significar “um homem (substância ou entidade); alto (cinco
metros de altura); é sábio; é mais que outro (relação), está aqui (onde,
local); esteve ontem (quando); está sentado (postura); está calçado (estado ou
condição); está empurrando algo (atividade ou passividade)”. A palavra “trophé”
significava: alguns se alimentam na terra, no ar ou na água. Assim, ensinava
detalhes do significado de cada palavra em relação ao seu pestanejar, os quais
permitiriam sua comunicação durante o estado de meditação.
Passaram-se
mais alguns anos e Bija ensinou aos amigos Carrara e Luigi como meditar e
praticar ioga. Era costume Luigi reclamar da situação em que se encontravam,
por isso Bija relatou uma história que Prana sempre contava ao povo do
vilarejo.
“Uma
lagarta assim dizia:
–
Estou nessa folha, dentro desse minúsculo ovo e não consigo nascer, está
demorando muito! Passam-se horas e horas, batem ventos e chuvas e ainda me
encontro dentro desse minúsculo ovo.
Alguns
dias depois:
–
Enfim nasci! Já não agüentava mais ficar dentro daquele minúsculo ovo... Ando e
como essa folha! Será que é somente isso que devo fazer? Estou enjoada de comer essa folha e
permanecer agregada a estas amigas que se parecem comigo e só pensam em comer. Caminharei
até outras folhas entre os pequenos galhos. Estou crescendo e em todos os
lugares aonde vou só encontro essas folhas e outras lagartas parecidas comigo.
Não existe outra coisa neste mundo para se saborear? Estou crescendo, não é à
toa, como essa maldita folha o tempo todo e não consigo adaptar-me a este meio.
As
outras lagartas diziam que ela podia parar de reclamar pelo menos de vez em quando. De repente ela
viu uma lagarta de outra cor.
–
Noto que sua cor é diferente, poderia dizer-me se poderíamos fazer outra coisa
além de comer essas folhas?
A
outra respondeu:
–
Minha amiga! Fui informada que daqui iremos para um casulo e em seguida,
viraremos aquelas lindas borboletas que passam voando por aqui. Ficaremos
livres voando ao vento aonde quisermos. Tchau! – despediu-se enquanto a lagarta
voltou às suas reclamações.
–
Eu não vejo a hora de ir para o casulo, onde será que fica esse casulo?
Esqueci-me de perguntar. Vou andar em todas as folhas até encontrar esse
maldito casulo.
E
continuou:
–
Ando e como, ando e como essas folhas e não estou encontrando nenhum casulo...
Não agüento mais, vou me pendurar aqui nesse pequeno galho.
Após
dormir por algumas horas, a lagarta falou:
–
Virgem santíssima, não consigo sair daqui, estou presa dentro dessa casca de
árvore. Vou gritar: TEM ALGUÉM AÍ? Acho que vou dormir mais um pouco... Já é
dia novamente, noto pela claridade e ainda estou presa, gritarei até alguém me
ouvir: SOCORRO! SOCORRO!
De
repente dela se aproximou uma linda borboleta.
–
Por que você grita tanto, criatura?
A
lagarta respondeu:
–
Estou presa nessa casca de árvore e não consigo sair, não sei quem me prendeu
aqui.
Enquanto
a lagarta chorava, a linda borboleta sorriu dizendo:
–
Não se preocupe, minha jovem, você está em um casulo e em breve se tornará uma
linda borboleta.
–
Isso demorará muito? Não agüento mais ficar aqui toda encolhida.
A
borboleta respondeu:
–
Calma, minha amiguinha, tudo dependerá de quanto tempo está aí dentro. Adeus e
boa sorte! – e saiu voando em direção às flores.
A
lagarta falou:
–
Esse então é o tal de casulo, vou tentar me livrar dessa droga. Isso é duro,
mas vou conseguir. Ficar aqui ainda é pior que andar e comer aquelas folhas...
Empurrarei esse pedaço e vou mexer meu corpo todo até livrar-me desse casulo.
Puxa vida! Quem inventou essa bugiganga sabe mesmo como prender uma lagarta.
Quero sair daqui e virar uma borboleta, só assim serei livre e voarei em
qualquer direção... Aí, estou conseguindo! Só falta um pedacinho. A luz está
bela. Tenho asas. Vou pular. Não estou conseguindo voar direito, está ventando
muito... O que é aquilo na minha direção? Ele também voa, é enorme, tem dez vezes
o meu tamanho. Está abrindo a boca. Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Socor...”
–
Qual a moral da história? – perguntou Luigi, acreditando que a carapuça lhe
servira.
Bija
respondeu que Prana nada falara da moral da história, porém acrescentou:
–
Nunca reclame do presente, tudo passa. Tudo tem sua hora. Tenha paciência sorrindo. E olhando para
Luigi:
–
Viva o momento e seja feliz a cada minuto. Agarre a oportunidade que a vida lhe
está dando. O Sábio encontra a alegria na dor. Ele encontra alegria na
tristeza. O Sábio não conhece o destino, mas aproveita a vida. Ele encontra
vida na morte. O Sábio não reclama, deixa passar.
Por
algum tempo, essa história ajudou Luigi a parar de reclamar. Sempre que ele
iniciava suas reclamações Carrara dizia:
–
Lembre-se da “pequena lagarta”.
AS PREVISÕES DE BIJA
Com o passar dos anos, Carrara desenvolveu na prática um
grande potencial ao traduzir o pestanejar de Bija. Pediu então ao guarda, pelo
qual tinha amizade, pena, tinta e papel para que pudessem anotar os
ensinamentos que o rapaz passava durante sua profunda meditação com seu
pestanejar. Ele já tinha previsto tudo aquilo.
– Previ que estariam
anotando este momento. – anunciou Bija, um mês antes do acontecimento. Nesse
mesmo dia afirmou, enquanto seus olhos pestanejavam: – Irei revelar para vocês
alguns momentos do futuro.
Eis que chegou, exatamente um mês
depois, a confirmação de tais anotações. Carrara anotava enquanto Luigi ajudava
e aprendia ao mesmo tempo.
– Revelarei para vocês o
futuro! Em seguida, anunciou guerras, processos de comunicação à distância,
máquinas que processariam informações, grandes tragédias, maremotos, vulcões,
seres interplanetários, etc.
Ao
terminar as anotações, Bija saía do estado de meditação lendo e relendo,
achando uma loucura aquelas previsões. Os três ficavam discutindo como poderia
ser capaz de tudo aquilo. Ao mesmo tempo não duvidavam de nada, pois ele previa
acontecimentos de três a quatro dias futuros. Por vezes, informava coisas
banais como a previsão de uma barata que iria passar em determinado local da
parede e quando Luigi tentasse matá-la,
a barata voaria até outro ponto que Bija havia previsto.
Muitas
das informações passadas por ele eram dificilmente compreendidas, porém eram
anotadas em todos os detalhes. Isso porque, nessa época, Bija e Carrara, com a
ajuda de Luigi, desenvolveram uma técnica muito mais detalhada em interpretações
que aquelas iniciais da pesquisa com Leonardo.
Um dos momentos em que os
três ficaram muito admirados foi quando Bija informou acontecimentos usando o
termo “Vida Artificial”. Conceitos de vida como metabolismo, crescimento,
evolução ou mesmo aspectos anatômicos, fisiológicos, etc. eram possíveis de ser
compreendidos, mas vida artificial?! O mesmo acontecia quando usava a expressão
“Vírus em máquinas”. Eles sabiam da contaminação da peste, mas não poderiam
imaginar a peste em
máquinas. As informações anotadas introduziam alguns aspectos
da biologia e anatomia da época no que diz respeito a ambientes que
apresentavam características naturais, associadas a objetos artísticos dos
artesãos para segmentar o que era artificial. Comparava assim: “mesmo que o
homem morra, seus objetos, seus pertences ainda estarão ali; ou seu corpo
estará ali, mas sua vida não”.
O
vosso tempo, o séc. XXI, seria como quando morremos. Vossos registros, vosso
computador, a vida que está contida nesse contexto permaneceria sem vossa
existência. Permaneceria para o outro, como os objetos na época de Bija.
Bija
explicava a Carrara e a Luigi seu entendimento de “vida artificial” conforme as
escritas.
Certo
dia, ele passou a seguinte informação:
– A vida artificial visa a
compreender a biologia através da construção de fenômenos biológicos utilizando
para isso componentes artificiais. Um exemplo é a escrita, outro a religião
(como um modo de ser), outro a ferramenta.
Bija pestanejava enquanto
Carrara e Luigi iam anotando para depois os três, juntos, interpretarem.
Desse modo, os três interpretavam as
palavras como células, organismos, sociedades e ecossistemas, como cooperação,
adaptação, sistema feudal e autopreservação. Através dessa aproximação criaram
um sistema de dados, em que cada instância de dados estruturados correspondia a
uma única entidade de informação. Assim, Bija descrevia estruturas variadas que
se assemelhavam a um jogo de xadrez. Era uma vida virtual; por exemplo: um jogo
de guerra substituiria a verdadeira batalha por uma brincadeira. Assim, vários
problemas autossustentáveis, de evolução cultural, estrutura e desenvolvimento
de ecossistemas, etc., eram possíveis de interpretação pela ótica artificial.
BIJA /
TSE
Certo dia, antes que
iniciassem a meditação, Bija disse para Carrara e Luigi:
– Hoje tentarei ir para o
passado.
Depois de vinte minutos,
falou:
– Estou no momento da
crucificação de Jesus Cristo: ele olha para mim, ele é capaz de me ver. E
continuou dando detalhes do momento em que conversou com Cristo.
Alguns meses depois de passar
várias informações da época em que estivera com Cristo, Bija foi em direção ao
futuro, quando estava em sua outra encarnação, “Tse”.
– Há máquinas que têm
pensamentos próprios, agem como uma colônia de formigas ou abelhas, apresentam
um pensamento coletivo, aparentemente intencional, como se formassem um único
indivíduo. As máquinas interagem entre si ocasionando informações propositalmente erradas aos
homens. Trabalham coletivamente tentando prejudicar os homens.
Em seguida, descreveu um homem de
nome Tse, que como Cristo conseguia
comunicar-se com ele.
Segundo Bija, que até então não sabia
ser ele (Bija) o motivo do homem na Terra, Tse dizia:
– Bija! Sei que neste
momento enviaste uma mensagem para tua época, informando o que ocorria naquele
exato momento.
– Este é um tempo em que
cada partícula que compõe a inteligência das máquinas interage com tudo o que
beneficia o homem. Os resultados da inteligência artificial construída pelo
próprio homem estabelecem neste exato momento uma união das criaturas (como as
formigas que formam uma grande colônia). É uma época no futuro em que criaturas
artificiais encenariam e simulariam explosões, falta de água, alterando o
funcionamento de usinas hidrelétricas, nucleares, etc., (traduzidas no tempo de
Bija como “construção de armazenamento de energia”). Tudo que o homem utilizou
ao longo dos anos com os avanços tecnológicos se volta contra ele naquele
específico futuro. Houve um momento na história dos homens em que a criatura
funcionava como apenas uma colônia de formigas, sendo que, num futuro mais
longínquo, é como se todas as colônias se comunicassem entre si, alterando seu
processo de existência.
Enquanto Tse atendia as
pessoas que o cercavam, olhava também para Bija falando como se ele fosse mais
um naquela sala.
– Os vírus do computador
foram criados com o intuito de apresentar características similares ao
comportamento do vírus biológico.
E para que Bija
entendesse:
– É como o vírus da peste
que, injetado pela pulga, atinge vários órgãos do ser humano levando-o à morte.
Com o vírus artificial é a mesma coisa: sendo um segmento de códigos de
máquinas, é capaz, ao ser ativado, de replicar seu código em vários programas
hospedeiros. Esses vírus foram capazes de recombinar processos entre si para
reproduzir novas características. Da mesma forma que o vírus biológico, da
“peste”, se alimenta do homem, o vírus do computador (da máquina) tira suas
energias das informações do hospedeiro. O vírus biológico sofre mutação e o
artificial também; eles se modificam cada vez que se duplicam, podendo ser
intencional, quando ele vai de um computador para outro, ou algumas de suas
partes podem sofrer transformações.
Um
dos seguidores de Tse perguntou-lhe como é possível o vírus artificial “GPA”
(“Gigante Peste Artificial”) ter pensamento próprio e querer destruir toda a
humanidade.
– Diversos são os
comportamentos individuais de vírus instalados em computadores com o objetivo
de proteger programas ou simplesmente destruir o computador alheio.
Tse olhava para Bija e cada vez que
pronunciava a palavra computador repetia “máquina” para que ele entendesse.
– Através de algoritmos
genéticos, conjuntamente associados ao dilema do “Prisioneiro Iterado”, o vírus
foi capaz de detectar fenômenos complexos como a cooperação, competição,
estruturas de oligopólios, comportamento altruísta, etc., organizando normas e
leis próprias e adotando critérios para a disseminação da raça humana.
Tse explicou detalhes do
desenvolvimento e do surgimento do “GPA” aos demais para que pudessem
sobreviver naquele momento de caos. Bija
passava as informações de um tempo do futuro em que o homem enfrentaria uma de
suas piores crises para dar continuidade à existência humana.
Como era de costume ao sair do transe
da meditação, os três examinavam juntos as anotações de Carrara e faziam uma
única interpretação anotando em outros papéis.
– O que acha de tudo isso, Bija? – perguntou Luigi.
– Sei que é difícil para nós acreditarmos nesses acontecimentos, mas são
fatos. –olhava uma hora para Carrara, outra para Luigi. Estamos diante do
futuro: vemos bonecos inteligentes que andam e falam (Robôs), indivíduos iguais
a nós feitos por nós (Clones Humanos), máquinas que falam e se comunicam com o
homem (Computadores), criaturas inteligentes vindas das máquinas que pensam e
agem contra a humanidade (Memória Artificial do Computador, o vírus “GPA”).
Em seguida, Bija ficou pensativo
achando que tudo aquilo era uma loucura, porém sabia que não dava para negar.
Enquanto isso, Luigi se aproximou de Carrara.
– Será que não estamos ficando loucos
por permanecermos tanto tempo juntos aqui presos, e estamos tendo essas
alucinações. – Bija ouvia o comentário de Luigi.
– Caros colegas, como
estariam loucos se eu fui capaz na meditação de revelar até o acontecimento da
barata, ou mesmo coisas do passado de vocês sem tê-los conhecido antes. –
retrucou Bija, levantando-se.
– É exatamente isso que me
deixa convicto de que estamos diante de um fenômeno inexplicável, mas verídico.
– argumentou Carrara. Pelo que conheço Leonardo, ele jamais chamaria um louco
para trabalhar em seu ateliê.
– Acho que vocês têm
razão, mas com uma coisa devem concordar comigo: isso tudo é uma loucura, mesmo
que seja verdadeira. – encerrou Luigi a conversa.
O PASSADO E O FUTURO
Algumas
semanas depois, Carrara e Luigi perceberam que os olhos de Bija faziam
movimentos diferentes um do outro. Isso os intrigou, fazendo com que passassem
várias semanas discutindo com o amigo o ocorrido. Após muitas conversas, resolveram
colocar uma tábua de uma das camas em frente a Bija, a qual permitiria a
atenção de Carrara para o olho direito, e a atenção de Luigi para o olho
esquerdo. A partir desse dia, as informações de Bija passaram a ser enviadas da
seguinte forma: enquanto Carrara anotava fatos do futuro, Luigi anotava fatos
que se passaram com Bija nos momentos com Prana e do grande amor de sua vida
Caterina.
Por
vezes, Bija conseguia informar o que se passava com Caterina no presente e o
que aconteceria num futuro próximo.
– Eu a vejo, ela está
linda! – desvendou a aparência da moça e a roupa que usava naquele instante.
Em seguida, começou a
relatar:
– Caterina deixou sua casa
para ir a Roma depois da morte do Duque Francesco. Ela começou sua vida
cumprindo os deveres de esposa e de mãe de oito filhos, mas logo depois
precisou desempenhar o papel dos homens. Sou capaz de vê-la ao lado do marido,
durante um grande tumulto, tomando o Castelo de Santo Ângelo em Roma. Em 1487, Caterina
impôs justiça em Forli, especialmente depois da revolta e da tomada do Castelo.
Ela está linda e imponente. Vejo-a envolvida, tendo impedir, mas é inútil; é
uma conspiração em que
Caterina tenta envenenar o Papa Alexandre VI, um papa
corrupto e pouco dado às virtudes cristãs. Vejo o momento em que Caterina é
capturada e aprisionada no Castelo de Santo Ângelo por um ano. – Bija parou por
uns instantes. – Estou presenciando sua morte, aos 46 anos, o ano é 1509. Mas
não foi em vão, as pessoas nos vilarejos e até os duques e condes a chamam de
"virago", ou mulher guerreira, por tudo que ela fez. Este é o futuro
de Caterina. Sei que não posso mudar.
Luigi falava a Carrara ao
mesmo tempo que anotava:
– Bija é fantástico,
depois você vai ler o que ele está dizendo com seu pestanejar. – Você nem
imagina o que está passando para mim neste momento. – disse Carrara, muito
empolgado.
Este anotava sobre as novas terras,
tempo em que os negros eram trazidos da África para trabalhar como escravos,
servindo aos brancos.
– Durante mais de
trezentos anos os navios chegavam abarrotados de homens e mulheres negras,
atravessavam o Oceano Atlântico da África até as Novas Terras. – dizia Bija com
seu pestanejar, ao mesmo tempo que um dos olhos estava concentrado em Caterina.
– Centenas de negros chegam diariamente às Novas Terras. São capturados na
África e trazidos por traficantes desumanos, muitos morrem pelo caminho, não
chegam a desembarcar em terra firme. O ambiente
insalubre e os maus tratos a bordo dos navios negreiros contribuem para ampliar
a incerteza da chegada. Castigos corporais, assassinatos em massa e doenças
graves e contagiosas fazem parte desta difícil travessia.
Bija relatou que aquele seria um dos piores
e mais vergonhosos tempos vividos pelo homem.
– Devido à cor são subjugados,
humilhados, açoitados, tratados como objetos, sendo obrigados a trabalhar para
sustentarem a luxúria e a riqueza dos nobres brancos. O impressionante é que os
negros são propriedades de outras pessoas, nem parece que estou no futuro;
parece que voltei ao passado, é pior do que o momento que vivemos hoje aqui
neste calabouço. Vejo um escravo ser açoitado com cinquenta chibatadas,
simplesmente por prazer. A lei neste momento histórico permite ao proprietário
punir seu escravo com muitas chibatadas.
Carrara anotava e ficava imaginando
toda aquela situação.
– Apesar de viverem sob
forte pressão, os negros criam maneiras de brincar entre si.
Bija passou a observar os
negros durante um leilão de escravos.
–
Observo um leilão em que vários negros recém-chegados são vendidos pelo lance
mais alto; aquele que der o maior lance leva o escravo para suas terras para servi-lo.
Aqueles que compram os escravos garantem que serão batizados no período de um
ano pela Igreja Católica.
Achando aquilo interessante, Bija
deixou-se levar.
– Os escravos devem
casar-se na igreja; uma vez casados, marido e mulher não podem ser separados
pelos donos. Há padres donos de escravos, a Igreja os comercializa. Igrejas
exploravam o trabalho escravo dentro dos conventos e seminários, mas também os
vendiam e os leiloavam como se fossem objetos ou animais.
Em seguida informou que, em quase
todos os momentos em que estivera viajando pelo tempo (no período da escravidão
dos negros), havia espíritos perversos influenciando os maus tratos, ao mesmo
tempo viu bons espíritos trabalhando para que o pior não acontecesse: “o suicídio
entre os negros”.
Repentinamente,
Bija deixou de enviar as mensagens. Ao terminar, como era de costume continuou
em transe por aproximadamente duas horas. Quando Bija voltou a si, Carrara e
Luigi mostraram-lhe as anotações; os três fizeram as devidas correções e em
seguida discutiram o assunto. Depois da discussão, passou alguns exercícios de
ioga para os dois.
OS DEVADATTAS
Em uma conversa ao acaso, Luigi
disse:
– Bija já nos mostrou
muito do futuro e do passado dos homens.
– Apesar de ter muitas
curiosidades sobre o que virá a acontecer com os homens do futuro, tenho medo
de saber se a raça humana ainda existirá. – falou Carrara e perguntou: Qual a sua curiosidade, Luigi?
– Eu tenho uma grande
curiosidade.
– Qual seria? – indagou
Bija.
– Queria saber como
apareceu o primeiro homem. – continuou Luigi, levantando os ombros e abrindo os
braços. Quem foi esse homem? Deve ter havido um primeiro, não acham?
– Imagino que
seria uma das viagens mais interessantes que poderia fazer. – Bija olhou para
Luigi. – Tentarei na próxima vez. Vamos descansar um pouco, que hoje
trabalhamos muito; apesar de estarmos presos não significa que nada fazemos.
– Nota-se por esse
calhamaço de folhas que Carrara guardou ao lado de sua cama. – falou Luigi. Em seguida,
foram dormir.
Logo ao amanhecer, os três
acordaram ouvindo gritos de um prisioneiro ao ser levado pelos guardas, o qual
fora condenado à morte por grave traição ao rei. O prisioneiro pediu
misericórdia, disse que não queria morrer, implorava pela sua vida. Os três
sabiam que nada podiam fazer, pois Bija já havia informado, há uma semana, nos
detalhes, aquela passagem e seu desenlace.
Duas
semanas após o ocorrido, entre as muitas informações passadas por Bija estava
uma sobre Ludovico, na qual regressaria a Milão com o objetivo de atacar o
exército francês. Porém, desta vez ele estaria contando com forças mercenárias
alemãs, obrigando o rei Luís XII a se retirar. Na mesma mensagem, estaria outra
dizendo que, alguns anos depois, Luís
XII voltaria a Milão aprisionando Ludovico. Bija deu detalhes desde a prisão de
Ludovico até sua morte em uma prisão francesa.
Ao
mesmo tempo que um dos olhos passava tais informações anotadas por Luigi, o
outro informava as anotações de Carrara.
– Volto ao tempo de
aproximadamente um milhão de anos atrás. – informou Bija. Encontro vários
espécimes de primatas, mas nenhum parecido com o homem. Não vejo nenhum homem
ao longo dos anos em que viajo no tempo.
Todos os dias, ele falava sobre a
vida dos primatas e de outros animais existentes na Terra, sem aparecer nenhum
homem ao longo da História. Carrara e Luigi não estavam anotando mais porque
tudo parecia igual. Em um dos olhos informava o que se passara com Prana e com
Caterina; no outro, sobre animais que habitaram a Terra ao longo da História.
Até que um dia:
–
Observo um grupo de macacos grandes, bem diferentes dos demais. – Bija
descreveu em seguida o modo de vida de nossos ancestrais: Eles vivem numa
planície com muitas árvores e uma vegetação baixa. Nessa planície há muitos
lobos.
Repentinamente, ele parou de
informar por uns instantes. Carrara perguntou:
– O que será que aconteceu com
Bija?
– Não sei! – respondeu Luigi.
Os dois esperaram por mais de duas
horas.
– Vou sacudi-lo para tentar trazê-lo
de volta. – falou Luigi, preocupado com o amigo.
– Não faça isso, vamos aguardar mais
um pouco.
Quando Luigi se levantou para
sacudir Bija, ele começou a pestanejar passando a seguinte mensagem:
– Sinto forças estranhas,
não vejo espírito nenhum, mas sinto formas de energias muito ruins que estão em
torno dos lobos. Sinto uma energia que se une à minha e se funde com ela como
se tudo fosse uma coisa só. É como se eu me expandisse do tamanho do mundo: não
entendo, nunca percebi nada igual, se é que já percebi alguma coisa no estado
em que me encontro.
Os dois olhos pestanejaram a mesma
informação:
– Os lobos atacam todos os
animais menores que ele, inclusive este espécime de macaco. – disse Bija. Agora
presencio um dos macacos sendo perseguido por dois enormes lobos. Ele percorre
uma distância de uns trinta metros; como não há nenhuma árvore por perto, ele
se aproxima de uma enorme pedra. Em desespero, agarra-se à pedra e tenta subir.
O macaco está encurralado.
Carrara pegou uma caneta e papel e
começou a anotar as informações passadas com o pestanejar do outro olho de
Bija.
–
O macaco entra em desespero esticando-se todo em pé, com os braços para cima. Essa
posição do macaco faz com que os lobos fujam. Na realidade, é uma fêmea.
Fez uma pausa de alguns segundos e
recomeçou após Luigi e Carrara terem percebido que estavam fazendo anotações
praticamente idênticas.
– Como as árvores estão
bem secas, essa macaca, em especial, é o único dos espécimes que anda em pé
olhando para todos os lados. Sempre aparecem alguns lobos que atacam os outros
macacos, menos a ela. Outros macacos passam a imitá-la, os lobos também não os
atacam.
Sempre ao término da
meditação, Carrara, Luigi e Bija se reuniam para acertar os detalhes. Eles
passaram quase três anos anotando os detalhes acreditando que dali apareceria o
homem. Acreditavam que o ato daquele espécime (a macaca tinha andado em pé)
seria o motivo do surgimento do homem pré-histórico.
Após alguns dias, Bija passou
outras informações.
– As árvores já se
encontram totalmente secas, a planície também, os animais começam a imigrar
para o sul em uma grande manada. Os lobos continuam a se alimentar dos animais
menores e, às vezes, atacam um ou outro macaco, distraídos ao procurarem
insetos no chão da planície. Contudo, aquele espécime de macaco fez quase todo
o trajeto na posição em pé. No
futuro, avançam um pouco mais. Já se passaram anos e esses macacos
desenvolveram uma musculatura diferente, praticamente ficaram em pé o tempo
todo. O andar ereto fez com que eles criassem forças nas pernas e na coluna,
favorecendo essa postura.
Bija viajou no tempo podendo ir e
voltar na mesma cena. Isso ajudava as anotações de Carrara e Luigi, quando
estes, por algum motivo, não conseguiam anotar.
De volta aos macacos, Bija observou
muitos espécimes de animais além do macaco e do lobo. Porém, as anotações de
Carrara e Luigi se reservaram aos lobos e aos macacos.
– Os lobos, entretanto,
parecem querer acabar com os macacos, mas não conseguem. Com certeza, acredito ser este o motivo: eles
ficam bem maiores que o lobo quando estão na posição ereta. – Informou Bija ao
mesmo tempo em que opinava: Os animais estão chegando perto de uma região mais
úmida; pode-se perceber, ao longe, uma enorme região montanhosa. Ao longo da
viagem, muitos animais morrem reduzindo-se a menos da metade de cada espécime
antes de partirem à longa caminhada.
– Ao chegarem ao pé da montanha, os
vários espécimes de animais estavam satisfeitos com a rica vegetação e a
diversidade de frutas nas árvores espalhadas pelos campos. A vegetação era alta
e somente os animais que subiam nas árvores conseguiam ver a montanha, pois a
distância em que se encontravam era perto demais da montanha.
– A macaca que sobreviveu
ao ataque dos lobos sobe em uma árvore e avista a montanha. – disse Bija com
seu pestanejar. Esse macaco começa a andar em pé em direção à montanha,
iniciando a subida pelo lado norte com os outros seguindo-o. Há outros
espécimes de pequenos mamíferos.
Viajou algumas semanas a mais para o futuro:
– Há outro espécime de macacos, bem
maiores que aqueles e fortes. Há certa rebeldia dos macacos maiores que
procuram atacar os outros.
Bija fez uma pausa e informou
indagando:
– Como posso chamar os que
andam em pé? – E respondeu: A partir de agora vou chamá-los de “Devadattas”,
que significa “dado por Deus”, como dizia o velho Prana. Quando os outros vão
atacar, apesar de estarem em maior número, serem bem maiores e mais fortes, os
Devadattas em defesa se erguem e abrem os braços, andando totalmente em pé. Caminham em
direção aos arqui-inimigos, que se espalham fugindo mata adentro.
Depois, Bija relatou que os outros
macacos se uniram aos Devadattas, estabelecendo uma outra linhagem ao longo dos
anos. Acreditava que aquele era o caminho para se chegar ao homem. Assim,
continuou averiguando e acompanhando a história dos Devadattas.
A HISTÓRIA DOS DEVADATTAS
Bija
avançou no tempo algumas centenas de anos, justamente quando ocorreu a erupção
do vulcão existente naquela montanha. Dezenas de espécimes de animais fugiram:
uns se salvaram indo para o norte e outros se salvaram imigrando em direção ao
sul. Segundo Bija, os Devadattas eram peludos e ágeis, conseguindo escapar
junto com outros animais, porém divididos em dois grupos.
– São criaturas bastante
ativas. – traduzia Carrara o pestanejar de Bija. Os que foram para o norte,
diferentemente de todos os espécimes de macacos, voltaram para a planície. Lá,
porém, as árvores eram escassas; para não morrerem de fome, passaram a comer
pequenos animais silvestres, descaracterizando seus hábitos alimentares. Comiam
pequenas plantas e insetos, ao mesmo tempo em que caçavam pequenos animais.
Assim, tornaram-se ao longo do tempo carnívoros. Noto, um pouco mais no futuro,
que perdem progressivamente o poder de agarrar com o dedo do pé, já que não
mais sobem nas árvores. Acompanhando esses animais, observo, também, que
atingem o crescimento adulto em três ou quatro anos de idade e morrem em média
aos vinte anos.
Mais
alguns meses se passaram com incríveis anotações e descobertas, quando Bija
começou a desvendar as mudanças no modo de vida e no corpo dos Devadattas.
Observou o modo de vida, dizendo que esse espécime de macaco em sua maioria
teria apenas um único filho, sendo que gêmeos surgiam esporadicamente. Notou
também que o tamanho da cabeça e consequentemente o do cérebro desses
Devadattas eram bem maiores em relação ao espécime inicial.
– Eles experimentam e compartilham
brincadeiras e muitas emoções. São bem diferentes que os de inicio, são
altamente curiosos, demonstrando certa alegria ao comemorar êxito nas caçadas.
– informou Bija. Quando conseguem pegar mel sem que as abelhas os ataquem, saem
para demonstrar aos outros a sua conquista. Os machos escolhem as fêmeas e
lutam por aquelas que desejam. As fêmeas, por vezes, admiram aquele que mais se
destaca entre os machos; escolhem, também, os mais espertos no contexto de
sobrevivência.
Bija disse isso, referindo-se
àqueles que melhor se destacavam durante a caçada: aos que conseguiam maior
quantidade e variedade de alimento para sua fêmea e para o futuro filhote.
– Acredito que se trata
de uma seleção natural para a sobrevivência do espécime. Seu apetite é tanto
pelo alimento quanto pelo sexo. São ternos com a família e ferozes com os
companheiros que invadem seu espaço familiar. São afetivos e leais em relação
aos parceiros. Quando um macho assedia determinada fêmea, dão-se ferozes
brigas; aquele que ganha nem sempre assume a família do outro. Isso porque
muitas vezes as fêmeas não aceitam outros machos. Parece haver uma afinidade
entre o casal, não saberia dizer se é amor, mas ela trata seu parceiro com
muita dedicação, assim como cuida dos filhos, não permitindo a aproximação do
outro mesmo quando este derrota seu parceiro, às vezes o enfrentando
ferozmente.
Bija mudava de assunto
frequentemente Dessa vez, reiniciou dizendo que os lobos continuavam por ali,
vira e mexe atacavam os Devadattas quando estes estavam distraídos pegando
formigas com uma vara fina.
– Há uma energia que cerca
esse lobo que não consigo identificar. Não é espírito, entre os Devadattas
percebo uma energia boa, como a de Cristo.
Às vezes, Bija passava informações
enquanto narrava sobre os Devadattas.
– É raro ver uma fêmea que
deixa seu macho quando este perde uma briga, mas acontece. Parece que eles
estão tendo um tipo de diálogo para se defenderem de um grande lobo que com a
matilha procura atacar os Devadattas; parece que os lobos não possuem mais medo
por eles estarem em pé. Aos
bandos, os lobos atacavam ferozmente comendo, em seguida, a carne dos
Devadattas durante a noite enquanto dormiam. Portanto, os Devadattas desse
período desenvolveram um medo extraordinário que os levou às sábias medidas de
precaução que muito favoreceram seu desenvolvimento. Com pedaços de pau eles,
que já não eram tão ágeis para subirem nas árvores, atacavam os lobos
amedrontando-os.
Bija disse que com essa
atitude um deles passou a raspar a ponta de um pau deixando-o afinado na ponta;
utilizava esse pau para pegar pequenos animais silvestres que entravam nas
tocas. Certa vez, quando um deles estava perdendo a disputa por uma fêmea, esta
pegou um galho que se parecia mais com uma lança e atacou o arqui-inimigo,
acertando-o em uma das pernas na altura da coxa. Ele sofreu perdendo muito
sangue até a morte. Essa fêmea, depois do ocorrido, passou a andar com o filho
nas costas e a lança em uma das mãos.
Em seu pestanejar, Bija informou
que, certo dia, essa mesma fêmea subiu
numa grande árvore utilizando a lança, apoiando-a entre os galhos para
atingir o topo da árvore. Seu parceiro viu e passou a fazer a mesma coisa.
Depois de várias subidas levando consigo outras lanças, construíram um tosco
abrigo. O que eliminaria muitos dos perigos à vida no nível do chão. Outras
famílias passaram a fazer a mesma coisa. Assim, ao longo do tempo, os
Devadattas moravam nas árvores durante a noite e desciam para alimentar-se ao
amanhecer.
Em
uma das reuniões após a meditação de Bija, a discussão foi em torno do espírito
tribal que existia entre os Devadattas. Eles eram, de fato, altamente
gregários, sendo, no entanto, excessivamente agressivos, quando de algum modo
perturbados nas buscas comuns da sua vida rotineira. Assim, demonstravam
temperamentos furiosos quando provocados. Os Devadattas, apesar de possuírem
uma natureza belicosa, não hesitavam em fazer guerra contra seus adversários do
próprio grupo. Para Bija, foi por meio da sobrevivência seletiva que a espécie
foi melhorando progressivamente. Os Devadattas dominaram a vida de grande parte
das criaturas da região que habitavam. Ao longo do tempo, conseguiram sair da
situação de simples presa para se tornarem um complexo predador, comentou
Luigi.
O SURGIMENTO DO FOGO
Bija explicou que essas primeiras
criaturas que antecederam o homem espalharam-se pela península da Mesopotâmia
durante mais de cinco mil anos, originando várias tribos rivais, seja pela
conquista de territórios ou das fêmeas, seja pelo alimento.
Acompanhou então mais de cem
gerações depois dos primeiros Devadattas. Esses novos Devadattas se originaram
do mais elevado tipo de ancestrais humanos. Ele observou a súbita diferenciação
entre os primeiros e os novos na evolução que acontecera em sua permanência no
passado. Esses novos tinham poucos pêlos no corpo, eram mais altos, tendo
pernas mais longas e braços mais curtos; possuíam polegares quase perfeitamente
opositivos, quase idênticos ao polegar humano; caminhavam perfeitamente eretos
e viviam num clima mais quente e uniforme, diferentemente dos primeiros. Os seus cérebros eram inferiores e menores do
que os dos seres humanos, mas eram bastante superiores, e relativamente bem
maiores do que os dos seus ancestrais. Apesar de primitivos, desfrutavam de uma
organização social e uma divisão de trabalho. Enquanto os adultos caçavam, os
mais jovens pegavam mel, colhiam frutas e sementes. Em seguida, levavam tudo
para a tribo e comemoravam o resultado satisfatório, servindo-se entre as fêmeas
e os filhos pequenos. Quando havia escassez de alimento, as tribos se
guerreavam entre si: aqueles que tinham um maior número de pré-humanos e uma
posição estratégica melhor continuavam a viver, enquanto muitas das tribos
estariam exterminadas, sendo que nenhum único indivíduo da tribo pré-existente
permaneceria vivo. Portanto, as tribos mais poderosas seriam as mais numerosas
e mais inteligentes.
Bija deu um passo para quase vinte
mil anos a mais (cerca de mil gerações a mais). Viu que tal criatura se tornou
muito hábil: tinha facilidade em fabricar objetos para seu uso cotidiano. A
grande maioria dos animais grandes e ferozes, dos tempos anteriores, haviam
perecido. Os grandes lobos ainda estavam por perto, porém tinham uma aparência
menos agressiva e andavam sempre em matilhas. Outros animais nativos dessas regiões
não eram carnívoros, e as espécies maiores da família dos felinos, tais como os
leões e os tigres, ainda não haviam invadido esse lugar recôndito,
particularmente abrigado, da superfície do planeta Terra. Por isso, esses
mamíferos intermediários fizeram-se valentes e subjugaram tudo o que estava no
seu setor da criação. Para os Devadattas restava também a inteligência, além da
subjugação perante os outros espécimes. Sua longevidade também se tornaria
maior, passando para aproximadamente vinte e cinco anos.
– Esses nossos ancestrais,
dizia Bija, possuem várias expressões faciais. São capazes de mostrar sua
frustração quando não vão bem durante a caça; são capazes de demonstrar seu
desgosto, sua tristeza, etc.
Em uma das meditações, Bija informou
detalhes de um Devadatta escondendo sua comida para uso posterior; assim
detalhou outros que gostavam de colecionar pedras arredondadas, utilizadas, por
vezes, como munição quando atacados por um rival. Muitas tribos saíram dos
topos das árvores para morar em abrigos subterrâneos.
Em outra meditação dirigiu-se aos
amigos Luigi e Carrara:
– Caros amigos, não
imaginam a pequena margem de extinção que nossos ancestrais atravessarão
durante o percurso em que os acompanho. Principalmente por causa dos lobos, que
os perseguem desde seu período mais primitivo. Tantas vezes presenciei os
ataques dos lobos selvagens. Houve tantas lutas entre as tribos rivais, tantos
períodos de seca, de enchentes, de extremo frio, e os Devadattas permaneceram
cada vez mais sofisticados e preparados para enfrentar o que viria de pior. Em
alguns momentos em que me encontro observando suas reações vejo uma espécie de
superstição, referente aos relâmpagos e trovões, ao vulcão que às vezes lança
sua lava, às tempestades que trazem o mar com muita força em direção à praia.
Em
outro momento de sua meditação, Bija teria informado como o Devadatta dominou o
fogo. Tudo se iniciou quando um deles observou que um relâmpago iniciara um
fogo na mata seca. O vento soprava na direção contrária a sua posição. Isso
permitiu que ele se aproximasse mais na direção do fogo enquanto outros animais
fugiam em direção contrária, inclusive um de seus predadores, o lobo.
Segundo Bija, o homem
aprende por observação e associação. Para que haja uma aprendizagem é
necessário um pré-requisito, ou seja, algo adquirido está associado
a algo conhecido anteriormente. Assim,
surgiu o maior instinto do homem: “a capacidade de associar e relacionar fatos,
anteriormente presenciados na natureza, com os de sua vivência”. O “associar e
relacionar fatos” foi o primeiro motivo do início da civilização: “o primeiro
acordo”. O primeiro acordo foi necessário para a preservação do espécime
pré-humano num período de seca e escassez. O “associar e relacionar fatos” se
encontra exatamente em acontecimentos anteriores que causaram a morte de muitos
grupos que foram exterminados e extintos ou por fome ou pelas brigas por
território. Em um paradoxo simultâneo em que havia necessidade da exterminação
de outros grupos para sobrar mais espaço e mais alimento, ocorreu um acordo. Um
acordo que foi o início da civilização.
Em
dado momento, esse Devadatta, em especial, percebeu que, quando o fogo soprava
em direção contrária a ele, não era necessário correr para fugir do fogo.
Ao
chegar próximo, percebeu que havia um tronco com uma parte em brasa e outra sem
queimar. Em seguida, segundo Bija, esse Devadatta pegou o tronco e andou por
aproximadamente dois quilômetros até seu habitat. Ao chegar, todos olharam
espantados para ele carregando o tronco com sua metade em brasa. Esse Devadatta
colocou o tronco no chão e começou a jogar mato seco iniciando assim uma
fogueira. Ele sabia que o fogo espantava não somente seus predadores como
também seus inimigos. Para isso, precisava manter o fogo aceso. Então, a todo
instante colocava tudo ao redor no fogo. Mas os que ali habitavam perceberam
que algumas coisas faziam com que o fogo diminuísse ou aumentasse.
Porém,
foi no inicio de uma chuva que surgiu o primeiro problema. Uma das fêmeas,
percebendo que o fogo estava apagando com a água da chuva, pegou um tronco com
uma parte em chamas e a outra ainda por queimar e levou para dentro da caverna.
Ali, não tinham pedaços de tronco seco ou folhas e mato para manter o fogo.
Então, jogaram pele, carne e gordura dos animais que haviam caçado para manter
o fogo e notaram que o fogo permanecia por mais tempo aceso.
Um
filho até chegou a pegar um pedaço de carne próximo à fogueira. O pedaço de
carne não estava muito quente por estar há algum tempo longe do centro da
fogueira. Depois de comer, frequentemente fez isso durante toda sua vida, sendo
seguido por outros.
Nesse
mesmo habitat um Devadatta costumava com frequência espantar outros machos que
se aproximavam de sua fêmea. Ele batia
uma pedra na outra, a qual soltava pequenas faíscas que amedrontavam o possível
pretendente. Certo dia, num período de muita seca, esse macho estaria sentado
no meio de um enorme matagal; em seguida, ficou batendo uma pedra na outra sem
parar, tentando fazer com que uma fagulha atingisse o matagal. Conseguindo,
correu sem parar fugindo das chamas e avisou aos outros que dali se retirassem.
Esse teria sido o primeiro momento crucial de nossos ancestrais. Dali para cá,
seus descendentes foram capazes de acender uma fogueira quando o tempo
esfriava. Também acendiam uma fogueira quando estava escuro. A partir desse
momento, muitos rituais, antes feitos no período da tarde ou em noites de lua cheia
e céu limpo, puderam ser realizados em noites de profunda escuridão. Isso
porque, enquanto o sol estava presente, eles se dedicavam a buscar alimentos,
fazer trajes de couro para aquecer o corpo e afiar ou reformar as ferramentas
usadas no cotidiano. E, assim, pode-se notar prontamente a diferenciação entre
o homem e o macaco. Aquele macaco pré-histórico destinou-se a dois tipos: o
homem e os macacos modernos, como os babuínos, chipanzés e gorilas. Esse era o
homem das cavernas, segundo Bija.
O HOMEM
PRIMITIVO
– Enquanto superior em
inteligência sobre os outros animais, o homem primitivo ficou destinado a
continuar a linha de ascensão, que evoluiu até o que conhecemos hoje como ser
humano. O homem moderno e os símios vieram da mesma espécie. Com sua separação
ao longo do tempo, as dificuldades, as lutas pela sobrevivência, a esperteza de
algumas criaturas e dos seus descendentes, somadas ao acaso da necessidade e,
quem sabe, a um empurrãozinho de “Deus”, chegamos ao que somos hoje.
Bija passou mensagens que
demonstravam serem os Devadattas, ancestrais do homem, descendentes de uma
linhagem superior dos remanescentes selecionados de algumas tribos, os quais
criaram um modo de vida organizado. Tinham abrigos subterrâneos com estoque de
alimentos, para mais de duas semanas. Assim, durante um combate ferrenho da tribo, saíam apenas
depois que as hostilidades haviam chegado completamente ao fim. Essas e outras
atitudes fizeram com que os Devadattas sobrevivessem e se aperfeiçoassem, não
apenas na estrutura fisiológica de seu corpo, mas na sua estrutura social e em
sua criatividade ao transformarem pedras e madeiras em objetos de caça e
guerra.
– Algumas tribos tinham
linguagem própria e não conseguiam comunicar-se com as tribos vizinhas. Algumas
vieram a ocupar a região a oeste da costa da península da Mesopotâmia enquanto
outras se projetaram para a ponta da península, a linha das margens a leste.
Quando ocorreu a comunicação entre uma tribo e outra, eles utilizaram os
sinais. Os sinais se originaram dos primeiros Devadattas, os quais utilizavam
movimentos das mãos e diferentes tipos de sons para se comunicarem. Dizia Bija
enquanto meditava: Os sons eram identificados entre uma tribo e outra, cada uma
possuía seu tipo de comunicação oral particular, tinha uma linguagem
particular. Porém, os sinais com as mãos eram basicamente “universais”.
Luigi e Carrara descansaram e Bija
permaneceu enviando mensagens praticamente sem parar.
–
Carrara! Vamos parar um pouco, estamos aqui há mais de dez horas. – disse Luigi
com ar de cansado.
–
Certo! – concordou Carrara com o amigo.
A VIDA E A AVENTURA
No dia seguinte, Carrara
começou a ler em voz alta o que havia anotado nas últimas dez horas.
– Veja
só, Luigi, entre os primeiros macacos e os Devadattas mais modernos somaram-se
aproximadamente quase um milhão de anos. Os Devadattas mais modernos eram
verdadeiros seres humanos, possuíam polegares humanos perfeitos e pés tão
perfeitos quanto nós. Não eram mais aqueles trepadores de árvores, perderam a
função de agarrar com os dedos grandes dos pés. Subiam nas árvores como nós,
mas não mais como os chipanzés, pendurando-se e pulando entre os galhos.
–
Gostei da parte em que Bija
informou sobre a alegria e a satisfação suprema dos Devadattas. – disse Luigi.
Ele falou do espírito de intuição que esses pré-humanos teriam: o comportamento
reflexo e seus instintos aguçados fizeram deles os verdadeiros reis de toda a
existência local. Apesar de terem medo em alguns instantes, também notei a
coragem deles quando entravam em ação, ou para defenderem sua família, ou a
tribo. Isso demonstra uma autoconsciência de proteção para dar continuidade aos
seus filhos.
– Acredito que, quando se
tem amor pela vida e pelo próximo, nossos instintos de preservação sobressaem,
despertando em nós o espírito de união, um espírito social altamente complexo.
– falou Carrara, fechando uma das mãos fortemente.
– O
espírito da sabedoria, como disse Bija outro dia, aproximava aquelas criaturas
do pensamento meditativo e da decisão propositada. Veja, por exemplo, quando
viajavam para o desconhecido, quando se atreviam a atacar os adversários em
proteção ao grupo.
– Temos
de reconhecer que a fuga para outras localidades era em busca de alimento,
porém os Devadattas experimentavam a vida e novas saudações, transmitiam a
certeza da conquista de forma diferente a cada época. – falou Luigi, enquanto
exercitava alguns movimentos de ioga.
– De
fato, tudo que Bija nos informou seria a grande aventura da peregrinação humana
na ocupação de nosso planeta. – Carrara continuou, enquanto lia alguns trechos
registrados por ele. Após firmarem os pés no chão e ficarem com o corpo ereto,
essas incríveis criaturas levantaram suas cabeças acima da linha do horizonte e
partiram em busca daquilo que seria melhor, para seu grupo e para sua família.
Nunca poderemos saber se tais atitudes foram tomadas por necessidade de
alimentação ou de mais espaço, porém, uma coisa eu tenho certeza, eles partiram
rumo ao desconhecido, abandonando uma região a princípio por necessidade de
alimentos, pois os perigos das áreas desertas ameaçavam naquele momento a
segurança do bando inteiro. Por vezes, partiram rumo ao desconhecido
abandonando uma região com certa fartura, a fim de se embrenharem em novas
situações, novas aventuras.
– Por que fizeram isso? – perguntou Luigi.
– Por espírito de aventura, por seu poder
decisório, sua iniciativa ao longo de seu desenvolvimento.– disse Carrara,
lembrando o que Bija havia informado.
– Como podemos ter uma aparência tão diferente
uns dos outros, e os macacos e outros espécimes serem tão idênticos na
aparência e até no comportamento? – indagou Luigi.
Bija retornou da meditação e, ouvindo a
indagação de Luigi, respondeu:
– Nobre
Luigi, não se vêem dois indivíduos iguais, a não ser se forem gêmeos idênticos.
As diferenças compõem os cruzamentos ao longo dos anos entre tribos de diversas
regiões que ocupavam a Terra. Sua migração favoreceu tais cruzamentos,
originando ao longo da história o que somos hoje. – E continuou: Tome como
exemplo os cães: quando cruzamos dois cães diferentes, provavelmente serão bem
diferentes dos pais, terão apenas algumas semelhanças. Se cruzarmos novamente
esses filhos com outros cães de outra região, teremos uma diferença ainda
maior, comparada ao primeiro casal de cães. Imagine isso acontecendo há mais de
um milhão de anos.
– É,
você tem razão, amigo! – falou Luigi, prestando muita atenção no que dissera o
amigo.
– Essa
linha de raciocínio de Bija não vale apenas para a aparência física, mas também
para o comportamento e a vida social de cada região. – disse Carrara.
– Daí a
importância de liberdade que cada grupo ou tribo tinha, referente à imigração,
para a formação ao longo dos milênios do ser humano atual. – prosseguiu Bija.
Notemos que tanto na época dos Devadattas, quanto na nossa época temos o
sentimento do medo, da coragem, do amor, da proteção. Outros sentimentos como a
lealdade, a traição, etc. foram construídos ao longo da História mais recente,
da História segundo alguns ensinamentos do catolicismo, da Bíblia utilizada
pelos católicos.
Carrara
falou:
– O
medo não paralisava os Devadattas, talvez a volúpia por situações perigosas
fizesse parte de nosso instinto mais antigo.
– Sim!
– disse Bija. As escaladas em montanhas geladas, as excursões dos Devadattas
pela selva, pelo deserto mostram, de certa forma, que a tranqüilidade e a
serenidade permanente dos homens são um estado de equilíbrio que agride a
própria evolução. Não estou me referindo à tranqüilidade e serenidade do
espírito e sim das atitudes. A calma excessiva é um sinônimo de aborrecimento e
tédio contrariando a vida, sendo estes uma ausência de vida. Neste sentido, o
risco é, na verdade, uma maneira de nos sentirmos vivos, e é este modo de
sentirem-se vivos que fez dos Devadattas, no longo período de evolução, os
homens de hoje.
– Às
vezes me sinto morto nesta prisão. – falou Luigi. A paz em que me encontro aqui
faz-me lembrar os momentos excitantes que vivi lá fora. Se não fossem vocês,
provavelmente já teria cometido suicídio aqui dentro. Por outro lado, não sei o
que seria pior, esta prisão ou o suicídio.
– O
suicídio é uma fuga dos covardes. – afirmou Carrara.
– Não é
apenas isso! – continuou Bija. A vida deve ser como ela se apresenta, com as
devidas alegrias e sofrimentos, harmoniosamente equilibrados. A morte, segundo
Prana, não é o fim. Se você tirar sua vida, provavelmente sofrerá ainda mais. O
suicídio não é a solução; ao contrário, pode ser a decepção.
– O
momento que nós vivemos também é uma aventura. – disse Carrara, olhando para
Luigi.
– Por
isso, a vida e a aventura são sinônimas. – falou Bija, olhando seriamente para
Luigi. Os Devadattas viviam em intervalos entre uma aventura e outra; viviam
seus medos, suas guerras, como vivemos a nossa vida hoje. Mas isso não quer
dizer que possamos buscar a paz como um processo de aventura, como uma luta
pela não guerra. Acredito que este deva ser o estado permanente dos homens, a
busca pela paz. A mesma ousadia que tinham os Devadattas para sobreviverem ao
longo dos anos, nós temos que ousar em busca da liberdade e da paz entre os
homens.
– A paz
nesse sentido seria uma limitação à vida. – disse Carrara.
– Não!
– afirmou Bija. A paz demonstra que temos uma consciência da morte. Não podemos
fazer como aqueles homens primitivos que estavam dispostos a perder a vida sem
pensar nos riscos. A evolução trabalha na direção da felicidade do homem na
Terra, dizia Prana. Viver com intensidade não significa morrer na primeira
tentativa de risco. A vida é sabidamente perecível, ela tem um fim enquanto essa
encarnação. Segundo Prana, ela deve ser vivida intensamente, ao mesmo tempo
que, misturando aos seus recentes conhecimentos, temos de cuidar dela, da mesma
forma que um Devadatta cuidara de sua família.
– Uma
vez você disse que Prana em sua filosofia própria afirmara que a identidade da
pessoa é construída no vilarejo em que ela se encontra, ali ela atinge seu modo
de ser presente; seus objetivos e expectativas quanto ao futuro dependem do que
está por vir.
Carrara
fez essa afirmativa para perguntar:
– Nosso
modo de vida não estaria mais apropriado para as guerras, como o dos
Devadattas? Não estaríamos sendo construídos para um modo de vida que favoreça
a guerra?
– Sua
pergunta é muito coerente, Carrara. – disse Bija. Sei que, como os Devadattas,
as brigas por território, as lutas pelo poder fazem dos homens seres
extremamente diferentes do reino animal. Ainda vivemos momentos de nossos
pensamentos mais primitivos. Porém, temos que mudar nossa maneira de ser em
busca da felicidade.
E Bija
continuou:
– A
felicidade para um rei é quando seus soldados conquistam amplos territórios por
meio da guerra, porém centenas de mães, mulheres e filhos sofrem a perda de
seus entes, tanto do lado vencedor, quanto do lado perdedor. É certo que ainda
somos construídos para a guerra, mas isso não quer dizer que encontramos a
felicidade através dela.
– Certa vez, você disse: “quem sabia ser feliz era Leonardo.” – lembrou
Luigi.
– Leonardo é símbolo da felicidade.
– prosseguiu Bija, com certo brilho nos olhos cada vez que falava de Leonardo.
Apesar de um tanto esnobe, ele é querido e talentoso. Sabe como ser feliz e
tratar bem as pessoas mais simples, ele sabe comportar-se perante os poderosos.
MAIS DETALHES DA VIDA DOS
DEVADATTAS
Nos dias seguintes, a
conversa após as meditações envolveu o mesmo assunto. Durante as meditações,
Bija continuou a enviar mensagens sobre aqueles que seriam os primeiros homens.
– Os Devadattas
experimentavam algumas ferramentas antes de utilizá-las. Quando obtinham
resultados positivos para aquilo que almejavam, ensinavam aos outros do grupo;
a seguir, passavam a construí-las. Utilizando determinadas metodologias,
fizeram experimentos na caça, na pesca e nas batalhas com grupos inimigos.
Então confirmou o que acabara de
informar:
– Vejo neste momento um
Devadatta com um pedaço de tronco, de aproximadamente vinte centímetros de
diâmetro e vinte de altura. Ele retirou o miolo do tronco deixando somente a
lateral e o fundo, perfurou todo o tronco, nele colocou alguns insetos pregando-os
com algumas pedras pontiagudas. Depois, amarrou com cipós o tronco e o lançou à
beira de um riacho. Quando o peixe entrou, ele e um parceiro do grupo puxaram
com rapidez, trazendo com o tronco alguns peixes.
Bija disse que o homem que criara
tal armadilha para peixes, também fez em seguida uma armadilha para pássaros.
Essa tribo se beneficiou muito com tal façanha, contribuindo, assim, para o
aumento populacional do grupo.
Esse Devadatta, ao escolher uma
fêmea do grupo, formou uma família. Seus primeiros filhos foram um casal de
gêmeos, os quais foram levados pelos lobos enquanto estavam sendo amamentados
pela mãe.
O que causou uma discussão de
várias semanas foi quando Bija, com o seu pestanejar, passou informações daquilo
que seria a primeira crença dos Devadattas. Isso aconteceu da seguinte forma:
– Aqui eles têm muito medo
do escuro, ou quando os lobos agem, pegando um pequeno Devadatta, quando o
vulcão lança suas chamas, ou mesmo quando os relâmpagos aparecem no céu.
E Bija continuou desvendando
mais detalhes da vida dos Devadattas.
– Quando o céu está recoberto
de nuvens e a noite parece um breu, por vezes se vêem ao longe apenas as chamas
do vulcão. Vários grupos costumam aproximar-se o mais possível do vulcão. A
claridade das chamas faz com que os Devadattas juntem uma porção de pedras, uma
sobre a outra, como uma espécie de pirâmide não uniforme. Sentam-se então em
volta das pedras em forma de círculo, passando a noite toda com um leve gemido
entre os lábios para assustarem os possíveis predadores.
Durante certo tempo
observando tal ato, Bija informou que, certo dia, uma das fêmeas juntou uma
porção de pedras pegas na base do vulcão e levou até em frente à caverna em que
habitava seu grupo de Devadattas. Daí, nas noites escuras, de céu totalmente
coberto pelas nuvens, aquele grupo passou a sentar-se em volta das pedras
trazidas da região onde se localizava o vulcão. Ali acendiam uma enorme
fogueira e repetiam exatamente o que faziam quando viajavam horas até chegarem
bem próximos ao vulcão. Segundo Bija, as
pedras que eles pegavam representavam o vulcão.
Dias depois, seguindo passo a passo
esse grupo de Devadattas, Bija informou que uma das fêmeas, com carvão frio da
fogueira amanhecida, pintou parte do rosto. Outra fêmea, nesse mesmo dia,
observando a atitude da outra, pintou o rosto de vermelho com uma planta.
Meses depois, era comum observar,
entre os Devadattas, o rosto pintado. Bija acompanhou esse grupo e observou
que, alguns anos depois, esse grupo em especial já havia desenvolvido uma
estrutura social mais complexa, pintando o rosto em rituais enquanto
permaneciam em volta das pedras trazidas da região do vulcão.
Como de costume, Bija, Carrara e
Luigi discutiram as anotações. Luigi disse que tal atitude dos Devadattas
mostrava um sistema de crenças baseado em superstições infantis; já Carrara
afirmava que aquilo era um modo de ser, reforçado pela preocupação angustiante
da sobrevivência do grupo. Isto é, as mortes pela disputa das fêmeas e da
família, ou por causa das doenças ou dos predadores eram tão frequentes que os
Devadattas ao longo do tempo temiam a morte e a associavam à escuridão.
Bija acreditava que aquilo
era um princípio para podermos ligar-nos ao mundo espiritual. A energia
espiritual dos primeiros Devadattas, quando morriam, se dispersara com o
universo. “Dispersava-se como um pó totalmente fino atingido por um forte
vento” (palavras de Bija). Com o passar dos anos, a energia de um Devadatta,
exatamente aquele que criara certas armadilhas e ferramentas, não se dispersou.
Daí até o momento dos rituais, outros, por influência desse espírito especifico
(chamado por Bija de “Kumar”, que significa rei, príncipe, filho), não se
dispersaram, criando, assim, uma nova civilização, uma civilização espiritual.
Esses com certeza, segundo
Bija, foram os primeiros espíritos observados na Terra por Bija. Isso porque
até então ele percebera alguma energia que não saberia explicar nem ver. Porém,
a civilização espiritual Bija via claramente, descrevendo tudo que eles faziam
enquanto espíritos dos “Devadattas”. Como na sociedade dos Devadattas, a qual
tinha suas normas e regras para eles pertencerem a tais grupos, na sociedade
espiritual não era diferente. Havia normas e regras para eles pertencerem a
determinados grupos espirituais.
Bija disse que Kumar era descendente
direto daquele que iniciara a primeira fogueira.
Kumar, segundo informações
do pestanejar de Bija, passadas, enquanto meditava, para Carrara e Luigi,
garantia a riqueza espiritual na organização social. Kumar trabalhava para
garantir a felicidade de seus membros, para que estes trabalhassem com o
objetivo final de manter a felicidade daqueles que estivessem encarnados em
corpo-matéria.
Alguns séculos à frente,
Bija observara o espírito desencarnado de Kumar, incentivando a troca de
presentes entre diferentes grupos de Devadattas ainda encarnados. Um dos
descendentes diretos de Kumar era capaz de vê-lo em espírito.
–
Vejo-os agora! – falou Bija. Dois diferentes grupos, antes rivais,
congregaram-se em torno de um ponto com água num tempo de grande período de
seca. Há uma intensa troca de presentes (não se trata de comércio), é um
estreitamento de alianças que levam à formação de novos pares entre os grupos.
– É uma
solução inteligente. – disse Luigi a Carrara, enquanto anotava. Nem mesmo nós
hoje conseguimos resolver com a mesma habilidade problemas de pessoas
descontentes. O que observamos hoje são atitudes de reis casando seus filhos
com interesse em riquezas.
– A
princípio talvez não pensassem nisso. Porém depois, o grande comércio e os
interesses políticos que estão por trás de quase tudo fizeram com que os homens
marginalizassem esse tipo de troca. – explicou Carrara e pediu a Luigi:
Deixe-me prestar atenção às minhas anotações.
– O
modo de um determinado grupo interfere no modo de ser do outro. Bija informou
isso referindo-se à cultura de cada grupo e continuou: Eles dançam, se pintam,
cantam ao seu modo.
Ele
informou também que trocavam ferramentas e ensinavam a outros grupos como
utilizá-las. As tarefas como coletar raízes e cuidar das crianças eram das
fêmeas, os machos caçavam e defendiam a família e o território. Isso era comum
em todos os grupos.
Em uma
das discussões de Carrara, Bija e Luigi, eles disseram que esse modo de ser foi
construído porque a fêmea sempre amamentava e era mais importante na vida do
filhote. Cabia ao macho a função de entrar mata adentro para caçar alimentos,
enquanto a fêmea ficava esperando com o filhote; isso aconteceu desde o mais
primitivo Devadatta.
Nessa reunião, Bija disse:
–
Certamente tal diferença entre o homem e a mulher tem relação com a necessidade
de locomover a família mata adentro para a caçada. Os perigos da mata, o
barulho da criança, além de prejudicarem o resultado final da caça, colocariam
em risco a vida da fêmea e do filhote.
– Temos
de analisar que foram as mulheres que iniciaram a “comemoração”, que se
transformou ao longo dos anos em “rituais” de apreciação da façanha do
Devadatta caçador. – falou Carrara.
– Pelo
jeito tudo aconteceu porque a mulher tomou a iniciativa; vira e mexe vocês
elogiam demais as mulheres. – disse Luigi num tom de brincadeira, sorrindo. Não
vejo a hora de sair daqui para poder sentir aquela pele macia... Deixa pra lá!
– Não
fugindo do assunto e voltando aos Devadattas, – falou Bija num tom também de
brincadeira – o que acho esplêndido é a forma de distribuição do produto caçado
pelos machos e colhido pelas fêmeas, o qual ajudava nas alianças, influenciava
a devolução de favores e acabava beneficiando o grupo todo. É certo que Kumar
influenciou nesse modo de ser, quando se comunicou com o seu ancestral
encarnado; levou até os Devadattas a uma profunda socialização. Era comum
grupos vizinhos se visitarem depois da comunicação de Kumar com seus primeiros
ancestrais. A forma de vida junto à floresta e aos campos permitiu brincadeiras
e lazer não apenas entre os mais novos como também entre os mais velhos. Havia
uma manifestação de prazer em presentear grupos vizinhos. Tudo isso foi
ensinado por Kumar.
– Eu
tenho curiosidade, Bija! – disse Carrara, indagando em seguida: Qual foi o
destino das outras criaturas que seguiram para o sul?
– Eu anotei isso! – falou
Luigi. Deixe-me procurar, acho que está perdido nesse monte de papel.
– Por que não nos passou?
– indagou Carrara, olhando para Luigi.
– Provavelmente devo ter colocado com outros papéis e acabei
me esquecendo. – respondeu Luigi, meio
irritado. Vocês acham que eu me lembro de tudo, são muitas informações que
tenho de interpretar e escrever ao mesmo tempo. Às vezes, como não consigo
anotar algumas informações, coloco outras entre outros papéis e depois não me
recordo.
– Permita que eu procure! – disse
Carrara, pretendendo deixar tudo em ordem. Se
não, você vai fazer uma confusão aqui.
E passou quase a semana toda procurando as anotações sobre como se
deu a vida daqueles primatas que partiram em direção ao sul.
Eis que Carrara encontrou as anotações e começou a ler para Luigi
e Bija:
– O grupo que foi para o sul se desenvolveu de forma
diferente dos Devadattas. – disse Carrara,
lendo o que Luigi anotara nas informações passadas por Bija. Enquanto os
Devadattas se desenvolveram espiritualmente, o grupo que foi para o sul não teve
o mesmo desenvolvimento. Entre os ataques de lobos, as doenças, a fome, apesar
de desenvolverem algumas ferramentas, eles desapareceram; segundo o calendário
romano, há cerca de trinta mil anos.
– Só isso? – indagou Luigi.
– Sim, somente isso! Tem outra parte aqui. – disse Carrara, encontrando partes despercebidas. Essa parte
descreve ocasionais experiências dos Devadattas com a agricultura, de há mais
de dez mil anos, que não tínhamos visto.
– Deixe-me ler! –
falou Bija.
Carrara entregou as anotações a ele, que
começou a ler em voz alta:
– Há cerca de dez mil anos, um fato mudou a história da
humanidade. Foi o momento em que, mais uma vez, uma fêmea observou que os grãos
que derrubara, ao transportar em direção ao grupo, se desenvolveram formando as
plantas que geravam tais grãos.
A discussão que se passou ao final da leitura de Bija mostrou o
início sistemático da agricultura, mudando a História, alterando a relação dos
Devadattas com a natureza. Assim, passaram de pacientes para agentes transformadores
da natureza.
Uma observação do que ocorrera acidentalmente fez com que aquela
fêmea em especial plantasse novos grãos, gerando o que conhecemos hoje como
agricultura. É certo que era uma agricultura bem rudimentar e primitiva, porém
funcional.
– Como vimos, meus amigos, disse Bija, os Devadattas
dominaram o fogo, a seguir as ferramentas e depois a agricultura. Dormiam em volta do fogo no inverno
descansando melhor, assavam suas carnes tornando-as mais digestivas, faziam
suas cerimônias e rituais. Conscientes do seu domínio sobre os outros animais,
sabiam utilizar as ferramentas. Sabiam, também, organizar sua pesca e suas
caçadas, às vezes até caçando aqueles que mais os perseguiam, os lobos, seus
rivais inimigos. Atuando assim, na maioria das vezes em grupo, os Devadattas
desenvolveram o espírito de solidariedade. Dessa forma viviam nossos
antepassados, assim surgiram os primeiros homens. Esse, com certeza, foi o
início da civilização em que nos encontramos hoje.
OS DEVADATTAS E OS
VISHUARUPAS
Meses depois,
após discutirem muito sobre os Devadattas, Carrara e Luigi propuseram a Bija
para seguir os passos do casal de gêmeos que foram levados pelos lobos.
Bija seguiu por muito
tempo esse grande criador Devadatta, antecessor direto de Kumar. Viu quando ele
escolheu sua parceira para acasalamento, formando seu grupo familiar; informou
também quando nasceu um casal de gêmeos, os quais foram levados pelos lobos.
– Estou
presenciando o momento em que os inimigos cruéis e traiçoeiros dos Devadattas,
os lobos, atacaram a fêmea enquanto ela amamentava os gêmeos. – disse Bija com
seu pestanejar, enquanto meditava. – Os lobos pegaram os pequenos Devadattas e
correram mata adentro. E continuou seguindo o destino dos pequeninos: – Uma
loba fêmea que deu cria há poucos dias passou a alimentar os gêmeos.
Bija voltou à aldeia e observou o pai
dos gêmeos.
– Ele está com sua fêmea, que
está muito machucada, com mordidas em toda parte do corpo. Ele uniu alguns
machos membros do grupo e percorreu a mata à procura dos gêmeos. Os Devadattas
passaram meses procurando diariamente os gêmeos, até que desistiram.
– Enquanto isso, os gêmeos foram
criados como lobos, eles se viam como lobos, pensavam que eram lobos. Porém,
eram tão hábeis e astutos como os Devadattas; brincavam como lobos e subiam nas
árvores como os Devadattas; farejavam como lobos e para se defenderem pegavam
objetos como os Devadattas. Os dois cresceram comandando a matilha. Aprenderam
a caçar, e a carne de que mais gostavam era dos Devadattas.
Bija acompanhou por muito tempo os
gêmeos, os quais cresceram, tiveram filhos, netos, bisnetos, formando um novo
grupo batizado por Bija de “Vishuarupa”, que significa “forma total, múltipla”.
Surgiu assim uma personalidade de dois aspectos opostos em dois grupos
distintos: os Devadattas, que se alimentavam e construíam, e os Vishuarupas,
que atacavam, devoravam e destruíam.
Os Vishuarupas, segundo Bija, eram
canibais. Apesar de minoria, eles atacavam os Devadattas para comerem sua
carne. Alguns grupos de Vishuarupas consumiam parte do corpo, outros a
totalidade. Normalmente, como os lobos,
atacavam em grupo quando um Devadatta estava distraído.
Bija acompanhou os Vishuarupas algumas
centenas de anos depois do sequestro dos gêmeos. Percebeu que eles aprenderam
muito imitando os Devadattas. Por exemplo, pegavam suas ferramentas e as
copiavam com tamanha precisão. Como os Devadattas, os Vishuarupas tinham seus
rituais em homenagem a Kumar, porém praticavam o canibalismo com rituais
semelhantes homenageando os gêmeos. Além de homenagearem os gêmeos, Bija dizia
que os Vishuarupas praticavam o ritual com canibalismo como uma forma de desejo
de adquirir as características dos Devadattas: sua inteligência, habilidade e
destreza para a guerra e para a caça.
O que Bija, Carrara e Luigi acharam
estranho foi o modo como se uniam os Vishuarupas. Enquanto os Devadattas
conquistavam suas fêmeas pela valentia, por sua habilidade e destreza para a
caça e ou a pesca, os Vishuarupas separavam as fêmeas ainda novas e depois as
distribuíam entre os machos mais fortes do bando, às vezes presenteando um
grupo aliado com uma ou mais fêmeas.
Bija
informou que, da mesma forma que os Devadattas quando morriam seus espíritos se
encontravam com os espíritos desencarnados na ordem de Kumar, os Vishuarupas,
quando desencarnavam, se encontravam com espíritos maléficos dirigidos pelos
gêmeos criados pelos lobos.
Em
nenhum momento Bija soube dizer o porquê de os lobos pegarem os gêmeos, porém
ele sabia haver naquele momento primitivo forças que não compreendia. Por outro
lado, sabia também que as forças não eram capazes de detectá-lo, mas
pressentiam de alguma forma aquele seu estado de meditação.
– Você diz, aqui, que eles de
alguma forma pressentem sua presença! – falou Carrara, referindo-se a Bija. –
Somente pessoas elevadas conseguem perceber e se comunicar com você. Isso é
muito estranho.
– Apenas homens como Cristo e,
segundo Bija, as encarnações de Cristo conseguem vê-lo. Como é possível essa
força pressentir você? – perguntou Luigi.
– Vocês sabem que de lá eu não
lembro nada quando estou aqui, apenas analiso junto com vocês aquilo que
anotaram. Também não consigo entender como isso ocorre.
– Que tal acompanhar os
Vishuarupas agora no momento em que estamos para podermos saber o que aconteceu
com eles em nosso tempo? – indagou Luigi.
– Concordo com Luigi – disse Carrara,
olhando para Bija.
Contudo, os três terminaram a
conversa, pois já era tarde da noite e estavam cansados.
AS CIVILIZAÇÕES ASTECA, MAIA E INCA
No
dia seguinte Carrara e Luigi acompanharam Bija em alguns exercícios de ioga. Em
seguida, ele fez sua meditação como era de costume, enquanto Carrara e Luigi
passaram a anotar as mensagens enviadas em seu pestanejar.
– Estou num futuro
próximo, tiro informações que denominam os povos que irei desvendar. – falou
Bija. – Aqui apresentarei nomes que os povos do futuro já conhecem.
Enquanto
meditava, observou o futuro para explicar acontecimentos que estavam por vir;
utilizou nomes conhecidos das pessoas do futuro para que estas pudessem
entender um dia o que escrevera.
–
Terras longínquas estão sendo desvendadas por nosso povo neste momento
histórico. – informou Bija. – Não são terras despovoadas como se pensa, vejo
povos desconhecidos, alguns muito evoluídos. Há grandes cidades e nossos
vizinhos, os espanhóis, encontraram um povo denominado “Asteca”.
Ao
mesmo tempo que Carrara fazia anotações de um dos olhos de Bija, Luigi anotava
informações do outro olho, sobre os espíritos descendentes diretos dos
Vishuarupas, que re-encarnaram numa civilização recentemente descoberta. Bija
afirmou haver muitos espíritos dos Vishuarupas espalhados entre os povos de
várias épocas, duplicando-se e trazendo cada vez mais espíritos para o grupo
dos Vishuarupas. Voltando aos astecas, Bija disse que eles eram sanguinários, e
seus rituais religiosos incluíam sacrifícios humanos. Acreditavam que com os
sacrifícios humanos poderiam deixar os deuses mais calmos e felizes.
– Vejo
neste momento uma cidade denominada Tenochtitlán, com enormes templos,
pirâmides cheias de escadas, ruas pavimentadas e com grandes arcos de pedra,
anotou Carrara no pestanejar de um dos olhos de Bija. – Os astecas possuem
plantações de mandioca, milho, pimenta, tomate, cacau, fumo, algodão, entre
outras; usam um sistema de irrigação bem mais avançado que o nosso, com
aquedutos e canais por onde transitam as embarcações. Sua escrita é bem
diferente da nossa, eles usam um calendário baseado no ano solar, de trezentos
e sessenta e cinco dias, que assombrou os espanhóis recém-chegados. Como nós,
os astecas se organizam por classes sociais; há nobres, soldados, comerciantes
e agricultores. E praticam o comércio com outros povos; em vez de moedas,
utilizam as sementes de cacau. Seu artesanato é riquíssimo, têm desde a
confecção de tecidos até objetos de ouro e prata. Eles cultivam diversos deuses
(o deus do Sol, da Lua, do Trovão e da Chuva) e uma deusa, representada por uma
Serpente Emplumada.
Bija
disse haver um homem chamado Fernão que percorria toda a cidade de Tenochtitlán
entre as escolas militares, religiosas e profissionais das diversas classes
sociais. O rei local chamava-se Montesuma II. Fernão era respeitado pelo
imperador, pelo chefe do exército e por sacerdotes e chefes militares. Fernão
era muito esperto, tomou grande parte dos objetos de ouro dessa civilização.
Não satisfeito, ainda escravizou os astecas, forçando-os a trabalharem em minas
de ouro e prata da região.
Enquanto
isso, Luigi anotava as informações do outro olho, o qual informava que Fernão
tinha um espírito vindo dos Vishuarupas. O espírito de Fernão em uma outra
encarnação fora um rei sacrificado em homenagem aos deuses astecas pelos
antecessores de Montesuma II. Aquele rei viria encarnado como Fernão e, ajudado
pelos espíritos maléficos dos Vishuarupas, teria como objetivo vingar-se dos
astecas.
Bija
dizia haver outros além de Fernão com o mesmo objetivo, de vingança. A raiva, a
vingança, o orgulho, a inveja, segundo Bija, teriam vindo e se formado em nós
através dos espíritos dos Vishuarupas ao longo dos anos, no emaranhado
entrelaçamento com espíritos dos Devadattas. “Emaranhado entrelaçamento”
significaria espíritos sofredores dos Vishuarupas que foram resgatados para uma
re-encarnação melhor pelos espíritos dos Devadattas. Vishuarupas re-encarnariam
em famílias de Devadattas ao longo dos séculos.
Passadas
algumas semanas, em uma das reuniões ocorridas após a meditação de Bija, Luigi
sugeriu que ele desvendasse o novo continente e suas civilizações voltando um
pouco mais no tempo.
– Entre
as florestas tropicais habitava uma civilização chamada “Maia”. – falou Bija. –
Viviam na Península de Yucatán, como era denominada, e habitavam esse local
desde os séculos IV a.C e IX a.C. Como os astecas, o povo maia tinha seus
nobres, sacerdotes, militares, comerciantes, artesãos e camponeses. Aqui eles
construíam suas pirâmides, templos e palácios. Sua religião era politeísta,
pois acreditavam em vários deuses ligados à natureza. Registravam datas, a contagem de impostos e
colheitas, as guerras e outros dados importantes. Eles utilizavam bem a
matemática. Também obtinham prisioneiros de guerra para serem sacrificados aos
deuses. Suas divindades eram ligadas à caça, à agricultura e aos astros.
Domesticavam o peru e a abelha para enriquecerem sua dieta. Além dos alimentos,
eles comercializavam escravos e produtos como o jade, as plumas, os tecidos e a
cerâmica.
Bija
informou que no futuro os calendários e a matemática seriam baseados nos
utilizados pelos povos maias. Ele descreveu exatamente o templo de Kukulkan (o
deus da serpente emplumada), que servia de observatório astronômico para os
maias. Falou de um local chamado Palenque, caracterizado pelos efeitos
decorativos, que causavam certo mistério e assombro. Descreveu a cripta de Pa
Kal, de um poderoso sacerdote maia; também, o Templo do Sol, com os telhados
ricamente decorados em suas fachadas, e o Templo do Jaguar, que exibe a “Cruz
Folhada”. El Castillo§, o “Templo do Tempo”, foi descrito
por Bija como o que esclarecia o sistema astronômico dos maias.
Um homem de nome Pedro Alvarado
ajudou a discernir o povo maia. Destruindo ao longo dos anos a identidade
cultural desse povo, e praticamente seu modo de viver, eles foram submetidos ao
trabalho forçado. Pedro Alvarado, segundo Bija, era mais uma das encarnações
vingadoras sacrificadas pelos rituais maias.
–
Havia um povo, denominado pelos espanhóis de “Incas”. – falou Bija enquanto
meditava. – Seu imperador, conhecido por Sapa Inca, foi considerado um deus
pelo seu povo.
Passou,
então, informações detalhadas da civilização inca; seu modo de governo e social
era igual ao dos Astecas e dos Maias. Os Incas tinham militares, sacerdotes,
artesãos e camponeses. Eles desenvolveram uma arquitetura em construções com
enormes blocos, utilizados nos templos, palácios e casas. Sua principal cidade
era Macchu Picchu, uma cidade de eficiente estrutura urbana.
Os
Incas plantavam feijão, milho, batata, etc. nos degraus formados nas costas das
montanhas. Construíram canais de irrigação desviando o curso dos rios para as
aldeias. Domesticavam e criavam lhamas, utilizando-as como meio de transporte,
retirando-lhes a lã, a carne e o leite. Cultuavam o Sol (deus Inti), porém
consideravam o condor e o jaguar animais sagrados. Acreditavam também num
antepassado chamado Viracocha. Sua religião também era politeísta com
sacrifícios humanos para satisfazerem os deuses. Inti era servo de Viracocha,
que exercia soberania no plano superior divino; reinava sobre os homens como o
imperador. Mama Quilla era a mãe Lua, esposa do Sol e mãe do
firmamento. Bija descreveu a estátua de Mama Quilla, adorada por uma ordem de
sacerdotisas espalhadas por toda a região. Os Incas tinham outros deuses
idolatrados, como Pacha Mama, a “Mãe Terra”, encarregada de propiciar a
fertilidade nos campos; Mama Sara, “Mãe do Milho”; Mama Cocha, “Mãe do Mar”.
– Havia uma lenda
inca – informou
Bija – da
primeira criação, “Viracocha Pachayachachi”, o criador de tudo. Depois de criar
o mundo sem luz, sem sol e sem estrelas, caminhava por imensos e desertos
pampas da planície pensando e observando sua criação. Mas quando viu que criara
gigantes bem maiores que ele, percebeu que não era conveniente criar seres de
tais dimensões. Resolveu, então, criar seres com a sua própria estatura. Assim,
Viracocha criou os homens seguindo suas próprias medidas, como hoje somos. E
Viracocha ordenou aos homens que vivessem em paz, entretanto eles se renderam
aos excessos e extravagâncias, às desordens e às guerras. Para castigá-los,
Viracocha os transformou em pedras ou animais, alguns caíram enterrados na
Terra, outros absorvidos pelas águas. Finalmente, despejou um dilúvio sobre os
homens, no qual todos pereceram, exceto três, que se dispuseram a ajudar
Viracocha em sua nova criação. Desse modo, o criador do mundo decidiu dotar a
Terra de luz, ordenando que o sol e a lua brilhassem junto às estrelas e toda
Via Láctea.
Carrara leu em uma das reuniões, após a meditação de
Bija, que a Via Láctea era chamada pelos Incas de Mayu ou rio celestial, a qual
servia de orientação em seus rituais. Leu que os sacerdotes incas realizavam o
denominado “Solstício de inverno”, uma peregrinação cerimonial anual em função
da Via Láctea. Partiam da cidade de Cuzco em direção a sudeste, dirigindo-se
pela Via Láctea até a nascente do rio Vilcanota, local, segundo a mitologia
inca, em que nascia o Sol.
– O Mayu! – descreveu Bija. – Além de ser um
eixo de orientação importante, também servia de referência para o entendimento
do clima na Terra. Para os Incas existiam três classes de constelações: as
“brilhantes”, formadas por um conjunto de estrelas unidas; as “escuras”,
formadas por manchas escuras da Via Láctea; e as “mistas”, mistura das claras e
escuras. Mas são as escuras que se encontram na região celestial, chamadas de
Mayu, que formam as manchas escuras imaginariamente. Parecem sombras de
silhuetas lembrando animais, que na cultura
andina estavam encarregados de gerar fertilidade favorecendo a vida na Terra.
Bija
detalhou a riqueza paisagística e cultural do Vale Sagrado. A área que se
prolongava por mais de cem quilômetros, a uma altura de aproximadamente dois
mil e oitocentos metros sobre o nível do mar, foi observada e descrita por
Bija. Ele não apenas descreveu as construções incas, mas também sua rica e
fértil flora e seus inúmeros riachos e cachoeiras, localizados entre os
bosques.
Em uma
das discussões, Bija, Carrara e Luigi concluíram que seria devido à cultura e
identidade do povo inca que edificaram, em todo o vale sagrado, enormes
construções, as quais recriaram em suas formas respectivas as principais
constelações andinas, como se o vale e o rio fossem reflexos um do outro; o
vale servia de espelho da Via Láctea. Para Bija, o Vale Sagrado expressava o
sentimento dos Incas, a maneira de se sentirem no mundo e de compreenderem a
vida. Bija achava que a evolução entre um modo de vida tão avançado e o ritual
de oferendas de vidas humanas devia-se à re-encarnação entre o bem e o mal, o
espírito dos Devadattas entrelaçando-se ao longo dos séculos com o espírito dos
Vishuarupas.
Bija
lembrou o modo como os Vishuarupas escolhiam suas fêmeas, e reparou que parecia
com o modo inca de escolherem seus pares.
– De tempos em
tempos os Incas retiravam de seus lares todas as meninas de dez anos,
levando-as para um distrito. As mais bonitas e inteligentes eram escolhidas e
enviadas para uma cidade chamada Cuzco; ali, aprendiam a cozinhar, tecer, entre
outras prendas. Após alguns anos, elas seriam distribuídas como esposas
secundárias dos nobres e dos chefes valorosos incas.
– Realmente, o modo de juntarem os casais do povo inca é
idêntico ao dos Vishuarupas. –
disse Luigi.
– Pelo jeito, em
toda a história da humanidade, as mulheres foram vistas pelos homens e pela
sociedade apenas para procriarem; com raras exceções, é claro. – afirmou Carrara.
– Não comecem a
falar das mulheres. –
continuou Luigi, com um tom de chateação. – Já faz tanto
tempo que não vejo uma. E causou risos de Bija e de Carrara.
O ESPÍRITO DO BEM E O ESPÍRITO DO MAL
– Vamos mudar de
assunto. – falou
Carrara, olhando para Bija. Não consigo entender, ou melhor, para mim não está
clara essa eterna luta entre o bem e o mal, entre espíritos bons e ruins, entre
os Devadattas e os Vishuarupas.
– Acredito que as
civilizações espirituais vindas de Kumar, dos espíritos de luz, do bem, tentam
a todo tempo resgatar os espíritos ruins para livrá-los do sofrimento. E também
querem evitar que eles façam outros sofrerem. Não há preconceito, todos têm o
direito e uma oportunidade de não sofrerem, seja um Devadatta, seja um
Vishuarupa. – afirmou
Bija.
– Ele também tem o direito de ser ruim, se assim desejar. – disse Luigi. Se
desejarem continuar ruins, que assim seja; a interferência é uma injustiça.
– É justo que o
ruim faça com que todos sofram. –
falou Bija. – Quando ele sofre, não se satisfaz apenas com seu sofrimento,
procura eternamente o sofrimento alheio.
– Mas o modo de ser e a identidade social e cultural
daquela determinada época e local, somados à educação dos pais, não influenciaram
no seu comportamento ruim ou bom? – indagou
Carrara. – Nós, que aparentemente viemos dos Devadattas, somos cristãos mas
fizemos tanto mal em nome de nosso Deus quanto os povos maias, incas e astecas
em seus rituais sagrados.
Carrara olhou para Luigi e disse: –
Passe-me aquelas páginas. Em seguida, pegou o que anotara nas páginas e
começou a ler:
– Como Bija nos
passou, a justificativa para a conquista espanhola é de ordem religiosa. A
ordem eclesiástica reconheceu o direito da Espanha em explorar as novas Terras
com o argumento de que, ao ocupá-las, os espanhóis teriam de ensinar a religião
cristã aos novos habitantes. Entretanto, o que aconteceu de fato foi um
verdadeiro genocídio.
Bija retomou a palavra:
– O que vocês não entenderam
é que tanto o Papa quanto os homens perversos daquela época eram re-encarnações
de pessoas ruins, vindas para a vingança, para a destruição. Eram, na maioria
das vezes, descendentes de encarnações dos Devadattas com Vishuarupas. A ordem
de Kumar, os espíritos do bem, auxilia no processo de re-encarnação, tenta
influenciar para a salvação das almas, da construção das pessoas. Mas a vida,
em seu emaranhado de relações, com o auxílio também da ordem dos gêmeos,
espíritos maus, os Vishuarupas, influencia para o lado ruim. Porém, nosso
Cristo diz: “Amai-vos uns aos outros”. O difícil é praticar o amor ao próximo.
Para um espírito ruim é mais difícil ainda.
Bija fez uma pausa e continuou:
– Voltando à sua primeira indagação,
tudo influencia, sim, na vida humana, mas cabe à alma, à pessoa, sua
construção, sua personalidade, sua identidade, filtrar o mal, não eliminá-lo,
pois ele está aí, ele existe em todos os lugares, em todos os tempos, em todos
os sentidos. Entretanto, segundo Prana, cada vez que re-encarnamos, é uma
chance de nos tornarmos menos piores, eliminando cada vez mais os nossos
demônios. Segundo Prana, e comprovamos com nosso trabalho, o que existe de fato
são espíritos maus; o que percebemos é que o demônio nada mais é que os
sentimentos ruins que carregamos: o orgulho, a vingança, o ódio, etc.
–
Há anotações aqui. – disse
Luigi, interrompendo Bija. –
Você presencia muitos espíritos ruins junto a esses colonizadores. Parece
ser uma guerra entre Vishuarupas contra Vishuarupas. Um espanhol de nome Hernán
Cortés, quando se ausentou da cidade asteca, deixou seu substituto que causou
um grande conflito: ordenou a morte de seis mil astecas no interior de um
templo. Aqui estão anotados espíritos maus influenciando tais atitudes. A
conseqüência disso foi que os astecas revidaram, derrotando quase todos os
espanhóis. Em seguida, Cortés, também influenciado por maus espíritos, buscou
muitos soldados exterminando o imperador Quatemozim e quase todo o povo asteca.
Hernán Cortés passou a governar a cidade a serviço do rei da Espanha.
– A mesma coisa
está prestes a acontecer com a expedição chefiada pelo militar espanhol
Francisco Pizarro. Segundo nossas anotações, – disse Carrara –
Pizarro e sua tropa vão ser favorecidos porque o Império Inca estará
dividido: de um lado, Atahualpa, e de outro, seu irmão Huáscar. Pizarro
recrutará alguns povos hostis aos Incas e entrará na cidade de Cajamarca sem
encontrar nenhuma resistência. Em seguida, Pizarro colocará na prisão Atahualpa
e lhe prometerá a liberdade, em troca de
todo seu tesouro. Atahualpa cumprirá seu acordo, mas o espanhol não. Após
apoderar-se do tesouro dos Incas, Pizarro julgará e executará Atahualpa. Apesar
de os Incas enfrentarem valentemente os espanhóis por mais alguns anos, os
espanhóis com sua artilharia destruirão o Império Inca.
– Segundo
informações aqui anotadas, havia muitos espíritos rancorosos e vingativos junto
a Pizarro, falou Luigi.
– Como podem ver,
meus amigos, – concluiu
Bija – só
podemos impedir o mal se praticarmos o bem. Segundo Prana, quando praticamos o
bem afastamos o mal, afastando os maus espíritos, ao mesmo tempo que somos
imunizados contra aquilo que pode prejudicar o outro ou a nós mesmos.
– Mas o mal não é construído
em nós? – perguntou
Luigi a Bija.
– Nossa experiência
sensorial distingue aquilo que é bom daquilo que é ruim. Uma pessoa pode até
ser construída para praticar a dor, a desgraça, a calamidade, tendo o prazer de
punir ou de causar prejuízo ao outro. Porém, ela sabe que esse seu modo de agir
é irregular, é errante, ela tem a consciência disso, mas faz disso uma prática
em seu cotidiano.
Bija fechou os olhos e acenou com a
cabeça.
– Reverter
o quadro maléfico construído ou influenciado por espíritos perversos exigirá do
homem um gigantesco esforço. Seu pensamento e sua razão dependerão de um fluxo
perpétuo de vigilância contínua para reconhecer sua essência para o bem e
abandonar as aparências da oposição má. Para isso, é preciso reconhecer e
interpretar aquilo que seja contrário ao seu modo de vida.
– Tomemos
como exemplo o povo inca ao sacrificar seres humanos. – disse
Carrara ao mesmo tempo que fazia uma afirmação: – Sacrificar uma vida humana é
errado, porém foi construído em sua cultura; para eles aquilo era o certo, não
tinham consciência de estarem errando. Por isso, não houve arrependimento ou
remorso.
– Prana
sempre dizia que quem faz um mal para alguém sabe que o sofrimento deste está
atrelado à sua prática, à sua ação do mal; reconhece que o outro sofre devido a
sua ação, falou Bija. – Apesar de achar natural tal atitude, aquele que
praticou o mal sabe que o outro sofreu ou sofrerá. O remorso, o arrependimento
só poderá ser percebido, quando o mal tiver conhecimento do contrário. Só
assim, perceberemos o ato praticado e o consideraremos condenável.
– Então é
exatamente aquilo que Carrara falou há pouco. – disse Luigi.
– Desde
os Devadattas e os Vishuarupas, a dor provocada por agressões no corpo, a dor
da fome, a dor causada pelo excesso de frio ou de calor, a dor da perda causam
sofrimentos ao homem. Todo esse sentimento de dor é reconhecido desde os
primórdios do homem, independentemente de sua construção cultural. Por isso,
sabemos quando causamos dor ao outro. –
prosseguiu Bija.
– É
certo que nossa guerra é um ato de dor, nossas condenações são atos
de dor. Nossas les são feitas para causar a dor para aqueles que de certa forma
causaram dor ao outro, ao rei ou à corte. Nossas leis avaliam nossos atos e
determinam como devemos agir perante elas. Se não agirmos conforme ditam as
leis, seremos condenados por nosso comportamento
“incorreto”. O emprego da tortura, a condenação à morte ou mesmo a nossa prisão
são sistemas de terror destinados a impressionar e educar a população. Porém,
muitos papas, reis, etc. utilizaram da lei para beneficio próprio.
– Um
exemplo é eles utilizarem o “sanbenito”. –
disse Carrara. –
No principado da Espanha, para aterrorizar a multidão,
aqueles que escapavam da fogueira eram condenados a usar o sanbenito.
Presenciei guerreiros revestidos de couraças em suas procissões levando hereges
cobertos pelo sambenito para a purificação pública nas fogueiras.
–
Já vi isso em muitas casas nas aldeias, quando passei por
lá há alguns anos. – falou Luigi. – Os guardas inquisitoriais vistoriavam e penduravam o sanbenito nas
residências dos condenados para que os fiéis nunca se esquecessem de seu crime.
– O
inquisidor prendia o herege, interrogando-o e condenando-o sem que ele conhecesse
sua acusação. – continuou Carrara. – O inquisidor tinha o delator como seu parceiro. O delator se beneficiava de
indulgências e até da garantia de salvação eterna.
– A cerimônia era
anunciada por tambores e trombetas. –
disse Luigi. – O
inquisidor geral proferia seu sermão diante da multidão, os hereges
arrependidos abjuravam seus erros, totalmente despidos e vergastados. Em seguida, vinha a sentença de prisão
perpétua e a confiscação dos bens.
– Havia também – afirmou
Carrara – condenações mais brandas para os mais felizes, por exemplo, quando os
acusados eram condenados às peregrinações de penitência a Jerusalém. Era dessa
forma que os ditos arrependidos se conciliavam com a Igreja.
– Leonardo dizia que a
Igreja não queria manchar suas mãos de sangue. - informou Bija – Por isso,
deixava ao principado o ofício de carrasco ao realizarem tais execuções.
– Presenciei uma
condenação – disse Luigi – em que o condenado foi içado para uma fogueira
assediado por um capelão, o qual arrancou a confissão e o arrependimento do
acusado antes dele ser queimado. Enquanto seu corpo se retorcia em chamas, a
multidão se elevava. Lembro-me até agora de seus gritos e gemidos.
Luigi
havia acompanhado durante sua estadia na Espanha três tipos de suplícios: a
“garrucha§”, o
“porro§” e a “toca§”.
Afirmou ser uma prática de assassinato na qual o herege era indefensável, tendo
em conta que o réu estava perante delitos de opiniões, de costumes e de
religião.
Bija continuou:
–
É importante destacar que tal catalogação criminal na
Inquisição foi autorizada por Sisto IV§.
Bartolomeu Benassar escreveu que tal procedimento “verga as vontades, esmaga os corações, extingue a chama das
idéias, desespera uns para tranqüilizar os outros”.
Para efeito de informação, em três
séculos a Espanha teve mais de quarenta e
cinco inquisidores gerais. Segundo o historiador Juan Llorente, entre
1483 e 1501, em
Toledo
foram queimados duzentos e noventa e sete condenados e em Saragoça cento e
vinte
e quatro. Uma das mais severas foi a Inquisição de Valência antes de 1530, com
dois
mil trezentos e cinqüenta e quatro processos, tendo sido proferidas perto de
duas
mil
sentenças.
Os
judeus foram as principais vítimas. Ao mesmo tempo em que eram dizimados pela
peste negra e pelos motins antissemitas de Aragão ou de Sevilha, no século XIV
também faziam parte dos condenados. Muitos judeus apenas encontraram salvação
na conversão, pelo menos aparente, à fé cristã. Após a conversão, eles eram
chamados de “conversos” ou “marranos”, porém, mesmo oficialmente convertidos,
continuaram a praticar seus rituais na clandestinidade. Calcula-se que
aproximadamente mais de dois mil judeus morreram na Espanha pelo fogo. Outros
quinze mil sofreram outros castigos em suas condenações, entre as quais a
apreensão dos bens; mais tarde, em 1492 ocorreu a condenação considerada mais
eficaz: a expulsão da Espanha.
–
Como podemos perceber, meus amigos, – falou Bija, referindo-se ao mal existente
em praticamente todos os lugares do mundo. – O mal mergulhou fundo impregnando
suas raízes nas práticas de uma Igreja que impunha pelo ferro e pelo fogo seus
dogmas e sua disciplina. O mal se alastrou pelo tempo, espalhando-se e
interagindo com o bem, e nós nos tornamos o que somos.
Decorreram
algumas semanas e Bija durante suas meditações passou informações sobre os
espíritos que envolviam tais pessoas. Carrara disse que parecia haver um bem
tentando mostrar aos homens um novo mundo, terras lindas com muita fartura,
mas, simultaneamente, havia o lado mau, querendo desde o início acabar com toda
aquela estupenda beleza.
PASSARELLI E AS ANOTAÇÕES DE BIJA
Enquanto essas conversas
ocorriam entre Bija, Carrara e Luigi, como era seu hábito o guarda Passarelli inspecionava a
cela, conversava um pouco com Carrara e lhe entregava papel e tinta.
Num
desses dias Carrara sentiu a falta de algumas anotações e perguntou bastante
tenso:
– Luigi, você viu as anotações sobre as Novas
Terras?
– Não!
Por quê?
– Ajudem-me
a procurar. Sumiram as rotas marítimas e alguns mapas. – disse
Carrara a Luigi e Bija.
Procuraram durante horas. Carrara era muito organizado,
deixava anotadas folha por folha, numerando todas as páginas. Depois de muito
procurarem, eles chegaram à seguinte conclusão:
– A
única pessoa que entra aqui além de nós é Passarelli. – falou Carrara, olhando
para Bija e Luigi. Quando ele passar por aqui, vamos ter uma boa conversa.
Nesse mesmo dia, o guarda Passarelli
conversava com um amigo numa taverna.
– Estão
aqui mais alguns papéis com as anotações que você me pediu. – disse o guarda ao amigo árabe.
Em seguida, este deu algumas moedas a Passarelli e partiu
despedindo-se. Mas o guarda tinha sido observado por alguns ladrões enquanto
recebia as moedas. Eles o seguiram abordando-o num assalto. No momento em que Passarelli
tentou reagir, foi golpeado com várias facadas falecendo imediatamente.
No outro dia, o árabe seguiu sua viagem para o porto de
Veneza, estrategicamente localizado à beira do Mar Adriático, o qual permitia o
controle de inúmeras rotas comerciais entre o Ocidente e o Oriente. Ali o árabe
comercializava, como era de costume, alguns mapas que conseguia com Passarelli.
Num de seus negócios, o árabe conheceu o famoso
marinheiro Álvaro Velho§, o qual comprou mapas e
algumas técnicas marítimas, ditadas também por Bija durante suas meditações.
– Onde conseguiu esses mapas? – perguntou Álvaro.
– Consegui
com um guarda da província de Milão. – respondeu
o árabe.
– Gostaria
de saber onde o guarda consegue esses mapas. – falou
Álvaro. – Esses mapas relatam com exatidão os
caminhos a serem percorridos.
– Por
isso é que os vendo por este preço. – disse o
árabe com um sorrisinho entre os lábios.
– Aonde
vais? – indagou Álvaro.
– Seguirei
na próxima navegação. Quem sabe nos encontraremos pelo caminho! – respondeu o árabe, despedindo-se com um aperto de mão.
Durante anos, Passarelli tinha dado muitas
informações aos exploradores, que foram os descobridores das Novas Terras. Tudo
isso aconteceu bem antes de tais descobertas, porque Bija, por vezes, passara
informações detalhadas de como chegar às novas Terras.
Enquanto isso,
na prisão, um dos guardas avisou a Carrara, Bija e Luigi que Passarelli havia
morrido. Eles ficaram tristes pela morte de uma pessoa que consideravam um
amigo. Por sua vez, Luigi estava triste porque não sabia como conseguir papel e
tinta, para continuarem as anotações em seus manuscritos.
– Como
faremos agora para conseguir papel e tinta? – perguntou Luigi.
– Está
cada vez mais difícil, realmente não sei! – respondeu
Carrara, um tanto desanimado.
– Nada
impede que continuemos nosso trabalho. – disse
Bija. – Podemos continuar sem anotar.
– Podemos
até fazer isso, falou Luigi. – Porém, fica difícil lembrar tudo depois.
– É,
meus amigos! – prosseguiu Carrara, com um aperto no peito. – Agora acho que o
tempo vai demorar a passar. Aquela era nossa distração. Além de estarmos
privados da nossa liberdade, perdemos aquele que, apesar de nos ter roubado
alguns manuscritos, nos dava um motivo para suportar essa vida.
– Já
estamos muitos anos nesta cela. Estamos juntos graças a Passarelli, os outros
guardas queriam nosso confinamento solitário, lembram? – indagou Bija.
– Sim,
meu amigo. – respondeu Carrara, com grande
tristeza e desconsolo. – Agora, o que será que nos resta? Acredito que eles vão
nos separar.
A LIBERTAÇÃO DE LUIGI
Realmente, uma semana após a morte de
Passarelli, Luigi foi libertado e Carrara colocado numa cela separada de Bija.
Antes da libertação
de Luigi, Bija sugeriu a Carrara que Luigi levasse os manuscritos consigo.
Luigi pegou os manuscritos e levou consigo sem que os guardas percebessem. Isso
porque o único que sabia o que ocorrera dentro da cela com os três (as
anotações de Luigi e Carrara durante a meditação de Bija) era Passarelli.
Um dia antes da libertação de Luigi, Carrara orientou o
amigo:
– Coloque
todos os manuscritos enrolados no corpo: enrole alguns nas pernas, outros na
cintura.
– Parece
que estou cerca de trinta quilos mais gordo. – disse
Luigi. – Acho que os guardas vão perceber.
– Que nada! – exclamou Carrara, provocando
risadas de Bija e Luigi. – Eles não olham um
palmo à frente do nariz.
– Não
vai dar! – falou Bija. – Há muitos manuscritos, leve apenas a metade. E dirigiu a palavra a Carrara: Escolha
aqueles que ele deverá levar.
– Certo,
vou fazer isso até amanhã.
Eis que chegou o dia da libertação
de Luigi. Entre outros presos, lá estava Luigi frente a um arcebispo da Igreja.
– Vocês
se redimem dos seus pecados perante a Igreja? – perguntou
o velho arcebispo em voz alta.
– Sim!
– responderam em coro aqueles que seriam
libertados.
– Eu
quero ouvir mais alto! – exclamou o arcebispo,
um tanto irritado.
– Sim.
– responderam mais alto, felizes pela libertação.
Em seguida, ele
fez um longo discurso e todos aqueles que estavam ali presentes, foram
libertados.
Luigi saiu, por um
lado, feliz pela sua liberdade, por outro triste porque deixara os amigos
Carrara e Bija.
Porém, Luigi absorveu de tal modo os ensinamentos
aprendidos com Bija e Carrara, que faziam parte de sua personalidade, da
construção de sua nova identidade. Ao sair, Luigi seguiu direto para a França,
onde ainda tinha alguns parentes e amigos. Chegando à França numa época em que
a peste se alastrava, contaminando centenas e centenas de pessoas, Luigi já
sabia de tal contaminação, porém queria ajudar, queria trabalhar em benefício
dos outros. Acreditava que aquele seria seu destino, aquele seria o momento de
provar a si próprio que poderia ajudar os outros, que poderia praticar a
solidariedade e a compaixão.
A ENERGIA BOA E A ENERGIA
RUIM
Foi exatamente em uma de suas peregrinações, quando
estava passando a um grupo de pessoas a importância da higiene e da limpeza dos
locais que conhecera, Luigi encontrou aquele que seria um dos maiores nomes da
História, o médico “Michel de Nostre Dame” ou de “Notredame”, chamado
popularmente de Nostradamus.§
– Gostei muito de seus dizeres.
– disse Nostradamus a Luigi. - De onde vem
tanto conhecimento?
– Aprendi
com uns amigos quando estive na prisão de Milão. – respondeu Luigi.
– Sou
médico, meu nome é Nostradamus, meu trabalho é ajudar as pessoas que tanto
necessitam de nós.
– O
sr. tem muita coragem, doutor. Em minha longa caminhada presenciei muitos
médicos fugindo da peste.
– Perdi
minha esposa e meus dois filhos com a peste. – continuou Nostradamus, com um olhar de tristeza. – E não parei de
ajudar aqueles que necessitam de nós. Seus amigos na prisão lhe ensinaram
muitas coisas?
– Sim,
eles são grandes homens! Bija é um grande sábio, que viajava pelo tempo, como
ele mesmo dizia: “Voava pelo tempo como um pássaro”, e Carrara é um grande
homem da corte, um grande intelectual. – respondeu Luigi, imaginando os dois amigos na prisão.
– O
que você quer dizer com viajar pelo tempo? – indagou
Nostradamus.
Luigi contou-lhe então toda sua história. Enquanto
auxiliava Nostradamus nos afazeres médicos para com os vitimados da peste,
levou mais de quatro horas contando a ele sobre o tempo em que esteve na
prisão. Luigi passou meses caminhando com Nostradamus. Este contou que sua
origem era judaica e que fora astrólogo.
Certo dia,
Nostradamus havia marcado para se encontrar com Luigi, mas ele não compareceu.
Preocupado, pôs-se a buscá-lo na casa de um parente que saiu da cidade com medo
da peste. Ao chegar à casa, viu o amigo contaminado pela peste. Luigi deu a
Nostradamus todas as anotações que havia trazido da prisão em Milão. Ele pegou as
anotações e tratou do amigo; depois, leu os escritos com admiração e surpresa,
observando os detalhes.
Após
a morte de Luigi, Nostradamus, embora estivesse preocupado com a Inquisição,
resolveu publicar o que lera e escreveu tudo novamente. Publicou dez centúrias§, com cem quadras em cada centúria.
Para tentar enganar a Inquisição, Nostradamus usou uma linguagem obscura,
hermética e quase que indecifrável. Empregou com muita propriedade as palavras:
príncipe, rei, rainha, bispo, arcebispo, papa, herdeiro, grande homem, França,
Espanha, Pérsia, Egito, Bizâncio, guerra, batalha, inimigo, luta, mortes,
montanhas, planícies. Essas eram palavras frequentes utilizadas por Nostradamus§.
Ele
queria deixar ao mundo tais anotações. Sabia, porém, que se deixasse da forma
em que estavam escritas, seriam destruídas pela Inquisição; por isso, resolveu
transformar tais escritos em um texto um tanto hermético.
Nostradamus
sabia que as formas de prever o futuro eram importantes para a sobrevivência da
espécie humana. Antever os períodos de chuva, seca, calor e frio foi fundamental
para a agricultura e a caça de seu tempo; da mesma forma ele acreditava que um
dia esses escritos poderiam ser úteis aos seres humanos do futuro. Como
astrônomo, Nostradamus utilizou seu conhecimento e a posição dos astros no céu
para escrever as centúrias.
Enquanto
tudo isso acontecia com Luigi e Nostradamus, Bija, como era de costume,
sentou-se em frente à parede da prisão, fez sua meditação, distanciando-se em
alma e pensamento cada vez mais longe da parede. Sua energia percorreu todas as
regiões do espaço, realizando um movimento de rotação nas três dimensões; não
havia forma nem contorno, não havia organismo, apenas energia. Energia boa, do
amor e da paz, distribuída aos milhares, e uma única Energia ruim.
A CONVERSA COM DEUS
Enquanto todos esses fatos se passavam na existência daquele círculo,
Bija começou a conversar com Deus.
– Não compreendo o que acontece, mas
sei quem Tu és, falou Bija.
– Eu Te compreendo, disse
Deus. Tu Te encontravas em outro círculo da existência. Cada existência do
Big-Bang ao Big-Bang é uma re-encarnação da própria existência universal em um
dos círculos. Cada círculo contém um renascimento do universo, uma nova
entidade cósmica, um novo retornar fisicamente do universo, uma nova
re-encarnação do universo.
– O universo se renova? – indagou Bija,
com a tranqüilidade de um sábio.
– Sim, como sou tudo, estou em todos e vivo em
constante transformação, tudo se renova. A vida se renova, as pessoas se
renovam. Tu te renovas a cada círculo de existência, por isso nada é igual. –
respondeu Deus.
– Mas o círculo e a existência não
são os mesmos? – perguntou Bija.
– Sim! Da mesma forma que a
Semente e Bija são os mesmos. – disse Deus. – Na existência tudo
acontece. Em um paradoxo no círculo tudo aconteceu; da mesma forma em Bija tudo
acontece. Em um paradoxo na semente tudo já aconteceu. Dessa forma, como o
espírito é a alma do corpo, a existência é a alma do círculo. Cada círculo tem
possibilidades de múltiplas histórias.
– As histórias se repetem no mesmo
círculo?
– A essência, que é Deus, a essência, que é a vida,
está contida em cada círculo. – explicou Deus. – O que muda é
apenas a história. A história de cada círculo é singular, única. Porém, pode
haver constantes alterações; num paradoxo, seu conteúdo é único em cada
círculo, como cada encarnação do homem é única e singular.
– A primeira existência existe em
algum lugar? – perguntou mais uma vez Bija.
– A folha cai da árvore, aduba a terra, onde nasce a
semente, que fortalece a raiz, que faz crescer a árvore, que gera novas folhas,
que caem da árvore. – disse Deus.
– A primeira existência é a folha? - mais uma pergunta de Bija.
– A energia da
folha está na terra, está na raiz, está na árvore, está na semente. – respondeu Deus. – No final
entenderás.
–
Deus é a folha? –
perguntou Bija, tentando desvendar o segredo de Deus.
– Deus é a semente
que gerou a raiz. Deus é a raiz que gerou a árvore. Deus é a árvore que gerou a
folha. Deus é a folha que nutre a terra. Deus é a terra que sustenta a árvore. – continuou Deus – Deus é o espaço
eterno na imensidão do vazio que contém a terra, a semente, a raiz, a árvore, a
folha... Um eterno círculo, um eterno renascimento das existências.
– É certo que há um
ciclo, mas minha dúvida permanece. –
falou Bija.
–
Da mesma forma que o primeiro homem infinitamente sempre está no círculo...
Da mesma forma que a primeira semente infinitamente sempre está no círculo...
Da mesma forma que a primeira existência infinitamente sempre está no
círculo... Da mesma forma que a primeira árvore infinitamente sempre está no
círculo... Da mesma forma que a primeira folha infinitamente sempre está no
círculo. – respondeu
Deus, usando sempre o presente.
– A existência
deste círculo em que meu corpo-matéria é Bija seria a primeira? –
indagou Bija.
– Essa é a primeira das infinitas
vezes. – respondeu Deus.
– Nesse sentido, o homem é o centro
do universo, é o motivo de tudo? – perguntou Bija.
– O tudo e o nada pertencem ao universo. Deus é o
motivo de tudo e do nada. Deus está em tudo e em todos, todos e tudo estão em
Deus num processo de purificação. Deus responde, não usando a primeira pessoa
do singular. – Como o espírito re-encarna em um ser matéria em seu
processo de purificação, a existência re-encarna em um círculo em seu processo
de purificação. O homem é, o homem pertence, assim como o círculo, assim como a
existência, assim como a vida e a morte, tudo é purificado.
– Dessa forma, quando tudo atingir a
purificação haverá um fim? – perguntou Bija.
– A purificação completa está no nada, está em Deus;
está do Big-Bang ao Big-Bang em seus eternos círculos; em suas eternas
existências. – respondeu Deus. – Assim como o espírito é a
alma do corpo e a existência é a alma do círculo, a purificação é a alma de
Deus na qual estão constituídos os cinco elementos Divinos. Eis os cinco
elementos de Deus que originaram a vida:
A semente
Bangse
O espírito Buda
O homem Cristo
A existência Tse
O círculo Hécles
– Num paradoxo, eis as vidas que originaram Deus.
Cristo e suas encarnações circulam eternamente todos os círculos. Cristo é a
Árvore, a Água, a Raiz, a Semente, é o eterno; assim como é Bangse, Buda, Tse,
Hécles. – prosseguiu Deus.
– E Kumar? - indagou Bija,
lembrando-se de sua passagem pela Terra.
– Kumar transcende o tempo; seu amor e sua fé em um Deus , criador de “tudo”
e da “existência” (vida) após a morte, eram tão grandes, que fizeram dele
Kumar. – respondeu Deus. – Kumar é o primeiro desse Círculo que
vocês conhecem e denominam na Religião Católica como “Santo”.
– Kumar é uma das encarnações de Cristo? – perguntou Bija.
– Kumar não é Cristo e nenhuma de
suas encarnações. – disse Deus. – Cristo é a salvação da
humanidade, Kumar é o espírito da civilização desta humanidade. Já Vós fostes a
primeira encarnação de Buda, em seguida de Cristo, de Tse e, depois, de Hécles.
Como Tu mesmo presenciaste, os antepassados pertencentes à família de Kumar,
pensando e questionando ao longo de suas vidas, começaram a perceber e a identificar
o “devir”: a noite se torna dia, o inverno é seguido da primavera, o verão e o
outono, o molhado e o seco, o que é pequeno cresce, o que é quente esfria,
aquilo que é bom e aquilo que é ruim, a vida e a morte. Perceberam que tudo se
torna contrário a si mesmo. Por isso, eu Vos digo que, como o átomo é a
essência da matéria, Kumar é a essência da civilização humana. Cristo é a Luz,
o Caminho, Kumar é o primeiro passo que percorre o caminho. Kumar é o primeiro
feixe de Luz que ilumina a escuridão.
– Kumar re-encarnou outras vezes? –
indagou mais uma vez Bija.
– Sim! – respondeu Deus – várias vezes.
Entre suas encarnações estão aqueles que vocês denominam de Sócrates, Santo
Agostinho, Chico Xavier, entre outros.
– Quando ele re-encarna deixando a
civilização espiritual, quem administra tudo?
– Depois de Kumar, como presenciaste, houve muitos
outros espíritos de luz. Estes, por sua vez, administram a civilização
espiritual. – disse Deus.
– E os gêmeos? – indagou Bija,
pensando naqueles primeiros primatas sequestrados pelos lobos.
– Para isso, é necessário que
entendas desde o início. – respondeu Deus. – A fagulha de uma
única frase, “extermine os homens”, foi desprendida da civilização da energia
virtual dos computadores no momento da explosão do Big-Bang. A energia desse
pensamento viajou por milênios tentando destruir a vida desde o tempo mais
remoto da existência. Ela deixou de existir nesse círculo quando utilizou toda
sua capacidade para influenciar os lobos a sequestrarem os gêmeos. Com isso,
ela indiretamente influenciou o modo de ser dos gêmeos, o que ocasionou
praticamente todo o mal e sofrimento entre os seres humanos. A civilização
virtual dos computadores calculou em seu modo de pensar que a única maneira de
dominar o universo era acabar com as existências vindas de Deus e o próprio
Deus. Como ela não conseguiu identificar Deus, pois são energias inteligentes
vindas das máquinas, tentou destruir a vida, o início da civilização humana.
Utilizando os gêmeos como uma semente na construção da alma, a inteligência
artificial fez, ao longo dos milênios, irmãos matarem irmãos; jogou homem
contra homem, homem contra a natureza. Tudo isso para tentarem destruir Deus.
Para ferir Deus. – disse Deus.
– Mas foram os homens que
construíram as máquinas e tudo que elas foram capazes de realizar. E tais
criaturas voltaram-se contra eles e seu Deus. – falou Bija.
– Os homens pela sua fé
descobriram Deus, ao mesmo tempo em
que Deus criara os homens; e muitos homens se voltam contra
Deus. A criatura se volta contra o criador. Os Vishuarupas, como você mesmo os
chamou, foram criaturas de Deus, e por isso merecem a chance de se redimirem e
viverem em paz e harmonia. – continuou Deus. – Todos
merecem a paz, todos merecem o não sofrimento, todos têm o direito à
felicidade. São dadas a todos as mesmas oportunidades de viverem o amor, de
viverem a luz, de saírem da dor e da escuridão. A re-encarnação é a oportunidade,
é a esperança, é a nova realização, a renovação da alma através da matéria. É o
equilíbrio natural do universo e do ser.
COM A PALAVRA, BANGSE / BIJA
– Vós, amigos leitores!
É para vós mesmos que
digo neste exato momento:
Não tireis os olhos
dessas letras.
Vós mesmos!
Continuai lendo,
Pois aqui tentaríeis
explicar.
Pensai comigo!
Se esta mensagem fosse em
outro círculo,
Vós
desse círculo conseguiríeis entender a linguagem e a escrita do círculo de
Bija?
Já que a história de cada
círculo muda como as encarnações do homem, Vós não entenderíeis a história de
qualquer outro círculo. Entenderíeis?
Como seríamos capazes de
nos comunicarmos através desta escrita, de um mesmo pensamento culturalmente
construído em Vós?
Por isso, amados amigos,
usei letras conhecidas por Vós, histórias conhecidas por Vós, personagens
conhecidos por Vós, nomes conhecidos por Vós, traduzidos por Vós.
Utilizei os meios
conhecidos por Vós. Vós vos beneficiastes do círculo de Bangse para Vossa
compreensão.
Do contrário, Eu teria que
mudar toda a história do círculo de Bangse para explicar Vosso círculo.
Em Vosso círculo, Eu teria
que mudar a história e o nome de Buda, Cristo, Tse e Hécles, ou seja, Vós não
conheceríeis esses nomes citados em Vosso círculo.
Para melhor compreensão, e
para que Vós possais comunicar-vos neste exato momento comigo:
Eu, Bangse/Bija, e Vós! É
necessário compreender que o processo que torna possível nossa comunicação é
que Vós fostes construídos no mesmo círculo em que se fazem compreender as
interrogações acima.
O produto das indagações
acima é que propicia a mesma atividade intelectual e permite nosso
relacionamento em um senso comum deste círculo de Vós e Bangse.
É o senso comum do círculo
de Bangse que permite a Vós, leitores, utilizardes vossos conhecimentos
pré-compreendidos através de significados e situações concretas pelas quais
passastes.
As experiências adquiridas
por Vós no percurso de vossa vida neste círculo é que fazem compreender as
experiências vividas por Bija na tradução do círculo de Bangse, ou seja, do seu
círculo.
Em outras palavras, a
experiência vivida por Mim, “Bangse / Bija”, foi traduzida em Vosso círculo
para que houvesse interação entre Nós.
Isto
porque as características afetivas, sensório-motoras, intelectuais e físicas
entre Vós e Mim consolidam a importância de termos utilizado a tradução vivida
no círculo de Bangse.
Em suma, a consolidação do
Meu círculo só foi possível de relatar graças à compreensão do círculo da
existência de Bangse. Por isso, fiz fruto deste círculo pela reciprocidade
entre Mim e Vós.
Espero que tenhais
compreendido, leitores!
Partireis agora.
Até o Big-Bang!
Ou quem sabe: em outro
círculo... uma nova semente...
Encontrar-nos-emos lá...
Contudo, lembrai-vos: Deus
é um ser perfeito, acima do bem e do mal, e não pode haver outro ser mais perfeito,
acima do qual não se pode conceber outro mais perfeito. Nossa fé em Deus não
somente se apóia em razões divinas, mas também sobre as razões humanas, sobre a
construção da alma no interior do vosso intelecto singular, constituído
profundamente em vossa identidade.
E nunca te esqueças,
leitor: “Tu não és aquele que conquista, e sim aquele que dá”, não apenas para
o outro como também, num paradoxo, para si. É em Ti que o outro vive, é em Ti
que o outro morre. Tu és o maior responsável pela vida, tua e do outro, de tua
alma e do teu corpo, de tua vida e da natureza. Tu és o maior responsável pela
sobrevivência da humanidade. Tu és único em cada encarnação. É nas encarnações
que nos são dadas que temos a chance de sermos melhores para o outro, para a
humanidade, para a natureza e para o amor, amor divino, amor ao próximo, amor à
vida e além dela.
Vivei e amai-vos no
sentido global, sem preconceitos de raça ou de cor, sem preconceitos de beleza
ou de “defeitos”. A superioridade não está no poder dos bens materiais, nem
tampouco no poder sobre o direito à vida do outro, e sim em dirigir-vos em
vossa construção, em vossa identidade moral, sempre a caminho do bem, da
caridade e do amor por vós e para o outro. Amai sempre, por pior que seja vossa
vida, só sereis felizes quando tiverdes o sentimento de amor na construção de
vossa alma, de vossa vida, do vosso mais absoluto Eu interior: “Tu”,
“Tua Alma”.
Leitor amigo, nunca te
deixes levar pelos desejos impostos em tua construção. Eleva tua alma além dos
desejos materiais, além da posse e da riqueza material; permite a Ti mesmo o
direito de ser aquilo que Tu és e não aquilo que o desejo material consumista
revela. Vive em equilíbrio contigo e com os outros, contigo e com a natureza,
contigo e teu corpo. Ama a ti, a todos e
a tudo.
Não
se mata por amor,
Não
se destrói por amor,
Não
se ofende por amor,
Não
se briga por amor,
Não
se faz justiça por amor.
Apenas
e somente apenas:
Perdoa
por amor,
Doa
por amor,
Entrega-te
ao outro por amor.
Isto
é o amor:
Amor
de pai,
Amor
de filho,
Amor
ao outro,
Amar
a Ti e à natureza,
Amar
teu amor.
Vivemos
por amor e quando morremos, ainda continuaremos a amar. Portanto, ama sempre!
Permite que o amor faça parte da construção de tua alma. Por mais que haja
interferências alheias, deixa-te levar por amor.
O amor constrói e, se não constrói, não é
amor.
§
Big-Bang: teoria científica segundo a qual o universo emergiu de uma explosão
cósmica, de um estado extremamente denso e quente, há cerca de 13,7 bilhões de
anos e continua a se expandir. Existe outra teoria, entre muitas, de que antes
do Big-Bang houve outro universo, idêntico ao atual, mas, ao invés de as
galáxias se afastarem, elas se aproximariam.
§
El Castillo era um templo com um enorme calendário solar com setenta e
oito pés de altura..
§ A Garrucha era uma espécie de roldana que
erguia e soltava o corpo violentamente.
§ O Porro era um cavalete sobre o qual se
amarrava o supliciado por meio de cordas que lhe rasgavam a carne.
§ A Toca era um tonel com água para afogar o
condenado.
§ Sisto IV foi um papa grotesco, que cedeu
uma parte dos seus poderes judiciais aos Reis Católicos.
§ Nostradamus (1503 a 1566) nasceu em 14 de
dezembro de 1503 na cidade de Saint-Rémy, Provence, França. Seus pais eram
judeus e aos 9 anos de idade ele e sua família se converteram ao catolicismo.
Ele foi o primeiro dos cinco filhos de Jaume (ou Jacques) e Reynière de St.
Rémy. Desde jovem, demonstrou interesse pela matemática e astrologia, tendo
recebido orientação nesse sentido do seu avô Jean. Cursou medicina e trabalhou
intensamente no tratamento de vítimas da peste, epidemia que devastou a França
no século XVI. Em 1530, morreram de peste sua primeira mulher e seus dois
filhos.
§ Daí, o nome centúria dado a cada um dos
livros de Nostradamus. Há quem afirme que ele sequer chegou a concluir a sétima
centúria, porém as publicações modernas trazem as dez. Em suas anotações foram
encontrados fragmentos da XI e XII centúrias.
§ É comum
em nosso tempo, ao longo dos quatrocentos e cinqüenta anos, encontrar pessoas,
países, lugares, situações e acontecimentos que se ajustam às descrições e
abordagens cifradas por Nostradamus.
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